Num dia desses, li que um artista americano famoso e muito rico "coleciona" casas. Têm várias, em diferentes Estados americanos e todas muito grandes. A matéria dizia: "casas espetaculares". Ontem li que há jogadores de futebol endinheirados que "colecionam" automóveis. E veículos raros, que custam milhões de euros ou dólares. E nesta pandemia, todos eles estão bem escondidos em suas mansões... Pois, como sempre diz meu amigo Outrem Ego, "pessoa rica, cheia de dinheiro no banco, muitos bens no patrimônio, mas com um medo danado de mosquitos, vírus e outros perigos naturais"
Já cuidei desse assunto aqui, mas como ele não sai de cena, volto ao tema, em plena pandemia.
Muito bem, talvez quem tenha várias casas possa curti-las e quem tem muitos automóveis também. Pode ser. Mas, a questão das coleções na sociedade de consumo vai muito além. Aliás, por falar no meu amigo, lembro essa história que ele me contou: Certa vez, foi convidado para ir com outro amigo dele a um jantar na casa de um empresário. "Modo de dizer", disse ele. "É que o empresário era investidor de empresas falidas... Sei lá. Mas tinha muito dinheiro, pelo menos pelo que pude ver de sua casa e demais coisas e também do que ele falava".
Pois bem. Conta meu amigo que lá chegando, foram convidados para irem ao andar debaixo, numa espécie de subsolo, para conhecer a adega de vinhos. Suntuosa, muito bem equipada e com um estoque de centenas de garrafas, muitas delas raras adquiridas em leilões internacionais e, claro, caríssimas. Todas devidamente catalogadas pelo próprio proprietário que, com muito orgulho, as mostrou dando ênfase em vários rótulos.
Outrem Ego se animou. Pensou: "Me dei bem. Hoje tomarei um vinho que jamais poderia tomar". Mas, que nada. Feita a visita à adega, o anfitrião os levou para o andar térreo até outras três adegas dessas compradas em lojas de eletrodomésticos (embora das maiores e mais sofisticadas) e, abrindo uma das portas, escolheu duas garrafas de vinho e dali dirigiram-se à mesa para o jantar. Eram bons vinhos, mas nada que pudesse fazer frente aos raros e espetaculares da adega e que chegaram a passear nos sonhos de meu amigo.
Depois, quando deu, perguntou ao outro amigo: "Ele não bebe os vinhos lá debaixo?". "Não", respondeu o amigo, "É só para ver. Não para beber". Outrem Ego retrucou: "Ele nunca beberá? Nem em ocasiões especiais? Ou com pessoas especiais?". "Acho que não. Até porque, pela idade dele e com tantas garrafas armazenadas, para tomá-las todas ele já deveria ter começado a fazê-lo há muito tempo. E essas que ele bebe, ele compra a toda hora".
Quando Outrem Ego me contou essa história, concluiu: "O sujeito compra um monte de vinhos só para olhar para os rótulos e garrafas? Ele as admira como se fossem troféus! Se ainda guardasse como investimento, se deixasse os vinhos envelhecerem e depois os vendesse... Ou, então, podia guardar as garrafas vazias junto das avaliações feitas após ter bebido o conteúdo!".
Há, é verdade, uma tradição na coleção de objetos. Coleciona-se selos, moedas, joias etc. e que remontam a tempos antigos, como comprovam as exposições de museus. Mas, com o avanço da produção e reprodução cada vez mais precisa e mais barata, os modos de colecionar acabaram crescendo. Naturalmente, coleciona-se figurinhas até hoje, mas até isso é diferente de nosso romântico tempo de criança. Com a facilidade das compras e quantidade de ofertas, muitas pessoas passaram a colecionar uma série de objetos. Coleciona-se canetas, bolsas, sapatos, gravatas, ternos, vestidos, automóveis (!) etc.
Claro que isso é problema de cada um. Quem pode, acaba fazendo se lhe aprouver, mas que é estranho manter certas coleções é. Quero dizer, se for mesmo para estabelecer uma coleção autêntica, com catálogo e demonstração como num museu (não importando nem local nem tamanho) talvez se justifique. O problema, ao que parece, está mais relacionado ao fato de, muitas vezes, a pessoa guarda coisas, repetidas ou não, para nunca usar e daí ela perde a finalidade.
Já se disse que a sociedade capitalista é da abundância, mas, claro, isso não corresponde à realidade. Abundam produtos e serviços, mas faltam condições básicas de sobrevivência para milhões de pessoas. Aliás, toda vez que uma empresa coloca no mercado algo novo, não é a abundância sua característica, mas sua falta para a maior parte dos que não podem comprar. Então, nessa terra de escassez, manter produtos guardados sem finalidade pode ficar sem sentido.
Evidentemente, que há muitas coisas que se pode ter em casa para um dia usar de verdade. Se a pessoa mantém guardados livros, ela certamente poderá utilizá-los. Aliás, esse é o exemplo típico de coleção que vale a pena ter. Mesmo que nós compremos um livro para apenas um dia no futuro lê-lo. Quem sabe, num dia de chuva, a pessoa olhe para o livro na estante e, finalmente, resolva lê-lo. Vale mesmo a pena tê-lo ali por perto (Eu ainda torço para que o livro impresso sobreviva!)
Lembro-me de uma entrevista que li com Umberto Eco. Não sei exatamente os números que o entrevistador usou. Mas, ele dizia que uma pesquisa apontava que milhões de leitores do famoso escritor italiano haviam comprado o último livro que ele publicara, mas que apenas metade (não sei o percentual exato, repito) o havia lido e perguntava o que ele achava disso. Sua resposta foi a de que tudo indicava que as pessoas queriam ler o livro, mas estavam esperando a oportunidade para fazê-lo. Tê-lo comprado era algo importante porque quando surgisse a oportunidade, elas iriam lê-lo.
Penso que, realmente, vale a pena comprar livros e guardá-los ainda que a leitura somente ocorra no futuro. Mas, valerá guardar gravatas? Um homem precisa mesmo ter em seu armário vinte ou trinta gravatas (ou mais)? Uma mulher vinte bolsas ou vinte sapatos (ou mais)? Aliás, como o design desses produtos varia com o tempo (quero dizer, com a moda imposta ao comportamento social, que muda com o passar do tempo), muitos deles ficarão sem utilidade e muitos sequer serão usados.
É isso. Apenas uma apresentação de uma questão que talvez permita uma reflexão sobre os nossos modos de consumo, com ou sem pandemia.