O problema da segurança jurídica e sua base de confiabilidade
quinta-feira, 1 de outubro de 2015
Atualizado em 30 de setembro de 2015 09:44
Recentemente, proferi uma palestra num Congresso aqui em São Paulo. Foi-me pedido que eu discorresse sobre o tema da segurança jurídica, algo tão extenso quanto o próprio sistema jurídico existente e todas as suas formas de interpretação e aplicação e que, no Brasil, envolve também aspectos políticos, institucionais e culturais. Nós ainda dizemos que há leis que pegam e leis que não pegam. Pior: pensando sobre o assunto, verifico que o buraco (da insegurança jurídica) é muito fundo.
Isso envolve, naturalmente, os direitos em geral e também os dos consumidores. Aliás, como ultimamente tenho tratado muito das questões que envolvem os entes públicos, quero deixar consignado que na sociedade capitalista em que vivemos consumidor e cidadão se confundem: a maior parte dos benefícios sociais que envolvem produtos e serviços são típicos de consumo, o que inclui segurança pública, transportes, saúde, meio ambiente, etc..
Começo, então, concedendo a palavra a meu amigo Outrem Ego. Ele conta um episódio dos anos noventa do século passado, que envolveu sua mulher e o tio dela, um juiz do Tribunal Austríaco, morador da cidade de Innsbruck, na região do Tirol na Áustria. Ele conta o seguinte:
"Estávamos minha mulher, o tio dela e eu andando pelas ruas da charmosa cidade de Innsbruck. Era janeiro, inverno e havia nevado muito. Enquanto caminhávamos pela calçada, um pedaço de gelo caiu de cima de um prédio quase me atingindo na cabeça. Imediatamente, pedi a minha mulher, que fala alemão, que perguntasse ao tio dela de quem era a responsabilidade pelos danos acaso houvesse um acidente e eu me ferisse. Ele respondeu que a responsabilidade era do dono do imóvel e também da prefeitura municipal, que tem o dever de fiscalizar para que esse tipo de acidente não aconteça."
"Em função da resposta, resolvi perguntar quanto tempo demoraria uma ação judicial contra a prefeitura de Innsbruck para que a pessoa pudesse ser indenizada. (quero dizer minha mulher falou com ele em alemão). Ele não entendeu a pergunta. Minha mulher reformulou e fez o questionamento novamente e, daí, ele disse que não havia necessidade de propositura de ação judicial. Bastava um pedido administrativo junto à prefeitura. Perguntamos, então, quanto tempo demorava para que a pessoa recebesse o reembolso dos valores dispendidos. Ele disse, um pouco constrangido: 'Infelizmente, nos dias atuais o serviço não anda muito bom. Eles demoram três ou quatro dias para pagar'".
Toda vez que penso em precatórios, lembro-me dessa história contada por meu amigo há muitos anos. Por nossas terrinhas, não só a administração pública não cumpre suas obrigações pagando suas dívidas, como luta incessantemente na Justiça para não fazê-lo. E quando condenada, com trânsito em julgado, o credor é obrigado a ficar na fila dos precatórios na expectativa de receber aquilo a que tem direito de longa data. Lamentavelmente, mesmo com a edição de nossa democrática Constituição Federal (CF) de 1988, essa questão não foi bem cuidada. Veja-se que o artigo 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) diz que "Ressalvados os créditos de natureza alimentar, o valor dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição, incluído o remanescente de juros e correção monetária, poderá ser pago em moeda corrente, com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de oito anos, a partir de 1º de julho de 1989, por decisão editada pelo Poder Executivo até 180 dias da promulgação da Constituição" (grifei).
E, pior ainda: por intermédio da Emenda Constitucional 30 de 2000, foi acrescentado o art. 78 ao ADCT que dispõe: "Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos" (grifei).
Isso tudo, sem falar no imbróglio da correção monetária e dos índices aplicáveis envolvidos numa discussão judicial sem fim, como bem mostrou este poderoso rotativo Migalhas em matéria publicada em 27/2/15 intitulada "Precatórios Federais: um calote judicial"1.
Bem, não preciso mais prosseguir neste assunto. Falar em segurança jurídica diante de um quadro desses é muito difícil mesmo.
A questão da segurança tem relação com a confiança, que as pessoas podem ou devem ter nas instituições, nas leis, nas demais pessoas, etc., e até em si mesmas. Confiança é, pois, um substantivo que funciona como um sentimento que gera segurança. Essa segurança, por sua vez se estabelece como uma base de convicção que alguém pode ter em relação à atitude de outrem (os cônjuges e namorados reciprocamente, os amigos entre si, pais e filhos, etc..) e em relação às leis e instituições (leis devem ser cumpridas; a Justiça deve ser feita, a democracia é o regime da participação popular, etc..).
O inverso é verdadeiro: a falta de confiança gera insegurança e enfraquece as convicções que as pessoas possam ter: "Ele ou ela traiu minha confiança"; "Como confiar na lei que nunca é cumprida"?
Um aspecto importante em relação à confiança é que ela se projeta para o futuro: a pessoa acredita que o outro em que ela confia se comportará de certo modo previsível em alto grau: "Tenho certeza que terei o apoio de meu pai"; "Certamente meu marido endossará minha decisão"; "Estou convicto que ele fará o que combinamos". Confiança e previsibilidade andam juntas, portanto.
O problema é que essa segurança se estabelece pelas relações que advêm do passado: alguém só confia em alguém ou em alguma instituição se a experiência pregressa mostra que é possível confiar (e que vale a pena confiar).
Este é, pois, o nosso drama, meu caro leitor: como será possível estabelecer segurança jurídica na sociedade, se nosso passado não é lá dos mais confiáveis? Pois, como dizia o impagável Nelson Rodrigues, "no Brasil, até o passado é imprevisível".
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Ainda voltarei a este assunto.
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