O capitalismo barulhento e o sagrado direito ao sossego
quinta-feira, 18 de agosto de 2011
Atualizado em 17 de agosto de 2011 16:35
O capitalismo barulhento e o sagrado direito ao sossego
Meu amigo Walter Ego foi sábado passado ao cinema assistir ao último (e excelente) filme de Woody Allen, Meia noite em Paris. Como não poderia deixar de ser, algo aconteceu. E, dessa vez foi o barulho. Não o dos espectadores, mas do próprio exibidor. Ele me disse: "O que acontece com esse pessoal dos cinemas. Os trailers e demais besteiras que passaram antes do filme tinham uma altura para lá de dezenas de decibéis". E para comprovar que falava a verdade, completou: "E não era só eu a reclamar - embora só as pessoas que estavam perto pudessem ouvir. Duas senhoras sentadas à minha frente se queixavam e uma dizia já estar com dor de ouvido. Só melhorou durante a exibição do filme, quando o volume foi abaixado um pouco". Depois, perguntou: "Dá para processar o exibidor? E a vigilância sanitária não faz nada?"
Eu respondi que, claro, se a pessoa sofrer algum distúrbio, por exemplo, tendo dores de ouvido, pode sim pedir indenização por danos materiais - caso haja tido algum gasto ou perda financeira e, dependendo do impacto, até mesmo indenização por danos morais. E que, obviamente, cabe à fiscalização municipal checar o nível de decibéis produzido nas salas de exibição e, em caso de exagero, determinar o uso adequado dos instrumentos sonoros.
Como ultimamente os meios de comunicação têm abordado com certa regularidade a questão do barulho, que causa danos e nem sempre tem tratado as questões jurídicas como exige o caso, eu aproveito o episódio de meu amigo, para cuidar do assunto, lembrando, desde logo, que a violação do sossego no Brasil é mais um exemplo de como a sociedade é dividida e as pessoas são egoístas e desrespeitosas umas com as outras. Todos têm direito ao sossego, ao descanso, ao silêncio, direito este cada dia mais violado abertamente.
O interessante nessa garantia legal, é que ela é uma espécie de ausência: implica um obstáculo à ação das outras pessoas. Nos tempos atuais das grandes cidades e metrópoles ela se dá num "vazio", numa falta, num espaço, digamos assim, intocado.
Parece que nas sociedades industrializadas contemporâneas, nesta era capitalista do império globalizante em que vivemos, tudo faz barulho. Existe mesmo uma busca incessante em sua produção: são músicas em altos volumes nos automóveis, nas lojas e nos restaurantes, nos clubes, nas academias, nos intervalos dos espetáculos teatrais e nos cinemas, nos estádios de futebol, onde há também o barulho das torcidas que atinge toda a redondeza; nas festas de aniversário e de casamento; são shows ao vivo em estádios que vão muito além de suas arquibancadas; são bares, boates e danceterias que invadem o espaço dos vizinhos etc.
De fato, todo o sistema é assim. Há excesso de ruído por todos os lados: dos veículos nas ruas, das máquinas nas fábricas, das construções, das oficinas etc. Trata-se de um enorme amontoado de ações barulhentas, algumas ensurdecedoras, nem sempre em nome do tão sonhado progresso.
Não posso deixar de fora os sons "privados" dos aparelhos eletrônicos domésticos que saem pelas janelas de apartamentos e casas perturbando os vizinhos com seus exagerados volumes. Há também latidos incessantes de cachorros e até "imitações" dos papagaios (licenciados ou não pelo Ibama). Na sua crônica da revista Veja São Paulo, publicada há alguns meses, Walcyr Carrasco citou um caso de uma arara que perturbava os vizinhos de um prédio na cidade de São Paulo. Enfim, os barulhos, ruídos, sons em altos volumes entram em nossas casas e apartamentos a toda hora sem pedir licença, violando esse nosso direito sagrado ao silêncio e ao sossego.
É verdade que algumas pessoas até se acostumaram com isso e outras dizem que "gostam", mas o fato é que barulho não solicitado fere o direito sagrado ao sossego e pode gerar danos à saúde.
