M.A.S.H., profissionalismo e neutralidade: dilemas da consciência
quinta-feira, 7 de abril de 2016
Atualizado às 08:08
Nos últimos dias, o noticiário mostrou que uma médica pediatra negou-se a atender uma criança porque sua mãe era filiada ao PT. E, comentando o assunto na rádio Band News na data de 31 de março, o âncora, Ricardo Boechat, disse que havia chegado ao conhecimento dele que, em uma escola privada, um professor, defensor do PT, ameaçara de morte um aluno que não pactuava de suas ideias. Aliás, infelizmente, vivemos um momento nas redes sociais em que o ódio está sendo disseminado abertamente e de forma apaixonada, sem que se leve em consideração a realidade dos fatos, triste realidade...
Mas, caro leitor, eis o tema para reflexão: médicos que decidem se atendem ou não um paciente pela filiação partidária? Professores que perseguem alunos que não pensam como eles na posição política? Como disse meu amigo Outrem Ego, sempre atento às questões éticas, "se a moda pega, muito em breve teremos profissionais da saúde palmeirenses negando-se a atender doentes corintianos".
Esses episódios fizeram-me lembrar da impagável série de tevê americana, M.A.S.H. exibida de 1972 a 1983. A premiada série era um aberto manifesto antibélico, que tinha como alvo a Guerra do Vietnã, mas que se passava numa guerra anterior, a da Coreia, igualmente violenta. Trata-se de uma sátira com episódios que faziam pensar. Eis um deles: os médicos, dentre eles um, interpretado pelo ator Alan Alda, estavam aguardando feridos numa cabana montada no meio da selva e tinham poucos equipamentos e apenas uma maca, que permitia fazer o atendimento de uma pessoa por vez.
Eis que chegam ao mesmo tempo dois feridos: um compatriota americano e um soldado aliado sul-coreano. Surge um impasse: qual deles atender primeiro? Risco de morte havia para os dois e a demora poderia permitir o salvamento de apenas um. De forma irônica e trágica, os médicos, que eram todos americanos, passam, então, a discutir qual eles atenderiam em primeiro lugar. Perguntam se a nacionalidade era importante, se a idade contaria, etc., elementos que pudessem ajudar na solução. Para nós não importa muito qual foi a saída (que me lembre, os médicos decidiram atender o que chegou alguns segundos antes do outro); o importante era o dilema moral colocado (ou, no caso, seria um dilema jurídico, já que se tratava de aliados numa guerra?).
Num outro episódio, um comandante do exército e um médico caminham pela mata quando são atacados por soldados inimigos. O comandante entrega uma arma ao médico e diz: "Atira!", mas ele se nega. Responde: "Se eu colocar uma bala em alguém, depois terei de remover". O comandante insiste e argumenta que é para salvar a vida deles próprios. Daí, o médico fecha os olhos, aponta na direção dos inimigos e grita "Cuidado, estou atirando..."
Bem, tratava-se de ficção e sarcasmo. Porém, fazia-nos refletir. Pode mesmo um médico negar-se a fazer um atendimento, ainda que não seja de urgência, somente porque discorda da posição política do paciente?
E um professor, pode avaliar (ou ameaçar, o que é pior) um aluno que não professe a mesma convicção ideológica?
Sabemos que a defesa da neutralidade científica é um dilema antigo e que foi bem desenvolvido por Max Weber no início do século XX (ele defendia que o cientista há de ser neutro, que ele deve operar "objetivamente" seus instrumentos de pesquisa, não deixando que seus valores pessoais interfiram nos trabalhos de observação dos fatos) e também sabemos da dificuldade de sua implementação humana e real. Mas, como perguntou meu amigo O. Ego: "Se não se puder trabalhar com, ao menos, uma 'racionalidade objetiva e neutra' o mais possível, como é que se exercerá certas profissões? Em especial aquelas que exigem uma apuração e aplicação técnica, como a medicina, a biologia, as perícias em geral, e em muitos pontos a judicatura, assim como outras profissões jurídicas, e também a psiquiatria etc.? Como é que um juiz poderia julgar um processo em qualquer instância do Poder Judiciário desde a primeira até as Cortes Superiores? Como é que um delegado apuraria um crime ou um Membro do Ministério Público faria um acusação? Como um psicanalista ou um psiquiatra atenderia um paciente, um doente, um psicopata? Um médico não tem que cuidar do corpo da pessoa? De sua saúde e de sua doença? Uma discussão contratual posta em juízo não tem de ser examinada segundo as regras legais e não em função do que pensam as partes a respeito do momento político? E numa denúncia por furto ou roubo, o time de futebol do coração do acusado importa?"
"Sim", disse ele, mas colocou a questão da técnica: "Não estou usando de retórica. Não! A questão é de atitude mental, racional e profissional. Quer se goste ou não do time para qual torce um doente, o médico tem de atende-lo de igual modo como aos demais. E o mesmo se dá com o professor em sala de aula etc.".
De fato.
Quanto a certos profissionais, como o médico, o psiquiatra, o perito, a magistrado, o delegado, etc., o que se espera é que sua conduta esteja corretamente ligada aos elementos técnicos de sua profissão, independente do fato dele gostar ou não do engajamento ou do pensamento político de seu cliente ou das pessoas envolvidas com seu mister, nem pelo fato delas serem mais importantes ou menos importantes socialmente. Trata-se de um limite imposto à consciência pela necessidade de exercício pleno e correto da profissão.