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Efeitos da suspensão do advogado e a prática de crime - Parte III

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Atualizado em 11 de setembro de 2024 13:12

A conduta de burlar sanção administrativa prevista por órgão é sempre gravíssima, como restou bem demonstrado pelo exemplo do Código de Trânsito brasileiro, exatamente porque a sanção disciplinar é a norma coercitiva que deve ter o poder de reprimir, retificar e punir a conduta daquele a ela sujeito, seja como indivíduo da sociedade, como é o condutor de veículo automotor; seja de profissional, como são os servidores públicos e profissionais ligados a conselhos de classe, advogados, engenheiros, contadores, médicos, enfermeiros e outros.

Caso se desprestigie o poder da norma sancionadora disciplinar, estar-se-á a atacar direitamente o poder de regulação do aplicador do direito.

Não é comum apenas à OAB a previsão de punição em caso de desobediência de suas decisões, também o CRM1 e outros Conselhos e/ou órgãos têm dispositivos análogos.

Essas conclusões vêm apenas reforçar a ideia de que a aplicação do art. 34, inciso I do EAOAB para os casos em que o profissional suspenso mantenha-se realizando atos privativos de advogado compromete em absoluto a efetividade e a eficiência do sistema OAB, haja vista a previsão de sanção administrativa mais branda do que aquela que está a desobedecer. Isso, claro, sem se falar no prestígio e grandeza da advocacia, que acabam altamente desvalorizados à luz da aparente impunidade decorrente da desobediência.

Não bastasse, portanto, ser gravíssima do ponto de vista administrativo a nova mácula disciplinar decorrente dessa desobediência, a jurisprudência do STJ se consolidou definindo que tal prática configura o crime previsto no art. 205 do Código Penal, o que, de forma idêntica, reforça a incorreção da interpretação por aplicação de sanção administrativa tão branda como a do inciso I.

Exercício de atividade com infração de decisão administrativa

Art. 205 - Exercer atividade, de que está impedido por decisão administrativa:

Pena - detenção, de três meses a dois anos, ou multa.

A decisão paradigma para se definir por esse crime para os casos dessa conduta foi tomada no Conflito de Competência CC 165.781/MG, de relatoria da ministra Laurita Vaz:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PENAL E PROCESSUAL PENAL. EXERCÍCIO DA ADVOCACIA COM A INSCRIÇÃO NA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL SUSPENSA. CONFIGURAÇÃO DO DELITO DO ART. 205 DO CÓDIGO PENAL. CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR COMPETENTE O JUÍZO FEDERAL SUSCITANTE.

1. Hipótese em que a controvérsia apresentada cinge-se à definição do tipo penal a que se amolda a conduta da Interessada, a qual teria exercido a advocacia com a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil suspensa, em razão de infração reconhecida pelos órgãos disciplinares competentes.

2. A questão difere daquela relativa ao inadimplemento de anuidade, na qual esta Corte tem entendido que se configura a contravenção penal do art. 47 do decreto-lei 3.688/41, porque "não representa verdadeira punição disciplinar, mas apenas mero ato administrativo de saneamento cadastral e, por consequência, não se amolda ao conceito penal de decisão administrativa proibitiva do exercício da profissão" (CC 164.097/SP, rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe de 11/03/2019).

3. Tendo sido a suspensão da inscrição determinada pela autoridade competente, qual seja, no caso, a OAB, em processo administrativo, está configurado o crime do art. 205 do Código Penal, qual seja, "Exercer atividade, de que está impedido por decisão administrativa".

4. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Federal, o Suscitante.

(CC 165.781/MG, rel. ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 14/10/2020, DJe 21/10/2020)

No ano seguinte, novamente, o STJ confirmou o acerto da decisão, também em conflito de competência, tendo o ministro Antonio Saldanha Palheiro aplicado o aresto acima como referência:

CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 169078 - MG (2019/0319513-3). DECISÃO

Trata-se de conflito negativo de competência no qual figuram como suscitante o JUÍZO FEDERAL DA 1A VARA DE POÇOS DE CALDAS - SJ/MG e como suscitado o JUÍZO DE DIREITO DA 1A VARA DO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL.

Consta dos autos ter sido lavrado termo circunstanciado pela Polícia Civil de Minas Gerais contra advogada que supostamente exercera a profissão mesmo estando suspensa dos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil em razão de processo administrativo disciplinar.

O Juízo estadual acatou o parecer ministerial e declarou-se incompetente ao argumento de que os fatos narrados eram tipificados no art. 205 do Código Penal, praticado contra autarquia federal especial, motivo pelo qual, nos termos do art. 109, IV e VI, da Constituição Federal, competiria à Justiça Federal processar e julgar o feito.

O Juízo federal, por sua vez, também acolheu a manifestação ministerial, declarou-se igualmente incompetente e suscitou o conflito de competência por concluir que "o STJ assentou o entendimento de que o advogado que, após sofrer suspensão disciplinar pela OAB, pratica o exercício da profissão, não comete o crime previsto no artigo 205 do Código Penal, mas sim a contravenção penal do artigo 47 do decreto-lei 3.688/41" (e-STJ fl. 210), o que afastaria a competência da Justiça Federal.

O Ministério Público Federal manifestou-se pela competência do Juízo estadual (e-STJ fls. 226/230).

É, em síntese, o relatório.

Decido.

