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Os criminosos trotes estudantis e o Direito do Consumidor

quinta-feira, 1 de março de 2012

Atualizado às 07:13

O Ministério Público Federal em Minas Gerais ajuizou ação civil pública contra o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas (IFSEMG) acusando a instituição de ter sido omissa, ao longo dos anos, em reprimir a prática de trotes estudantis em suas dependências e pleiteando o pagamento de indenizações. O trote estudantil, covarde e criminoso, não seria nenhuma novidade. Acontece que, no caso, trata-se de jovens que ainda nem ingressaram na Universidade. A escola oferecia alojamento estudantil, em regime de internato, a mais de cem alunos matriculados em cursos técnicos da área de ciências agrárias, para formação equivalente ao ensino médio. Seus estudantes são, em sua maioria, adolescentes com idade entre 14 e 16 anos de idade.


A humilhação causada aos novatos e abertamente praticada continua a ocorrer a cada início de ano letivo. Nos cursos superiores, os veteranos trogloditas demonstram uma incrível selvageria na recepção aos calouros. Pergunto: até quando as autoridades continuarão omissas nessa questão? Aliás, os próprios calouros, na maior parte dos casos, não conhecem seus direitos; não sabem que poderiam simplesmente se escusar de participar dos atos abusivos e chamar a polícia. Por isso, volto ao tema mais uma vez, deixando consignados os direitos envolvidos e lembrando que alguns atos estão tipificados como crimes. Abordo, também, a responsabilidade das instituições de ensino, com base nas garantias de proteção à saúde e segurança dos estudantes (consumidores) previstas no Código de Defesa do Consumidor.


Como já disse antes, o trote estudantil degradante, ao invés de integrar o aluno recém-aprovado, sempre foi um modo fascista de receber aqueles que ingressavam nas faculdades. Quando ingressei na Faculdade nos idos de 1976, nós estudantes já pensávamos que aquilo era um jeito muito estranho de dar boas vindas. Não só eu, mas muitos de nós, achávamos uma contradição os jovens ingressarem na faculdade - um restrito setor da elite brasileira - e se mostrarem tão mal educados: ao invés de agradecer ao privilégio e dar as boas vindas aos ingressantes, agiam como bárbaros, arrogantes e sádicos. Os trotes eram generalizados, sendo praticados em quase todas as escolas.


Felizmente, isso mudou em parte: são muitas as escolas que não só proíbem os trotes violentos, como vários Centros Acadêmicos (CAs), cônscios de suas responsabilidades como guardiões dos direitos e das liberdades, também os combatem. Muitas escolas e CAs, por exemplo, substituíram esse tipo de delito pelos chamados "trotes solidários": organizam festas de recepção, shows, teatros nos quais os calouros não só participam como distribuem produtos alimentícios, medicamentos e roupas para serem doados a Instituições de Caridade. Há escolas em que os veteranos montam grupos de recepção para integrar os calouros na vida universitária, mostrando o funcionamento efetivo do campus, o método de ensino, as condições reais de estudo, explicando as regras vigentes, etc. Isso é mesmo muito bom.


Todavia, não só os trotes continuam como, pelo visto, existem também no ensino médio, o que é assustador. Lembro que o trote violento - física, moral e psicologicamente - caracteriza prática criminosa prevista em nossa legislação penal. É possível também ao calouro-vítima buscar ressarcimento na esfera civil. Vejamos.


Não preciso, naturalmente, referir os casos-limite que ocasionaram mortes, crimes graves e que, efetivamente, quando ocorrem, são investigados. Citarei os demais casos que também são tipificados como crimes.


Cortar o cabelo total ou parcialmente do calouro contra sua vontade caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal-CP). O mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro.


Humilhar o calouro, ridicularizando-o publicamente, pintando seu corpo, fazendo "cavalgada" (modo esdrúxulo do veterano sentar sobre o calouro de quatro ao solo fingindo ser um cavalo, um jumento ou um burro), amarrá-lo, fazê-lo engatinhar pelas ruas, fazê-los andar um colado no outro como uma centopeia, e todos os outros métodos sádicos e degradantes semelhantes são caracterizados como crime de injúria (Artigo 140 do CP).


Obrigar o calouro a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e, se esse tipo de ação é praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre), o crime passa a ser qualificado e sua pena aumentada. Se, por acaso, o calouro resiste e não bebe, ainda assim está caracterizado o crime como tentativa (art. 14, II do CP).


Haverá outros crimes que podem ser praticados, além daqueles em que são cometidos assassinatos. E, anoto, também, que os delitos podem ser considerados em concurso, isto é, o veterano pode ser condenado como incurso em mais de um crime simultaneamente.


Um ponto merece destaque: o da participação das escolas. É incrível, mas algumas instituições de ensino simplesmente não tratam dessa questão. Agem como se não fosse problema delas, com a alegação de que o que ocorre fora do campus não é de seu interesse e responsabilidade. Mas, não é bem assim.


Primeiramente, anote-se que a obrigação moral é evidente. O trote só ocorre porque existe a escola, os calouros e os veteranos. Depois, é possível sim buscar responsabilizar a escola civilmente por faltar com seu dever de vigilância. A responsabilidade é clara quando os trotes ocorrem nas dependências e arredores das escolas (locais de entrada e saída, que devem ser controlados e vigiados pelas instituições de ensino). É verdade que quando o evento ocorre fora do campus, é mais difícil responsabilizar a escola, mas não se deve esquecer que, provavelmente, os calouros foram apanhados na porta ou dentro de seus muros.


O CDC, como adiantei, garante que os serviços colocados no mercado de consumo (dentre os quais estão os educacionais em todos os níveis) não podem acarretar riscos à saúde e segurança dos consumidores (art. 8º, "caput"). Esses riscos podem estar relacionados à prestação direta do serviço ou à sua omissão. Calouros sendo submetidos a atos vexatórios ou violentos contra sua incolumidade física e/ou psíquica dentro das dependências da escola implica clara responsabilidade por omissão. Do mesmo modo, há omissão quando é permitido que os calouros sejam levados (sequestrados) de dentro da escola, das portas ou imediações para que sejam submetidos aos atos degradantes em outro lugar. Consigno também que os danos físicos e/ou psicológicos sofridos pelos estudantes são indenizáveis, respondendo a escola pelo defeito de sua prestação de serviços de forma objetiva, com base no art. 14 do CDC.


Ademais, é de se colocar que o mínimo que a instituição de ensino pode fazer é proibir o trote e nos primeiros dias de aula distribuir avisos para os calouros, dizendo como eles devem agir para se proteger dos atos violentos praticados pelos veteranos. E a denúncia feita pelos calouros, gerando punição administrativa dos veteranos com suspensões e até expulsões, certamente, terá eficácia duradoura. A punição exemplar pode refrear os ânimos animalescos dos veteranos no futuro.


Não se deve esquecer que nem sempre os calouros querem participar desse tipo de masoquismo explícito. É preciso oferecer a eles um meio de se protegerem, assim como de falarem e serem ouvidos. Claro que, nesse ponto, também, as autoridades policiais têm se omitido, uma vez que, como disse, muitos trotes são feitos a céu aberto, em praça pública (literalmente), ruas e avenidas.


Realmente, assistindo às cenas, fica difícil acreditar que aqueles veteranos que estudam em conhecidas escolas de Direito, medicina, sociologia, engenharia, etc possam um dia exercer tais profissões com dignidade. Começam muito mal sua vida acadêmica e social. São antes selvagens que modernos estudantes universitários. É verdade que se trata de uma minoria, aliás, talvez a mesma minoria que anos depois, no período da formatura, faz os "botaforas"violentos.