A verdade científica e o controle dos consumidores
quinta-feira, 20 de maio de 2021
Atualizado às 08:05
Vivemos tempos difíceis. Nem preciso referir o drama enfrentado por todos por causa da pandemia da Covid-19. Quero cuidar das comunicações ligadas à ciência. Há informações seguras e muita polêmica. Vacinas que funcionam, mas não totalmente. Tratamentos com medicamentos que uns adotam e outros não. Enfim, há, de fato, muita dificuldade em se conhecer a verdade científica e quais são os interesses mercadológicos (e, neste caso, também políticos) que afetam as informações oferecidas.
Volto, pois, ao assunto do controle exercido sobre os consumidores no mercado. Usarei um exemplo antigo, que aqui já dei, para mostrar que ciência e mercado podem andar juntos para impingir certos comportamentos aos consumidores, mas, na esperança de que no caso desta pandemia o interesse seja autêntico na direção de cuidar da saúde de todos.
No livro "Adoro Problemas" de Michael Moore1, dentre tantos casos narrados, há uma história intrigante. Eis o fato narrado com humor pelo autor: Disse ele que, quando nasceu, na década de 1950, estando na maternidade, descobriu que ao invés dos seios de sua mãe, impingiram-lhe e também a seus colegas bebês mamilos falsos de borracha:
"Na década de 1950, os hospitais se consideravam como a vanguarda da sociedade moderna do pós-guerra. E convenciam as mulheres hospitalizadas de que ser 'moderna' significava não dar de mamar ao seu bebê, que amamentar era antiquado e inútil. As mulheres modernas usavam mamadeira!"2
"Convenceram nossas mães de que se um alimento vinha numa garrafa - ou numa lata, caixa ou saco de celofane -, então ele era de alguma forma melhor para você do que quando vinha grátis via mãe natureza."
Depois, espantado, o cineasta americano pergunta:
"Era, de fato, assim tão fácil enganar nossos pais? Se eles podiam ser enganados de modo tão fácil a esse respeito, o que mais eles podiam ser convencidos a testar? Creme de milho em lata? Grama artificial?3
E, de fato, como é possível que isso tenha ocorrido? Ao que consta, é sabido por todos, com muita tranquilidade, da importância do aleitamento materno, mas pude constatar que, realmente, naquele período dos anos cinquenta, era "moda" usar mamadeira, desprezando-se o leite que a mãe podia oferecer. Pensei, então, que a análise do caso narrado por Michael Moore poderia permitir a elucidação do modus operandi de alguns setores do mercado capitalista no processo de enganação, controle e alienação dos consumidores, a partir da análise das técnicas implementadas pela indústria de leite como substituto do leite natural. Meu caro leitor, veja o que encontrei.
Maria Lúcia Magalhães Bosi e Márcia Tavares Machado, no artigo intitulado "Amamentação: um resgate histórico"4, apresentam um panorama que permite uma análise.
Inicialmente, transcrevo o que se sabe, realçado pelas pesquisadoras:
"O leite materno é o alimento adequado para as crianças nos primeiros meses de vida, tanto do ponto de vista nutritivo e imunológico quanto no plano psicológico, além de favorecer o vínculo mãe-filho quando o ato de amamentar é bem vivenciado pelas mães."5
No início do Século XX, já estavam em pleno desenvolvimento as pesquisas e a produção de alimentos que pudessem substituir o leite materno durante o período de desmame. Várias alternativas de leite de vaca, com adição de açúcar, água, cremes etc., que permitiam uma melhor digestão, foram oferecidas.
"Os médicos passam a aderir às novas alternativas, prescrevendo-as como benéficas para a alimentação infantil. Essas práticas associam-se a um forte marketing focalizado nos pediatras, que passariam a desempenhar um papel decisivo como influenciadores de um novo movimento na sociedade: a 'cultura da mamadeira'."6
As autoras relatam que as indústrias de alimentos realizavam campanhas publicitárias em jornais médicos e paramédicos, visando - e conseguindo - influenciar os médicos que prescreviam as fórmulas para as mães. Assim, aos poucos e incessantemente, os produtos foram se tornando confiáveis:
"No final dos anos 40, iniciando os anos 50, os produtos são apresentados como uma opção para facilitar a tarefa dos médicos que passam a prescrevê-los indiscriminadamente às mães, como a forma mais prática e viável para seus filhos."7
Nos anos seguintes, o leite em pó passou a ser recomendado e utilizado tão logo o bebê nascia.
