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O automóvel é um produto fora da lei?

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Atualizado às 08:51

Vivemos um momento de conflitos e indefinições no que diz respeito às garantias e direitos estabelecidos não só no Brasil, como em vários outros países. É uma época em que as opiniões estão em toda parte, divididas ou unificadas, muitas delas contraditórias em relação às outras, embora tratem do mesmo objeto.

Bem, não serei eu a engrossar esse caldo um pouco indigesto. Mas, gostaria de retornar a um tema que gera um certo embate e que tem relação direta com mercado de consumo e leis de proteção ao consumidor. Isso, naturalmente, como um convite à reflexão de um assunto um pouco fora da política (falo "um pouco fora" porque numa sociedade democrática falar de leis, em algum sentido, é também falar de política).

Cuidarei dos veículos automotores e do excesso de velocidade e o farei pela via do direito do consumidor, a partir de um paradoxo e também de um problema de lógica do sistema legal: levarei em consideração o fato de que um automóvel não passa de um produto controlado e regulado pela legislação.

Muito bem. Dizem os artigos 8º "caput" e 10 "caput" do Código de Defesa do Consumidor:

"Art. 8° Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito".

"Art. 10. O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança".

Por uma série de normas e procedimentos, as autoridades responsáveis nos respectivos setores regulam a produção dos bens de consumo, visando não só assegurar sua qualidade, adequação, durabilidade etc., como os vários aspectos que envolvem a segurança para evitar que os consumidores possam sofrer danos com seu uso.

A questão que coloco, então, envolve conforme antecipei um dos paradoxos da sociedade capitalista, assim como aponta para um problema de implementação efetiva dos elementos lógicos que deveriam dar base ao sistema jurídico. Explico: Se a velocidade máxima permitida para tráfego por rodovias no Brasil - não só no Brasil, mas é o que nos interessa - é de 120km por hora, como é que se pode permitir que a indústria automobilística produza e venda veículos que alcancem velocidades muito superiores a isso? (Grifei o muito porque, efetivamente, na atualidade qualquer automóvel consegue atingir velocidades de 150, 180, 200 Km por hora e mais).

São essas, portanto, as perguntas: se a velocidade máxima permitida é de 120km/hora, a lei não deveria simplesmente proibir a produção de veículos que pudessem atingir velocidades superiores? E mais, ainda que sem norma específica, ao vender tais veículos, a indústria não estaria infringindo as normas de segurança fixadas no CDC, conforme se pode ler nos artigos 8º e 10 que acima transcrevi?

(Faço um parêntese para lembrar algo conhecido de todos. mas que não posso abordar para não fugir do assunto. Os veículos estão, como apontei, preparados para infrigirem a lei e, além disso, algumas montadoras fazem anúncios publicitários oferecendo seus produtos realçando exatamente essa "qualidade", mostrando automóveis com muita potência e capazes de atingir altas velocidades e até mesmo em tempo recorde! E isso para seduzir seus potenciais compradores!).

Deixo, assim, postas essas questões para reflexão dos leitores, lembrando, como gosto sempre de fazer, que para nós da área jurídica o que importa é o rigor do argumento, a lógica que lhe dá sustentação, assim como seu uso harmônico e coerente em relação ao sistema jurídico e sua teleológica razoabilidade.

No entanto, prosseguindo no mesmo tema, trago ainda outro ponto que envolve o mesmo aspecto e que também está regulado no CDC. Enquanto não se proíbe a fabricação desses verdadeiros carros de corrida, resta perguntar e responder uma questão relativa a responsabilidade pelos acidentes ocasionados pelos verdadeiros bólidos dirigidos em velocidades acima do máximo permitido. Com efeito, dispõe o art. 12 do CDC:

"Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos".

É regra que trata da responsabilidade civil objetiva em caso de acidente de consumo. O CDC é bastante restrito quanto às excludentes de responsabilidade (na verdade, excludentes do nexo de causalidade) capazes de isentarem os fornecedores indicados.

Para nossa análise, o que interessa é o previsto no inciso II do parágrafo 1º e o inciso III do parágrafo 3º do mesmo artigo. Leiamos os dois parágrafos:

"§ 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I - sua apresentação;

II - o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

III - a época em que foi colocado em circulação."

"§ 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar:

I - que não colocou o produto no mercado;

II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste;

III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro".

O problema é excesso de velocidade. Esta pode se dar de duas formas:

a) a norma de trânsito proíbe transitar acima de 60km/hora ou 70km/hora etc e o motorista supera essas velocidades, por exemplo, transitando a 100km/hora e causa acidente;

b) independentemente do limite estabelecido ou que seja o máximo de 120km/hora, o motorista trafega a 150km/hora, 180km/hora ou mais.

Pergunto: se o fabricante somente não responde quando comprove a culpa exclusiva do consumidor e, se este, assumindo os riscos e agindo com culpa, desenvolve velocidade muito acima do permitido e causa o acidente, não estar-se-ia diante de um caso de não exclusão da responsabilidade porque a culpa não seria exclusiva, mas concorrente, uma vez que o produto em si é a causa primária que permite a infração e o acidente correspondente?

Veja-se que o legislador utilizou-se do advérbio "só" no "caput" do art. 12 do CDC para deixar claro que a excludente somente se verifica naquelas hipóteses e, por isso, quando se refere a ato do consumidor, exige a prova de sua culpa exclusiva. Assim, quando o consumidor trafega acima do permitido, mas dentro do possível admitido pelo sistema legal (por exemplo, a 100km/hora), se causar acidente sua culpa é exclusiva, pois infringiu sozinho a lei. Ademais, nesse caso, a hipótese do inciso II do § 1º também socorre o fabricante, eis que o veículo está sendo usado dentro dos riscos que razoavelmente dele se esperam.

O problema se dá quando o consumidor ultrapassa o máximo permitido de 120km/hora. Sua culpa, nesse caso, é exclusiva ou concorrente? O embaraço surge aqui, pois se a indústria vende veículos que são capazes de superar - e em muito - o máximo da velocidade permitida (e, de certo modo, alguns anúncios publicitários e matérias especializadas de tevê, jornais e revistas até estimulam o movimento em alta velocidade) quando o consumidor (culpado, evidentemente) trafega a mais de 120km/hora, a culpa não seria concorrente? E, nesse caso, o fabricante seria também responsável pelos danos?

Quando fiz esse tipo de questionamento em sala de aula, surgiram comparações com armas tais como facas e revólveres. Disseram: se o consumidor usa a faca para matar ao invés de utilizá-la na cozinha ou o revolver também para matar ao invés de para se proteger, então age com culpa exclusiva. O fabricante não tem nenhuma relação com a ocorrência. Verdade. Mas, a diferença é que a faca é feita para cortar e o revólver para atirar. Com esses objetos o defeito se dá se eles não cumprirem o fim ao qual se destinam (cortar e atirar). Com o automóvel é diferente: ele nasce infrator, pois está apto a ir além do permitido legalmente.

Poder-se-ia querer lançar toda culpa no consumidor em função da possiblidade real do meio. Entrega-se a ele um veículo que facilmente atinge velocidades excessivas, mas ao mesmo tempo se erige um comando legal (e moral) que deve agir em sua consciência para impedir que ele acelere mais quando atinja o limite máximo. Tubo bem. Mas, quando ele passa do limite o faz porque o meio permite e quem o fabricou é que, nesse ponto passa a agir com ele. Daí a concorrência de culpas.

São essas minhas considerações e, pois, minha contribuição para um debate sobre essa questão do excesso de velocidade, desta feita pela via do Direito do Consumidor.