Afinal, dinheiro manchado vale ou não?
quinta-feira, 9 de junho de 2011
Atualizado em 8 de junho de 2011 14:43
Tenho de confessar algo a vocês. Muitas histórias reais que narro aqui e que servem de base para meus artigos são sugeridas por meu amigo Walter Ego. Ele, aliás, reclamou que eu nunca o citei. Pronto. Está citado.
E o artigo de hoje tem por base algo que aconteceu com ele. (Sabem, se alguém é um consumidor típico, é o W. Ego, como eu o chamo. Ele compra de tudo, experimenta de tudo e, como uma maldição rogada diretamente por Murphy, se alguma coisa tiver de dar errado é com ele que dá).
Na semana passada ele me veio com esta: "Sabe Rizzatto, se não bastassem todas as agruras que eu enfrento em fila de banco - ele reclama, mas adora uma fila - veja o que me aconteceu. Fui sacar dinheiro no caixa eletrônico e duas notas estavam manchadas com tinta rosa. Dirigi-me ao caixa para pedir a troca, mas ele reteve as duas e disse que ia mandar para o Banco Central. Eles iam examiná-las e se ficasse comprovado que a mancha fora ocasionada acidentalmente, eu seria reembolsado. Protestei, mas não adiantou. Então, eles ficaram com minha grana... Eu precisava do dinheiro. Como é que fica?"
Bem, eu prometi responder aqui na coluna, até porque a questão pode envolver dezenas de consumidores, como aliás já alertou o Procon de São Paulo (clique aqui).
Começo lembrando que as relações entre consumidor e banco são típicas de consumo por expressa disposição da lei n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor - CDC), em vigor desde 11/3/91, confirmada pela súmula de n° 297, do STJ, e pela decisão da ADIN nº 2591-1, do STF.
Dentre os vários produtos e serviços oferecidos pelos bancos está o de entregar ao consumidor moeda corrente, isto é dinheiro, papel-moeda. E dinheiro é produto material (CDC, art. 3º, §1º).
A pergunta que se faz é: dinheiro manchado é produto impróprio ao uso e consumo?
As pessoas estão acostumadas a receberem e a passarem cédulas novas e usadas com algumas imperfeições: riscos, pequenos rasgos, etc.. Mas, elas acabam circulando regularmente.
O CDC diz que são impróprios ao uso e consumo, dentre outros tipos, os produtos deteriorados e avariados (§ 6º, II, art. 18) e também "os produtos que, por qualquer motivo, se revelem inadequados ao fim a que se destinam" (§ 6º, III, mesmo art.).
Foi o Banco Central do Brasil (Bacen) que definiu que cédulas danificadas por dispositivos antifurtos (manchadas por tinta) são impróprias (ver abaixo). Logo, estão enquadradas na hipótese legal acima apontada.
Vejamos mais de perto o que é uma cédula de dinheiro. Trata-se de papel-moeda, que representa um certo poder aquisitivo - ou seja, por intermédio dela efetua-se a compra de produtos e serviços, paga-se dívidas, etc.. Quando o consumidor vai retirá-la no banco, ela traduz os depósitos monetários que ele, consumidor, possui naquela instituição financeira ou - o que para nossa hipótese dá no mesmo - representa o crédito que o banco lhe outorgou - mediante cheque especial, empréstimos, desconto de títulos, etc.. Ou seja, esse produto material, dinheiro, representa o poder aquisitivo de seu possuidor e quando vai para as mãos dele em papel moeda significa o saque que ele fez de seu patrimônio - real, relativo ao depósito ativo e disponível ou virtual, advindo do crédito. Em ambos os casos, esse produto lhe pertence do mesmo modo que já lhe pertencia antes de possuí-lo fisicamente.
Assim, evidentemente, quando o consumidor vai buscar papel moeda no banco, esse produto não pode estar deteriorado, avariado e impróprio ao uso e consumo. Se estiver, o CDC lhe garante o direito de troca. É o que dispõe o art. 18. Leiamos o que importa:
"Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas."
A lei, é verdade, oferece um prazo de 30 dias para o fornecedor sanar o vício (§ 1º do art. 18). Todavia, esse prazo não existe quando se trata de produto essencial (§ 3º do mesmo artigo). Neste caso, o consumidor pode escolher qualquer das três alternativas estampadas no § 1º do art. 18, dentre as quais a de exigir "a substituição imediata do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso" (inciso I). E, claro, ninguém pode duvidar que dinheiro é produto essencial!
Muito bem. Acontece que o Bacen, como adiantado, baixou resolução dizendo o seguinte: "Não serão objeto de reembolso ao portador as cédulas danificadas por dispositivos antifurto" (resolução nº 3.981/2011, art. 1º, § 2º). Sei que meu amigo W. Ego ao ler este trecho dirá: "Como? O dinheiro que é meu, que eu saquei, retirando do saldo de minha conta não vale nada? Até me lembra o dia em que fui assaltado na porta do banco...".
Há mais. O próprio Bacen, por intermédio da circular 3538/2011 reconhece que o dispositivo antifurto pode ser acionado acidentalmente:
"Art. 9º. - No caso de acionamento acidental do dispositivo antifurto ou de tentativa frustrada de furto ou roubo, as instituições financeiras ressarcirão o Banco Central do Brasil pelos serviços de análise e reposição das cédulas danificadas, observando os seguintes parâmetros (...)".
E disciplina que, as cédulas retidas deverão ser encaminhadas para o Bacen (art. 4º), que após análise informará do resultado a instituição financeira (art. 10). O banco tem até 20 dias para encaminhar a cédula no caso de retenção ocorrida nas praças onde o Bacen possua representação e até 30 dias nas demais localidades O reembolso ao portador somente será feito se o Bacen, após exame, concluir que a cédula foi danificada acidentalmente (inciso I, parágrafo único, art. 11). Sem fixação de prazo, o que somado todo o trâmite pode significar bastante tempo.
Não abordarei a questão da segurança pública e dos problemas que vêm atingindo os caixas eletrônicos. É questão que cabe aos bancos e às autoridades públicas resolverem. O que interessa é que o produto - papel moeda - armazenado no caixa pertence ao banco até o momento em que é entregue ao consumidor na hora do saque. Neste momento, o produto tem que estar próprio ao uso e consumo.
Se o banco utiliza-se de dispositivo antifurto para se garantir contra larápios, isso é problema exclusivamente dele. É algo que decorre do simples exercício do risco de sua atividade.
Ora, como se sabe, o risco da atividade não pode ser repassado ao consumidor de modo algum. Se o banco é vítima dos ladrões, isso não implica que ele possa repassar o prejuízo que sofreu ou possa vir a sofrer à seus clientes.
Assim, se o consumidor retira cédulas do caixa eletrônico e elas estão manchadas, cabe ao banco trocá-las tão logo procurado pelo consumidor. Na boca do caixa, sem delongas. Claro que pode e deve o banco identificar o portador - aliás, como determina a referida circular 3.538 (art. 3º). Mas, uma vez feita a identificação, as cédulas devem ser trocadas por decorrência da incidência do § 3º do artigo 18 do Código de Defesa do Consumidor c.c. inciso I do § 1º do mesmo artigo, conforme acima apontei.
Concluo, portanto, dizendo que, segundo penso e conforme expus, a resolução do Bacen, assim como a circular, nos pontos aqui examinados, violam os direitos do consumidor estabelecidos no CDC.