O conceito de superendividamento introduzido no CDC
quinta-feira, 22 de julho de 2021
Atualizado às 07:19
Continuo a comentar aspectos da lei 14.181, que introduziu no Código de Defesa do Consumidor uma série de normas visando aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Cuido, hoje, do conceito de superendividamento, previsto no novo art. 54-A.
A lei definiu o superendividamento como sendo a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação (conf. o §1 do art. 54-A).
Anoto, incialmente, que a norma protege apenas a pessoa natural. Pessoa jurídica devedora não recebe a mesma proteção. O texto é claro: está superendividado o consumidor que não consegue pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, vale dizer, entram na composição de suas dívidas apenas aquelas que envolvem relações de consumo. As dívidas tributárias estão fora. Estão fora, também, aquelas estritamente privadas, como, por exemplo, a compra de um veículo de um particular.
A regra do § 2º apenas reforça o contido no § 1º, deixando claro que, inclusive, estão incluídas na hipótese as dívidas relativas aos serviços de prestação continuada, tais como de planos de saúde, seguros em geral etc.
Para a questão do mínimo essencial, indico meus comentários feitas no artigo de semana passada e aqui publicado1. E um outro item importante fixado na norma é o da conduta do consumidor, que para poder usufruir do direito posto há de ter agido com boa-fé.
Naturalmente, essa boa-fé é a mesma que está estabelecida como princípio no inciso III do art. 4º e como cláusula geral no inciso IV do art. 51. Lembro, então, que na lei consumerista a boa-fé é objetiva, diversa da subjetiva. A boa-fé subjetiva diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença sobre determinada situação pela qual o detentor do direito acredita em sua legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação. Nesse sentido, a boa-fé pode ser encontrada em vários preceitos do Código Civil, como, por exemplo, no art. 1.567, quando trata dos efeitos do casamento putativo2, nos arts. 1.201 e 1.202, que regulam a posse de boa-fé3, no art. 879, que se refere à boa-fé do alienante do imóvel indevidamente recebido etc..4
Já a boa-fé objetiva, que é a que está presente no CDC, pode ser definida, grosso modo, como sendo uma regra de conduta, isto é, o dever das partes de agir conforme certos parâmetros de honestidade e lealdade, a fim de se estabelecer o equilíbrio nas relações de consumo. Não o equilíbrio econômico, como pretendem alguns, mas o equilíbrio das posições contratuais, uma vez que, dentro do complexo de direitos e deveres das partes, em matéria de consumo, como regra, há um desequilíbrio de forças. Daí que, para chegar a um equilíbrio real, o intérprete deve fazer uma análise global do contrato, de uma cláusula em relação às demais5.
A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva do fornecedor ou mesmo do consumidor.
Deste modo, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado no contrato, realizando os interesses das partes.
A boa-fé objetiva é uma espécie de pré-condição abstrata de uma relação ideal. Toda vez que no processo judicial o magistrado tiver de avaliar o caso para identificar algum tipo de abuso, deve levar em consideração essa condição ideal a priori, na qual as partes respeitam-se mutuamente, de forma adequada e justa.
Portanto, repito que para o consumidor gozar dos benefícios legais deve ter agido de boa-fé na contratação e execução do negócio de consumo.
Mas, após cuidar da boa-fé (objetiva, que é a regra do CDC), o legislador, no §3º resolveu realçar que o disposto na norma não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor.
São dois temas diversos. O primeiro, envolve dolo do consumidor na fixação do negócio jurídico. Se, no caso da boa-fé objetiva, o magistrado, no caso concreto, deve verificar se o standart de conduta suposto para a relação foi cumprido ou violado, na hipótese do dolo, há que ser feita a prova da ação ilegal realizada pelo consumidor. Essa má-fé é, pois, subjetiva. A apuração há de ser feita no processo judicial, inclusive com os benefícios da inversão do ônus da prova a favor do consumidor, conforme previsto no inciso VIII do art. 6º.
O segundo tema envolve a contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor. A intenção do legislador foi a de, certamente, não dar guarida para compras supérfluas e de valores muito expressivos. Os conceitos são indeterminados: nos limites extremos, naturalmente, é mais fácil verificar se eles estão presentes como ocorre, por exemplo, em aquisição de joias caríssimas, peças de vestuário extraordinariamente caras, veículos de elevados preços etc. Mas, isso nem sempre será possível de ser determinado de pronto. Muitas vezes, deverá ser produzida prova no processo judicial para, na comparação com as posses do consumidor, sua renda e capacidade de pagamento, determinar-se o caso é, de fato, de aquisição de luxo de alto valor.
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1 ABC do CDC de 15-7-21, in Migalhas.com.br.
2 Código Civil: "Art. 1.561. Embora anulável, ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos civis até ao dia da sentença anulatória. § 1º Se um só dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos filhos aproveitarão. § 2º Se ambos os cônjuges estavam de má-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só aos filhos aproveitarão".
3 Código Civil: "Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que lhe impede a aquisição da coisa.
Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção. Art. 1.202. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente".
4 "Art. 879. Se aquele que indevidamente recebeu um imóvel o tiver alienado em boa-fé, por título oneroso, responde somente pela quantia recebida; mas, se agiu de má-fé, além do valor do imóvel, responde por perdas e danos. Parágrafo único. Se o imóvel foi alienado por título gratuito, ou se, alienado por título oneroso, o terceiro adquirente agiu de má-fé, cabe ao que pagou por erro o direito de reivindicação."
5 O novo Código Civil também incorporou a boa-fé objetiva como base para as relações contratuais, como se pode ver do art. 422: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé" e do art. 113: "Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração".