A vitória de Pirro do capitalismo - parte II
quinta-feira, 29 de maio de 2014
Atualizado em 28 de maio de 2014 11:54
Continuo abordando alguns dos temas para tentar responder a questões que envolvem a vitória do capitalismo como o regime que deu certo. Como disse antes, para defender essa afirmação, os neoliberais de plantão sempre têm na manga dados e números que o demostrariam. Tentarei, pois, responder as seguintes questões: do que trata essa vitória? Quem são os vitoriosos? Quais foram os louros colhidos? Se essa vitória está ligada ao marco civilizatório, este foi atingido? A humanidade, de fato, tornou-se melhor, mais feliz? E o planeta Terra como está?
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No artigo anterior, mostrei a enorme devastação do meio ambiente feita pelo modelo de produção e consumo. Hoje trato da questão da superpopulação e da excepcional diferença social reinante. Não entrarei em questões subjetivas e de qualidade de vida, que são por demais conhecidas. Ficarei apenas com números, que não deixam qualquer margem a dúvidas ou interpretações espúrias sobre a realidade.
Mas, antes de prosseguir, gostaria de consignar que, apesar de utilizar aqui dados estatísticos, não sou daqueles que acreditam cegamente nos números. Algumas pesquisas são bem feitas, mas muitas padecem de falhas não só nas expressões utilizadas como nos objetos escolhidos para a análise. Para ficar com alguns exemplos do que quero dizer, é muito comum manchetes que dizem: "Criminalidade subiu 200 por cento em tal local". Vamos checar e vemos que é verdade: antes havia 1 crime, agora são 3. Igual a 200%. Ou, então, o inverso; "No último feriado, uma vitória: os acidentes caíram 20%". A queda parece relevante, mas quando olhamos os dados vemos que antes eram 300 mil acidentes, agora são só 240 mil! Há várias estatísticas desse tipo.
Números e estatísticas servem também para iludir. Como diria meu amigo Outrem Ego: "Se nós dois saímos para jantar e eu como dois frangos e você não come nenhum, na média comemos um frango cada um. Só que, na realidade, eu fico empanturrado e você com fome". Ou então: "Se uma pessoa coloca a cabeça no forno e o pé no congelador, pode até ser que a temperatura média de corpo seja boa, mas a chance de sobrevivência é nenhuma..."
Enfim, quando se fala em renda per capta, por exemplo, esse é sempre um dos problemas, pois a divisão comporta poucos que ganham muito e muitos que ganham pouco. A média pode ser boa, mas muitos seres humanos estão na faixa de pobreza extrema.
Por isso tudo, tenho cautela quando uso dados estatísticos e números, mas em alguns casos eles são, pelo menos, o mínimo do que se pode observar. Ou, dizendo em outros termos, alguns números servem para mostrar uma realidade que pode ser pior do que se apresenta. Penso que é o caso dos dados que usarei neste artigo. Talvez os números não sejam precisos por que a situação deve ser pior, o que, certamente, é mais assustador. Vamos lá.
Como antecipei, a população mundial está em explosão demográfica desde a época da Revolução industrial a partir de meados do século XVIII. Para se ter uma ideia, demorou 126 anos para que a população do planeta passasse de um bilhão de habitantes para dois bilhões (de 1802 a 1928). Para atingir três bilhões, apenas 33 anos (em 1961) e para chegar aos 4 mais 13 anos (em 1974). E assim, numa média de 12 a 15 anos, chegou a sete bilhões em 2011. Atualmente, somamos mais de sete bilhões e 200 milhões de habitantes1.
A Terra nunca foi habitada por um tão grande contingente de seres humanos. Aliás, basta olhar o quadro acima da evolução do número de habitantes para ver que isso se tornou um problema (em termos de ocupação do espaço existente) e uma oportunidade de aumento de vendas e receitas (para os exploradores capitalistas). Contudo, com o modelo de produção e consumo implantado, o planeta e as pessoas estão sofrendo.
Infelizmente, ao chegarmos ao século XXI, vê-se que não atingimos um estágio civilizatório de que possamos nos orgulhar.
Um relatório da ONG britânica Oxfam divulgado recentemente - e que já referi nesta coluna -- mostra que nos últimos 25 anos, a riqueza ficou cada vez mais concentrada nas mãos de poucos. O patrimônio das 85 pessoas mais ricas do mundo equivale às posses de metade da população mundial, isto é, um grupo de pessoas que caberia num ônibus de dois andares detém o patrimônio de mais de 3 bilhões e 600 milhões e seres humanos. "Este fenômeno global levou a uma situação na qual 1% das famílias do mundo são donas de quase metade (46%) da riqueza" do planeta2.
Veio a crise econômica de 2008/2009. Passaram cinco anos e os indicadores seguem apontando para uma exagerada concentração da riqueza ao redor do globo. De acordo com o relatório "Credit Suisse 2013 Wealth Report", um dos mapeamentos mais completos elaborados sobre o assunto, 0,7% da população mundial concentra 41% da riqueza mundial, confirmando os dados fornecidos pela Oxfam.
Em termos de valores, a riqueza mundial atingiu em 2013 o recorde de todos os tempos: US$ 241 trilhões. Apesar desse crescimento, a desigualdade social continuou absurda: os 10% mais ricos do planeta detêm atualmente 86% da riqueza mundial.
A divisão desse patrimônio em milhões de dólares mostra o seguinte: 0,7% da população possuem mais de US$1 milhão. 7,7% possuem entre US$100 mil e US$1 milhão. 22,9% possuem entre US$10 mil e US$100 mil. E o restante, a grande maioria, 68,7%, possuem menos de US$10mil de patrimônio. Anoto que nessa última faixa estão aqueles milhões de seres humanos que não possuem nada! (Eis aqui uma das falhas estatísticas que comentei. Ou seja, o real é muito pior). Vejamos outros dados.
O valor fixado pelo Banco Mundial para delimitar a linha de pobreza é de 1,25 dólares por dia. Segundo o Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), estão nessa condição 1 bilhão 140 milhões de seres humanos3. É bom realçar esse aspecto quantitativo, pois é possível encontrar artigos "elogiando" o "avanço" na luta contra a fome e a miséria, mostrando que os índices têm caído! Um bilhão, cento e quarenta milhões de humanos (sobre) vivem (?) com uma renda de 1,25 dólares/dia!
E, ainda de acordo com o Pnud , 1 bilhão 570 milhões de pessoas vivem em estado de "pobreza multidimensional", que é aquela em que há carências em várias dimensões, como saúde, educação e renda. O IPM (Índice de Pobreza Multidimensional) foi criado para ir além das medidas tradicionais de pobreza, que se baseiam apenas na renda4.
Por fim, a pesquisa intitulada Índice Global da Fome do Instituto Internacional de Investigação sobre Políticas Alimentares (IFPRI) mostra que pelo menos 1 bilhão de pessoas sofrem de desnutrição no planeta, sendo que metade são crianças5.
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Examinando as pesquisas, com esses números que mostram cabalmente o incrível sofrimento por que passam milhões de seres humanos todas as horas, todos os dias, semanas, meses e com muito pouca esperança de mudança, quase esqueço de pensar nas perguntas sobre a vitória do capitalismo globalizado.
Vitória?
Sim, como diria o Rei Pirro, outra vitória dessas e a humanidade estará perdida...
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Eu já tive oportunidade de indicar aqui nesta coluna os filmes abaixo nomeados. Mas, como ambos estão diretamente ligados ao que se assiste na sociedade capitalista contemporânea, não posso deixar de apontá-los novamente.
O primeiro, chama-se "Chicken-a-la-carte". É um documentário exibido num festival na Alemanha, que mostra uma realidade vivida neste nosso mundo globalizado capitalista, desorganizado, injusto e em que as riquezas são sempre muito mal distribuídas. Assista: é bem curtinho.
O segundo, é o filme do cineasta brasileiro Jorge Furtado, "Ilha das Flores" (disponível em DVD), um dos melhores filmes nacionais e que nos faz pensar na condição humana neste mundo incrivelmente desumano. É filme para ver, pensar e divulgar.
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1Current World Population e população mundial.
2O relatório é facilmente encontrado na web.
3Desigualdade mundial diminui, mas 1,57 bilhão ainda vive na pobreza.
4Idem, ibidem.