Não abordarei um aspecto importante dos sons não pedidos, como a imposição dos estabelecimentos comerciais de que seus frequentadores escutem as músicas por eles escolhidas (o que, por exemplo, em academias de ginástica e musculação pode ser altamente prejudicial não só pelo excesso de volume, como pela qualidade das músicas...). Tratarei do outro lado da questão: do direito ao silêncio, ao sossego e ao descanso, sagrados e que qualquer pessoa pode exigir.
O direto ao sossego é correlato ao direito de vizinhança e está ligado também à garantia de um meio ambiente sadio, pois envolve a poluição sonora. A legislação brasileira é bastante clara em estipular esse direito que envolve uma série de transtornos já avaliados e julgados pelo Poder Judiciário.
Por exemplo, o Judiciário já considerou que viola o direito ao sossego: a) o barulho produzido por manifestações religiosas, no interior de templo, causando perturbações aos moradores de prédios vizinhos; b) os ruídos excessivos oriundos de utilização de quadra de esportes; c) a utilização de heliporto em zona residencial; d) o movimento de caminhões que fazem carga e descarga de cimento, no exercício de atividade comercial em zona residencial; e) os ruídos excessivos feitos por estabelecimento comercial instalado em condomínio residencial; f) os latidos incessantes de cães; g) a produção de som por bandas que tocam ao vivo em bares, restaurantes, boates e discotecas; o mesmo vale para sons produzidos eletronicamente etc.
Anoto, antes de prosseguir, que o abuso sonoro reconhecido nas ações judiciais, independe do fato de, por acaso, ter sido autorizado pela autoridade competente. Num caso em que se considerou excessivo o ruído produzido pelo heliporto, havia aprovação da planta pela Prefeitura e seus órgãos técnicos; num outro em que se constatou que a quadra de esportes produzia excessivo barulho, a Prefeitura também tinha aprovado sua construção.
Aliás, lembro que os shows produzidos em estádios de futebol e que violam às escâncaras o direito ao sossego dos vizinhos são, como regra, autorizados pela Prefeitura local. Alguns shows, inclusive, varam a noite e a madrugada, numa incrível violação escancarada. Realço que, nesses casos, a própria Prefeitura é responsável pelos danos causados às pessoas.
Dizia acima que a legislação pátria é rica no tema. Muito bem. A Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941) no seu artigo 42 estabelece pena de prisão para aquele que "perturbar o trabalho ou o sossego alheios: com gritaria ou algazarra; exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda".
Nesse último assunto, faço parênteses para dizer que, muitas vezes, o latido de cães mantidos em casa pode caracterizar outro delito, previsto já no art. 3º do antigo Decreto-Lei 24.645/1934 que dispõe que "Consideram-se maus tratos: I - Praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz". Essa antiga norma foi, posteriormente, incorporada na nossa legislação ambiental. A lei de Crimes Ambientais (Lei 9605/98) estebelece, no seu art. 32, prisão para quem "Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos".
É essa mesma lei ambiental que pune severamente com pena de prisão o crime de poluição sonora. Seu art. 54 diz: "Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora".
E o novo Código Civil Brasileiro, que entrou em vigor em janeiro de 2003, garante o direito ao sossego no seu art. 1277 ao dispor: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha".
Nesse ponto, anoto que para a caracterização do delito penal de perturbação do sossego, a lei não exige demonstração do dano à saúde. Basta o mero transtorno, vale dizer, a mera modificação do direito ao sossego, ao descanso e ao silêncio de que todas as pessoas gozam, para a caracterização do delito. Apenas no crime de poluição sonora é que se deve buscar aferir o excesso de ruído. Na caracterização do sossego não. Basta a perturbação em si.
Evidente que os danos causados são, primeiramente, de ordem moral, pois atingem a saúde e a tranquilidade das pessoas, podendo gerar danos de ordem psíquica. Além disso, pode também gerar danos materiais, como acontece quando a vítima, não conseguindo produzir seu trabalho em função da perturbação, sofre perdas financeiras.
A questão, portanto, ao contrário do que tem sido noticiado, não se restringe à esfera administrativa, com o acionamento dos órgãos municipais. É, também, caso de polícia e, naturalmente, envolve a esfera judicial, na qual a vítima pode tomar as medidas necessárias, inclusive com pedido de liminar, para impedir ou fazer cessar a produção do barulho excessivo e, ainda, podendo pleitear indenização por danos materiais e morais.