Como apontam as autoras, as estratégias para criar essa cultura da mamadeira envolviam o fornecimento de produtos lácteos aos profissionais de saúde (médicos e nutricionistas), o patrocínio de reuniões científicas, cursos de atualização e congressos, a contribuição para manutenção de revistas científicas, nas quais eram publicados anúncios constantemente etc.
É de se prestar bastante atenção no esquema, que não só vingou como é utilizado abertamente pelas grandes corporações até os dias atuais. Alguns produtos para serem aceitos pelos consumidores passam por um largo processo de "convencimento". Talvez num primeiro momento os consumidores não se interessem, como se deu no caso narrado. "Leite em pó, com água e outros componentes numa mamadeira?", devem ter dito as mães num primeiro momento. "Não quero, prefiro que meu filho tome o que eu tenho para dar e que já está pronto". Talvez. Daí é que, então, a indústria desenvolveu seu plano estratégico.
Era preciso dar autenticidade ao produto; havia que se mostrar suas qualidades. Quem melhor que os cientistas para fazê-lo? Ou, na hipótese, os médicos e nutricionistas. Como os pais poderiam deles duvidar? Para convencer esses cientistas, que tal patrocinar reuniões, cursos, congressos? Subsidiam-se esses eventos, pagando-se muito bem para que os palestristas convençam o público presente da qualidade dos produtos. Esse público que, claro, já está grato por estar participando do evento de forma gratuita e que envolve passeios, jantares etc.
Para edulcorar o novo conhecimento que estava surgindo, que tal manter revistas científicas, pagando caros anúncios em suas páginas? E, ao mesmo tempo, fazer publicidade em muitos outros veículos?
Com esse assédio vindo de todos os lados, reforçados por frases que têm um forte apelo de verdade porque saem da boca de técnicos, cientistas, médicos e nutricionistas, ladeadas por belos anúncios publicitários que apresentam as vantagens do aleitamento artificial e com o apoio da sempre necessidade do consumidor de não estar "por fora", de andar "na moda", de estar "na onda", acaba dando certo.
E esse caso é, de fato, exemplar porque mostra o poder de convencimento dos fornecedores. Se eles conseguiram convencer pais e mães que leite em pó, cheio de produtos artificias, servidos numa garrafa plástica ou de vidro era melhor que o peito da mãe, que tinha pronta-entrega do leite ideal produzido por ela mesma, podem mesmo convencer as pessoas a consumirem quase tudo. É um poder incrível.
Claro que não foi tarefa fácil convencer pais e mães de que era possível abandonar a mãe-natureza no que ela tinha de próprio para os bebês e preferir o alimento artificial. Mas, funcionou, especialmente porque a tática conseguiu atrelar um produto industrial à ciência, criando uma imagem positiva e dando credibilidade às prescrições e ofertas.
Eis aí, pois, mais um exemplo que tem de tudo quanto os fornecedores aprenderam e usam no esquema de oferta e venda de seus produtos e serviços. Vê-se que não se trata apenas de publicidade, mas de um largo projeto de marketing que envolve a ciência e seus profissionais, as escolas, os meios de comunicação em geral, os depoimentos de autoridades e pessoas com prestígio social - os confessionais - etc., num longo e árduo trabalho de convencimento que, quando funciona atordoa o consumidor final, de modo que ele acaba não percebendo que foi enganado.
Durou, mas mudou. Ainda bem: No Brasil, por exemplo, a partir dos anos oitenta do século XX, ressurgiu a lógica e o caráter verdadeiramente científico do discurso que mostra as vantagens do aleitamento materno.
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1 São Paulo: Lua de Papel, 2011.
2 Ibidem, p. 40.
3 Idem, p. 41
4 Cadernos ESP - Escola de Direito Público do Ceará, V. 1, Nº 1, Julho-Dezembro - 2005.
5 Ibidem, fl. 1.
6 Ibidem, fl. 5.
7 Ibidem, fl. 6.