O Código de Defesa do Consumidor, as diversões públicas de risco e o acidente do Playcenter
quinta-feira, 7 de abril de 2011
Atualizado em 6 de abril de 2011 14:29
Não é a primeira vez que acontece - segundo a Folha de S. Paulo 6 pessoas morreram e 45 ficaram feridas em parques de diversões apenas nos últimos dois anos - e, infelizmente, deve continuar a ocorrer: as diversões públicas radicais implicam em risco aos usuários e exigem severo controle das autoridades. Pois bem, meu artigo desta semana está ligado ao acidente ocorrido no Playcenter, em São Paulo, no último domingo, dia 3. Não discutirei o tema da responsabilidade civil do fornecedor pelos danos causados, por que o mesmo é por demais conhecido (embora seja obrigado a fazer referência a alguns aspectos, como se verá). Pretendo ir além - talvez ao lado -: penso que algumas dessas ofertas arriscadas - modernas ou não - com aparelhos sofisticados e tecnologia de ponta devem simplesmente ser banidas com base no Código de Defesa do Consumidor. Acompanhe meu raciocínio.
Depois do acidente a que me referi, vi um perito na televisão dizendo que suas causas somente podem ser uma dessas três: negligência, imprudência ou imperícia. Acrescento dolo (o que é raro) e digo que sim, mas apenas na maioria das vezes; não em 100% delas. Pergunto: e se for constatado que não se verificou nenhum dos elementos da culpa (e, claro, nem de dolo), como fica a situação jurídica e a continuidade da oferta do mesmo serviço?
Uma das características principais da atividade econômica é o risco. Os negócios implicam risco. Na livre iniciativa a ação do empreendedor está aberta simultaneamente ao sucesso e ao fracasso. A boa avaliação dessas possibilidades por parte do empresário é fundamental para o investimento. Um risco mal calculado pode levar o negócio à bancarrota. Mas o risco é dele.
Muito bem. O CDC, compreendendo o funcionamento do binômio risco/custo (ao qual se deve acrescentar outro: custo/benefício) resolveu cuidar dos elementos ligados ao resultado da produção (no caso dos produtos) e ao resultado da prestação de serviços (que incorpora muitas vezes os produtos com os quais e através dos quais é prestado o serviço). Dito de outro modo: o CDC não se preocupou com os meios em que se produzem objetos ou se prestam os serviços, mas com a qualidade com que eles são entregues ao consumidor, controlando os vícios e defeitos e determinando trocas, devoluções de valores pagos e ressarcimento de prejuízos.
A responsabilidade civil objetiva do fornecedor prevista na lei tem, assim, foco na relação de causalidade que envolve o consumidor, o produto e/ou serviço e o dano. Há algo de bem inteligente nisso: o CDC sabe que, de um lado, com todo o incremento da tecnologia é bastante difícil provar culpa do fabricante, montador, produtor, prestador do serviço etc., assim como que, mesmo com todos os esforços sincera e adequadamente empreendidos por esses agentes econômicos, ainda assim haverá vícios e defeitos.
Essa é a questão: o produto e o serviço são oferecidos com vício/defeito, mas o fornecedor não foi negligente, imprudente nem imperito. Se não tivéssemos a responsabilidade objetiva, o consumidor terminaria muitas vezes lesado, sem poder ressarcir-se dos prejuízos sofridos (como se dava no regime anterior ao CDC).
Veja-se o acidente do Playcenter ocorrido no último domingo. Todas as declarações dos envolvidos dão conta que o aparelho chamado Double Shock estava em perfeitas condições de uso, com a manutenção em dia e com os sistemas de operação funcionando corretamente (nota: não sou inocente a ponto de acreditar que qualquer um dos funcionários fosse confessar desde logo uma falha. Mas, tenho de admitir para o raciocínio que estou montando - até porque plausível e real - que os fatos podem ter se passado exatamente desse modo). É possível, portanto - e somos obrigados a admitir -, que a falha do funcionamento do aparelho de diversões possa ter se dado sem que se verifique qualquer grau de culpa dos responsáveis.
