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A proteção da criança-consumidora

Rizzatto Nunes

quinta-feira, 31 de março de 2016

Atualizado em 30 de março de 2016 16:00

Aproveito a vitória obtida pelo Instituto Alana no STJ, no início deste mês, numa ação judicial visando a coibir a utilização de publicidade abusiva que tenha como público-alvo as crianças, para, mais uma vez, retornar a esse importante tema regulado pelo CDC há mais de 25 anos (o CDC, como se sabe, fez aniversário de 25 anos de sua entrada em vigor no último dia 11).

Nós, adultos, em matéria de consumo, estamos praticamente perdidos nesta sociedade capitalista que tudo produz - e qualquer coisa produz... - e que tudo vende, amparada, sustentada e auxiliada pelo marketing moderno com suas técnicas de ilusão e controle. Para o adulto, o horizonte possível de liberdade desse enredo que nos obriga a consumir, consumir e consumir é o da tomada de consciência do processo histórico, que se instituiu a partir das chamadas revoluções burguesa e industrial e que vem sendo oferecida como um projeto de liberdade. Falsa liberdade, na medida em que quase todo seu exercício resume-se a adquirir produtos e serviços, cuja escolha é limitada àquilo que é decidido unilateralmente pelos fornecedores.

Vamos, pois, alguns de nós, lutando contra o poder impositivo do mercado e outros nem se dando conta desse aprisionamento. Muito bem. Pergunto: é esse o futuro que desejamos para nossas crianças? É esse tipo de sociedade que queremos manter para que elas vivam quando crescerem? Uma sociedade em que os indivíduos medem-se pelo que possuem, pelo poder de compra, pelo que podem ter e não por aquilo que são?

Claro que nem toda culpa é do mercado e, na medida em que os adultos são capazes de pensar, raciocinar e decidir, certamente eles são responsáveis por seus atos de compras (nesse aspecto, por exemplo, a web é boa auxiliar na descoberta de produtos e serviços que podem ou devem ser comprados, no aconselhamento para evitar consumo excessivo e sem sentido etc..). Porém, o modelo vigente exerce grande influência sobre as pessoas, de tal modo que grande parte delas acaba se alienando nas compras e acredita piamente no que vê na publicidade: a pressão é tão forte que atordoa o consumidor de tal modo que ele, jogado à própria individualidade, nem sempre sabe como agir. Vendo tevê, por exemplo, assiste-se ao mundo perfeito dos anúncios publicitários: o de bancos mostrando seus gerentes sempre sorrindo e oferecendo vantagens a seus clientes, enquanto na realidade estes são, às vezes, por eles enganados. Há, também, a propaganda de veículos maravilhosos, que nunca quebram; de serviços telefônicos excelentes etc.; enfim, um longo desfile de produtos e serviços muito diferentes do real. Há, pois, dois mundos: o da publicidade e o dos fatos.

Naturalmente, repito, é incumbência dos adultos conseguir fazer a leitura de tudo o que lhe é dirigido, para tentar desvendar as enganações e discernir sobre o que é válido e verdadeiro. Mas, pergunto: e as crianças, como estão posicionadas nesta sociedade capitalista? Como é que elas recebem o espetacular assédio do marketing e suas armas?

Com certeza, a limitação ou, até mesmo, o fim da publicidade de produtos e serviços dirigida às crianças seria recebida como uma dádiva pelos milhões de mães e pais que lutam duramente para a mantença de suas famílias e sofrem com o assédio dessas ofertas. Mas, enquanto isso não vem (se é que virá), cabe aos pais o dever de vigilância.

É verdade que muitos desses pais já foram absorvidos por todas as formas de consumo e, inclusive, utilizam-se do próprio mercado para controlarem seus filhos, o que é uma pena. Não que seja simples. Ainda que os pais tenham o costume de limitar a exposição de seus filhos à tevê, basta um pouco para a percepção do ataque (uma verdadeira guerra de anúncios invade a sala ou o quarto em poucos minutos!). E, mesmo que o filho tenha o uso de internet limitado, é suficiente também apenas algum tempo de navegação para estar sujeito a uma explosão de ofertas.

E, se não bastasse isso, há toda a sedução do merchandising feito em programas de tevê, filmes de cinema, vídeo e até teatro infantil nacional ou importado, o apelo dos colegas de escola, dos parentes, das lojas nos shopping-centers, pois, afinal, vive-se na cidade entre as demais pessoas, o contato é inevitável e não há mesmo nada de errado em frequentar shoppings, cinemas, teatros, viajar, assistir tevê etc. Isso tudo, digamos assim, no campo das ofertas lícitas. Mas, existe também uma enormidade de campanhas e anúncios enganosos e abusivos dirigidos diretamente às crianças.

O problema da publicidade em geral dirigida às crianças e também da publicidade ilícita é que ela cria um jogo colocando as crianças (isto é, os filhos) contra os pais. Estes, inseridos nesta sociedade capitalista - e também eles, como acima referi, sujeitos aos estímulos, malandragens e manipulações do marketing - entram nesse jogo sem perceber e, muitas vezes, por se sentirem culpados. Alguns pais trabalham o dia inteiro e têm pouco tempo livre para dedicarem aos filhos; outros procuram propiciar aos filhos o que nunca tiveram - o que não é raro, porque a maior parte dos produtos e serviços existentes atualmente não existia na infância dos pais, e com a produção em massa muitos deles tornaram-se acessíveis. Pressionados pelos filhos, os pais compram e dão os produtos.

Desse modo, as crianças vão sendo inseridas no mundo capitalista dos produtos desnecessários muito prematuramente e também vão perdendo a infância antes da hora. Como observa a educadora Claudia Freesz Calmon, com toda razão: a relação entre pais e filhos passa a ser intermediada por objetos - produtos adquiridos com sacrifício ou não. Se for com sacrifício, acresce-se à intermediação feita pelo objeto o sentimento de culpa. As crianças, de seu lado, aprendem a se relacionar pedindo coisas e os dois lados trocam muitas vezes a atenção e o carinho por produtos.

Sei que cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos. É preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisição da maior parte das bugigangas que são oferecidas; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Tem-se que mostrar para as crianças, com os próprios exemplos vividos por elas, a inutilidade da maior parte de seus produtos.

Mas, lembrando a vitória judicial do Instituto Alana: cumprir o CDC, que está em vigor há mais de 25 anos, ajuda bastante!