É permitido o aumento abusivo de preços?
quinta-feira, 17 de setembro de 2020
Atualizado às 08:26
Um dos temas desta semana foi o suposto aumento abusivo de preços praticado pelo comércio, em especial do arroz e do óleo, mas também de outros produtos. Foi estabelecida uma fiscalização pelos órgãos de defesa do consumidor e alguns jornalistas/opinadores disseram que estaríamos de volta ao período Sarney de controle de preços ou das práticas de tabelar preços pela extinta Sunab, algo ilegal, pois agora os preços são livres.
Sim, vivemos um período de liberdade na fixação dos preços. Todavia, em períodos de exceção, como é, evidentemente, este da pandemia, impõe-se comportamentos especiais. E mais: a legislação brasileira é rica em normas para que se possa combater a ganância.
Ganância. É dela que trato aqui mais uma vez: a sede de ganho sem limites.
Michael J. Sandel, no livro intitulado Justiça: o que é fazer a coisa certa, conta que, no verão de 2004, o furacão Charley invadiu o Golfo do México causando sérios danos à população da Flórida. A tempestade matou 22 pessoas e causou prejuízos de 11 bilhões de dólares1.
No livro citado, Sandel diz que, após a passagem do destrutivo furacão, em "um posto de gasolina em Orlando, sacos de gelo de dois dólares passaram a ser vendidos por dez dólares. Sem energia para refrigeradores ou ar-condicionado em pleno mês de agosto, verão no hemisfério norte, muitas pessoas não tinham alternativa senão pagar mais pelo gelo. Árvores derrubadas aumentaram a procura por serrotes e consertos de telhados. Prestadores de serviços cobraram 23 mil dólares para tirar duas árvores de um telhado. Lojas que antes vendiam normalmente pequenos geradores domésticos por 250 dólares pediam agora 2 mil dólares. Por uma noite em um quarto de motel que normalmente custaria 40 dólares cobraram 160 a uma mulher de 77 anos que fugia do furacão com o marido idoso e a filha deficiente"2.
Esse tipo de conduta não é novo nem surpreendente e já se verificou no Brasil inúmeras vezes. Lembro que, mais de uma vez, alguns donos de postos de combustíveis, aproveitando-se da escassez provocada pela greve dos caminhoneiros, aumentaram (e muito) o preço da gasolina e do álcool nas bombas. Há também um caso bem conhecido: em janeiro de 2011, alguns comerciantes da região serrana do Estado do Rio de Janeiro aumentaram abusivamente os preços dos gêneros de primeira necessidade, logo após os deslizamentos de terra nas cidades de Nova Friburgo, Teresópolis, Petrópolis e outras e que deixaram centenas de mortos e milhares de desabrigados.
São práticas abusivas proibidas pela legislação protecionista do consumidor e, evidentemente, odiosas, mas que apenas confirmam a mentalidade atrasada e as ações ilegais perpetradas por certos empresários e colocam à mostra defeitos terríveis da natureza humana. Daí que a ganância não é nova nem desconhecida. Aliás, na concepção cristã, é um dos sete pecados capitais como desdobramento da avareza3; trata-se de um vício humano, sempre combatido.
Anoto que a avareza é um dos sete pecados capitais porque o avarento (e na hipótese, o ganancioso) prefere os bens materiais ao convívio com Deus. Mas, no capitalismo selvagem atual, faz sentido, na medida em que o mercado funciona como um "deus". E é nesse aspecto, inclusive, que tem se usado a expressão "fundamentalismo de livre-mercado".
Os estudiosos da sociedade capitalista têm dito e, também, demonstrado que o capitalismo da segunda metade do século XX para cá é eminentemente fundamentalista. É o chamado fundamentalismo de livre-mercado (do inglês free-market fundamentalism), expressão usada criticamente e que denota a injustificada e exagerada crença de que os mercados livres são capazes de propiciar a maior prosperidade possível e que qualquer interferência nos processos de mercado reduz o bem estar social. Ou seja, os livre-mercados seriam capazes de resolver, de per si, todos os problemas que afetam uma sociedade, o que não corresponde à verdade.
E, claro, diga-se que, sim, no Brasil há leis que impedem esse tipo de abuso, lembrando que estamos num período excepcional. O CDC dispõe de normas que permitem a intervenção dos organismos estatais de proteção ao consumidor e a Lei que estrutura o sistema brasileiro de defesa da concorrência e que reprime às infrações contra a ordem econômica (Lei nº 12.529, de 30-11-2011) tem norma expressa contra esse tipo de abuso. Vejamos.
Código de Defesa do Consumidor:
"Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
(...)
II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:
(...)
c) pela presença do Estado no mercado de consumo;"
"Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
(...)
V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;"
Este inciso V do art. 39 remete ao § 1º do art. 51. E, embora aplique-se os demais incisos, destaco apenas o III:
"§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso"4.
Lei 12.529, de 30-11-2011:
Art. 36, inciso III:
"Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
(...)
III - aumentar arbitrariamente os lucros;"
Vê-se, pois, que no panorama atual de crise provocada pela pandemia do Covid-19 pode-se sim controlar preços para evitar os abusivamente fixados.
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1 Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª ed., 2012, p.11.
2 Ibidem, p.11. Como a Flórida tem uma lei para punir fornecedores que pratiquem preços abusivos, foram movidas muitas ações judiciais com condenações dos violadores.
3 Para lembrar: os sete pecados capitais são a gula, a avareza (e por extensão a ganância), a luxúria, a ira, a inveja, a preguiça e a soberba (orgulho ou vaidade).
4 A compra e venda de um produto num supermercado ou outro tipo de comércio, ainda que a venda se faça pela via de simples emissão de uma nota fiscal, representa, como se sabe, um contrato de compra e venda. E assim, poder-se-ia falar também na incidência do inciso IV do art. 51: "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade".