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As lorotas e as enganações continuam firmes

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Atualizado às 09:04

Existem várias versões para o significado da expressão "para inglês ver" e que remontam  à sua origem. Uma delas diz que em 1815, os portugueses e os britânicos firmaram um compromisso, no qual Portugal se comprometeu a não mais traficar escravos. Todavia, como Portugal não vinha cumprindo o compromisso, o Parlamento Britânico acabou aprovando uma lei que criminalizava a escravatura e concedia, unilateralmente, à frota real britânica poderes para abordar e inspecionar os navios portugueses. Como estratégia para enganar os ingleses, os portugueses carregavam a embarcação que ia a frente da frota com uma carga inofensiva para ser inspecionada, levando os escravos nos navios depois e com isso se safavam da inspeção.

Outra versão, ligada ao mesmo tema, diz que em 1831 a governo português promulgou uma lei proibindo o tráfico negreiro, mas como o sentimento geral era de que a lei não seria cumprida, começou a circular a expressão de que a lei fora feita apenas "para inglês ver".

E ainda outra versão diz que, após a partida da família real portuguesa para o Brasil, Portugal passou a ser uma espécie de protetorado da Inglaterra, que assumiu o comando da máquina militar portuguesa na luta conjunta contra a França. Mas, os metódicos ingleses que queriam tudo organizado e por escrito tinham problemas com os práticos portugueses. Assim, a cada imposição organizacional inglesa, os portugueses botavam tudo por escrito, para mostrar que estava tudo em ordem. Mas, era só no papel. Servia apenas para agradar os ingleses e dizer que estava tudo arrumado, isto é, era só para os ingleses lerem (ou verem). Na prática, as coisas eram bem diferentes. O mesmo se dava nas visitas dos generais ingleses a certos locais, que eram preparados (maquiados, como hoje diríamos) para dar uma aparência diversa do real. Se os ingleses exigiam a construção de uma estrada, os portugueses deixavam pás, pedras e material para a construção da mesma no local da visita. Assim, diziam que já estavam construindo. Era o que os ingleses viam. Ficou a expressão e o aprendizado. Mas, naquela época, consta que, de fato, os ingleses eram enganados.

Continuo cuidando de um tema básico quando se trata de relações de consumo: o das mentiras e toda sorte de enganações perpetradas por muitos fornecedores. E, anoto que, de outro lado, uma grande parcela de consumidores diante das enganações, não as percebem; aceitam o falso sem senso crítico, apenas porque ele tornou-se banal ou é bem produzido, bem comunicado ou apresentado por alguém que detém autoridade. Muitas delas, apenas para inglês ver. 

De há muito tempo que os consumeristas  descobriram que um dos fundamentos da sociedade capitalista de consumo é a mentira. Alguns setores empresariais  são desonestos na relação com seus clientes. Não há, claro, nenhuma novidade nisso. Quem conhece um pouco de história do comércio, da indústria, da economia etc. sabe muito bem que os segredos, as artimanhas, os conchavos, os acertos escusos etc. estão na base da produção e distribuição de produtos e serviços. Transparência não é um termo muito conhecido ou utilizado e está na raiz do sistema de produção e venda. Como diria Sócrates que aqui já referi, "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". Parafraseando-o, posso dizer que no processo de produção capitalista se faz muita coisa, mas se mostra outra diferente.

Algumas comunicações falaciosas tornam-se lugares comuns e de tantos serem utilizadas, a população passa a nelas acreditar, inclusive algumas expressões utilizadas regularmente. Por exemplo, é costume referir-se à indústria de veículos como a "indústria nacional de veículos". Mas nós não temos, propriamente, uma  indústria nacional de veículos. São todas estrangeiras, aqui estabelecidas, muitas delas com enormes incentivos e que, todos os anos, enviam para o exterior os gordos lucros obtidos. Talvez devêssemos lamentar que não tenhamos um veículo nacional como têm os americanos, os franceses, os italianos, os japoneses, os alemães, os coreanos e os chineses.

O fato é que, as versões surradas dos fatos são enfiadas pela goela da população e repetidas tantas vezes que soam como verdades. As pessoas se acostumam com as coisas rotineiras, comuns, banais e acabam aceitando-as como válidas e verdadeiras. Ou, então, aceitam os fatos como se eles não pudessem ser diferentes. Neste ponto cito um exemplo dado por meu amigo Outrem Ego. Disse-me ele que só percebeu que a cidade de São Paulo era tão esburacada quando viajou pela primeira vez ao exterior. Há alguns anos ele dirigiu mais de 500 quilômetros por ruas e estradas americanas sem ter passado por nenhum buraco. Mas, foi só quando retornou à cidade de São Paulo que ele percebeu como nossas ruas são incrivelmente esburacadas, onduladas e estragadas. Vale dizer, que sem alternativa ou jogadas à própria sorte, as pessoas acatam as regras, as imagens recebidas, o local em que vivem como se as coisas não pudessem ser de outro modo.

Quanto aos consumidores, uma boa parte está tão absorvida pelo mundo do marketing e da publicidade, que não consegue se dar conta exatamente do que acontece. Eles vão sendo amaciados pelas imagens, textos e, muitas vezes, têm dificuldade de entender exatamente o que está sendo oferecido, tal como os ingleses do período acima citado.