Liberdade de expressão e publicidade no sistema jurídico brasileiro
quinta-feira, 21 de setembro de 2017
Atualizado em 20 de setembro de 2017 10:38
Abraham Lincoln disse: "Às vezes, é melhor ficar calado e deixar que as pessoas pensem que você é um imbecil, do que falar a acabar de vez com a dúvida".
Nos últimos dias, travou-se na imprensa e nas redes sociais uma boa discussão a respeito de liberdade de expressão, especialmente por conta do episódio da exposição promovida pelo Banco Santander em Porto Alegre, que foi encerrada antecipadamente em função de protestos contra as obras lá expostas. Um pouco antes, um conhecido cantor sertanejo, que se diz estudioso da história, disse e insistiu que não houve ditadura no Brasil no período de 1964 a 1985. Foi um "militarismo vigiado" disse ele. Sabe-se lá o que isso quer dizer...
Como disse meu amigo Outrem Ego a respeito da fala do cantor popular: "Quando li a patacoada, estava de bom humor e logo lembrei de Bill Clinton que, quando estava em campanha para a presidência dos EUA, foi acusado de ter fumado maconha e se defendeu dizendo: 'Fumei, mas não traguei'. E depois já na Casa Branca, pego dessa vez num flagra de sexo oral, negou que aquilo fosse sexo: 'Eu não tive relações sexuais com esta mulher, a senhorita Lewinsky'". "São fatos relatados sob outra ótica", ironizou.
Mas meu amigo nem sempre está de bom humor. Certa vez ele, demonstrando seu ceticismo pela humanidade, disse: "A liberdade de expressão é um princípio que garante que a pessoa possa mostrar sua ignorância, arrogância e desrespeito pelo outro explicitamente".
De fato, o papel aceita muita coisa e os microfones também. Falar e escrever é bastante fácil, seja asneira ou não. E a liberdade de expressão, direito fundamental, nem sempre é bem compreendida em suas limitações legais no Brasil.
Não vou cuidar da incrível fala do cantor sertanejo, que não merece comentários nem do caso da exposição, pois muito já se falou sobre este assunto que, penso, está esgotado. Mas, num dos comentários sobre liberdade de expressão, vi que algum desses comentaristas defendia abertamente a publicidade machista de cerveja, sob o pretexto de que se tratava de liberdade de expressão.
Ora, a liberdade de expressão é uma das mais importantes garantias constitucionais. Ela é um dos pilares da democracia. Falar, escrever, se expressar é um direito assegurado a todos.
Todavia, esse direito, entre nós, não só não é absoluto, como sua garantia está mais atrelada ao direito de opinião ou àquilo que, para os gregos na antiguidade, era crença ou opinião ("doxa"). Essa forma de expressão aparece como oposição ao conhecimento, que corresponde ao verdadeiro e comprovado. A opinião ou crença é mero elemento subjetivo. A democracia dá guarida ao direito de opinar, palpitar, lançar a público o pensamento que se tem em toda sua subjetividade. Garante também a liberdade de criação.
Mas, quando se trata de apontar fatos objetivos, descrever acontecimentos, prestar informações de serviços públicos ou oferecer produtos e serviços no mercado, há um limite ético que controla a liberdade de expressão. Esse limite é a verdade e o respeito às garantias e direitos estabelecidos.
Com efeito, por falar em Grécia antiga, repito o que diziam: "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". A mentira é, pois, simples assim.
Examinando essa afirmação, vê-se que mentir é algo consciente; é, pois, diferente do erro, do engano, que pressupõe desconhecimento (da verdade), confusão subjetiva do que se expressa ou distorção inocente dos fatos.
Em nosso sistema jurídico temos leis que controlam, em alguns setores, a liberdade de expressão na sua realidade objetiva. Veja-se, por exemplo, a imposição para que a testemunha, ao depor em juízo, fale a verdade. Do mesmo modo, os advogados e as partes têm o dever de lealdade processual, proibindo-se que intencionalmente a verdade dos fatos seja alterada, adulterada, diminuída, aumentada etc. Esse dever de lealdade ___ em todas as esferas: administrativa, civil e criminal ___ é a ética fundamental da verdade imposta a todos.
O mesmo se dá no regime de produção capitalista. Com base nos princípios éticos e normativos da Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) regulou expressamente a informação e a publicidade enganosa e abusiva (art. 371), proibindo-as e tipificando-as como crime (arts. 67 e 682).
No que diz respeito, pois, às relações jurídicas de consumo, a informação e a apresentação dos produtos e serviços, assim como os anúncios publicitários não podem faltar com a verdade daquilo que oferecem ou anunciam, de forma alguma, quer seja por afirmação quer por omissão. Nem mesmo manipulando frases, sons e imagens para de maneira confusa ou ambígua iludir o destinatário do anúncio: o consumidor. A lei quer a verdade objetiva e comprovada e, por isso, determina que o fornecedor mantenha comprovação dos dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem.
Aproveito esse ponto para eliminar uma confusão corrente quando se trata de criação e verdade em matéria de relações de consumo: Não existe uma ampla garantia para a liberdade de criação e expressão em matéria de publicidade. O artista goza de uma garantia constitucional de criação para sua obra de arte, mas o publicitário não.
Um anúncio publicitário é, em si, um produto realizado pelo publicitário ou coletivamente pelos empregados da agência. Sua razão de existir funda-se em algum produto ou serviço que se pretenda mostrar e/ou vender. Dessa maneira, vê-se que a publicidade não é produção primária, mas instrumento de apresentação e/ou venda dessa produção. Ora, como a produção primária de produtos e serviços tem limites precisos na lei, por mais força de razão o anúncio que dela fala. Repito: a liberdade de criação e expressão da publicidade está limitada à ética que dá sustentação à lei. Por isso, não só não pode oferecer uma opinião (elemento subjetivo) como deve sempre falar e apresentar a verdade objetiva do produto e do serviço e suas maneiras de uso, consumo, suas limitações, seus riscos para o consumidor etc. Evidentemente, todas as frases, imagens, sons etc. do anúncio publicitário sofrem a mesma limitação.
Naturalmente, a publicidade abusiva que envolva elementos discriminatórios, racistas, machistas há de ser expurgada. E, ao contrário do que defendeu o articulista, uma grande parte dos anúncios de cerveja é sim evidentemente machista. Só não vê quem não quer.
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1 "Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.
§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança."
2 "Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva:
Pena Detenção de três meses a um ano e multa.
Parágrafo único. (Vetado).
Art. 68. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança:
Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa:
Parágrafo único. (Vetado)."