O que estou a dizer é corriqueiro, por exemplo, no caso de vícios e defeitos ocorrentes nos veículos automotores (aliás, é por isso, quer dizer, é por ocorrências desse tipo, sem participação direta do fornecedor, que em larga medida o CDC prevê o recall, que tem sido largamente utilizado por esse setor). Para deixar bem esmiuçado esse aspecto: como se sabe, de regra, o fabricante, produtor, prestador de serviços etc., não agem com negligência, imprudência ou imperícia exatamente por causa das consequências negativas para seu negócio. Como é notório, o negligente é aquele que causa dano por omissão (ex.:o motorista que não coloca óleo no freio do automóvel e, por causa disso, numa brecada, o freio falha, causando um acidente); o imprudente é quem causa dano por ação (ex.: o motorista que, dirigindo seu carro, passa o sinal vermelho de trânsito, atingindo outro veículo); e o imperito é o profissional que não age com a destreza que dele se espera (ex.: o médico que deixa um instrumento cirúrgico dentro do corpo do paciente operado).
Ora, pode muito bem acontecer - como, repito, ocorre regularmente na indústria automobilística - do fabricante de um aparelho de diversões públicas ou do prestador do serviço por ele responsável, agir dentro de todas as regras técnicas exigidas para a manutenção e funcionamento adequado do produto e ainda assim, ele, em algum momento, apresentar falha de funcionamento. Ou seja, pode acontecer do aparelho gerar danos aos usuários a despeito de todos os esforços em sentido oposto feito pelo prestador do serviço; apesar de não se constatar nenhuma das características da culpa.
Do ponto de vista da lei, a situação é simples, posto que o prestador do serviço responde de forma objetiva, bastando ao consumidor demonstrar o nexo de causalidade entre os danos e o defeito do serviço. Não me estenderei nisso, pois como adiantei acima a responsabilidade é induvidosa (a hipótese que estou avaliando é de típico acidente de consumo, prevista no art. 14 do CDC). Meu questionamento diz respeito ao mau funcionamento do aparelho, inobstante se constate a existência de controle técnico preciso. Isso porque, a verdade é que nenhuma técnica, por mais apurada que seja, consegue abolir as leis da física. Mais cedo ou mais tarde alguma coisa acontece sem explicação científica ou técnica e quando se trata de algo como um aparelho que faz um giro de 360º a uma altura de 12 metros com pessoas dentro (que é o que faz o citado Double Shock), as consequências podem ser gravíssimas.
Veja um dos efeitos jurídicos dessa constatação. O Estado - no caso a prefeitura - tem o poder-dever de fiscalizar o adequado funcionamento dos serviços de diversões públicas, dentre os quais se encontram os parques de diversões. Ora, como se sabe, a entidade estatal também responde objetivamente por ação ou omissão de seus agentes. Mas, se acabar sendo constatado, como no exemplo que estou analisando, que o fiscalizado não agiu com culpa e que o funcionamento do aparelho seguiu todo o roteiro de segurança estabelecido, não haverá omissão (nem, claro, ação).
A outra consequência - que é a que me parece mais importante - está ligada à existência de um "brinquedo" com tal risco de utilização, que poderia fazer voltar a responsabilidade do órgão estatal. Penso que, se de fato, fique constatado que, apesar de todos os esforços técnicos para gerar um funcionamento condizente do aparelho, ainda assim ele acabe gerando insegurança que se possa controlar, a atração deve simplesmente ser proibida.
E é, mais uma vez, o próprio CDC que permite a proibição da atração: seu artigo 10 é claro em dizer que o fornecedor não pode colocar no mercado produto ou serviço com alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde e segurança do consumidor. Portanto, se um aparelho de diversões públicas não pode ser controlado em termos de funcionamento adequado por mais que a manutenção seja bem feita e que o controle técnico esteja correto, repito, só há um destino para ele: deixar de ser oferecido. Nisso o Estado pode e deve atuar - para inclusive não vir a ser responsabilizado.