Conheço do conflito, pois trata-se de controvérsia instaurada entre juízes vinculados a tribunais distintos, a teor do que preceitua o art. 105, inciso I, alínea d, da Constituição Federal.

Como antes relatado, a investigação penal apura a prática de ilícito envolvendo advogada que exerceu a profissão mesmo estando suspensa dos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil em razão de processo administrativo disciplinar.

Conforme relatado pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, há indícios de habitualidade delitiva, uma vez que "não remanesce aqui uma simples situação de exercício irregular de profissão ou de atividade econômica (art. 47 da LCP), e sim de uma casuística mais gravosa, qual seja, a de uma advogada, já suspensa de suas funções por força de decisão administrativa da OAB, que continuava postulando em vários processos, infringindo, assim, o poder disciplinar de seu próprio órgão de classe" (e-STJ fl. 189).

Levando-se em conta os elementos constantes do presente conflito de competência suscitado no curso de investigação em andamento, a conduta imputada à acusada, ao que parece, e na linha da orientação firmada no âmbito desta Corte, subsome-se ao tipo previsto no art. 205 do Código Penal, da competência da Justiça Federal, senão vejamos: "CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PENAL E PROCESSUAL PENAL. EXERCÍCIO DA ADVOCACIA COM A INSCRIÇÃO NA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL SUSPENSA. CONFIGURAÇÃO DO DELITO DO ART. 205 DO CÓDIGO PENAL. CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR COMPETENTE O JUÍZO FEDERAL SUSCITANTE.(...) 1. Hipótese em que a controvérsia apresentada cinge-se à definição do tipo penal a que se amolda a conduta da Interessada, a qual teria exercido a advocacia com a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil suspensa, em razão de infração reconhecida pelos órgãos disciplinares competentes.

2. A questão difere daquela relativa ao inadimplemento de anuidade, na qual esta Corte tem entendido que se configura a contravenção penal do art. 47 do Decreto-Lei n. 3.688/1941, porque "não representa verdadeira punição disciplinar, mas apenas mero ato administrativo de saneamento cadastral e, por consequência, não se amolda ao conceito penal de decisão administrativa proibitiva do exercício da profissão" (CC n. 164.097/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe de 11/03/2019).

3. Tendo sido a suspensão da inscrição determinada pela autoridade competente, qual seja, no caso, a OAB, em processo administrativo, está configurado o crime do art. 205 do Código Penal, qual seja, "Exercer atividade, de que está impedido por decisão administrativa".

4. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Federal, o Suscitante.

(CC 165.781/MG, rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 14/10/2020, DJe 21/10/2020)" Ante o exposto, conheço do conflito e dou por competente o Juízo suscitante. (CC n. 169.078, Ministro Antonio Saldanha Palheiro, DJe de 09/02/2021.)

Como se vê, é indiscutível à luz da jurisprudência atual que referida conduta é tão grave a ponto de desafiar a aplicação da ultima ratio, seja entendendo-a como a contravenção penal do art. 47 da lei de contravenções penais, 3.688/41 ou como o crime previsto no art. 205 do Código Penal:

Art. 47. Exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício:

Pena - prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis.

Exercício de atividade com infração de decisão administrativa

Art. 205 - Exercer atividade, de que está impedido por decisão administrativa:

Pena - detenção, de três meses a dois anos, ou multa.

Não há dúvida que os limites da tipicidade são bem próximos nesse caso, todavia, como visto, o STJ pacificou a matéria, entendendo que referida prática configura crime e não contravenção penal, o que parece ser a posição mais acertada, pois na comparação entre os tipos punitivos, a dolosa violação da decisão de suspensão encontra melhor enquadramento no preceito primário do art. 205 do Código Penal.

Pois bem, embora com poucos casos no Brasil, cumpre afirmar que a prática pode também configurar outros crimes, como os patrimoniais.

Ora, em situação hipotética, imagine-se que homem vai até escritório de advocacia e contrata advogado para a elaboração de recurso de apelação, sem saber que o profissional está suspenso. O advogado se apresenta, escuta o problema, fornece algumas opiniões e cobra o valor de seus honorários; as partes assinam contrato e o agora cliente também assina a procuração, ou seja, todos até aqui atos privados da advocacia. O advogado não informa que está com sua OAB suspensa, e, portanto, não tem capacidade postulatória para o exercício da advocacia. Nada obstante, confecciona o recurso, assina e o protocoliza no Tribunal, acabando o órgão por dele não conhecer, uma vez ciente da sanção administrativa aplicada.

Ora, considerando que a advocacia não se restringe à atuação nos Tribunais, todos os atos acima foram realizados em direta afronta à suspensão aplicada, desde a apresentação do infrator como advogado, passando pela primeira reunião, cobrança de honorários, assinatura do contrato e da procuração, até o protocolo do recurso.

Como visto, esse proceder pode configurar o crime previsto no art. 205 do Código Penal, todavia, não é só, pois o advogado também pode haver cometido contra o cliente o crime de estelionato, haja vista que dolosamente o manteve em erro ao não informar sua impossibilidade de advogar, obtendo vantagem ilícita.  

Estelionato

Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis

Também pode estar presente o crime de falsidade ideológica, porque ao produzir e assinar documentos estando impedido de fazê-lo, o ato pode se amoldar ao preceito primário do art. 299 do Código Penal:

Falsidade ideológica

Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis, se o documento é particular.

Parágrafo único - Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assentamento de registro civil, aumenta-se a pena de sexta parte.

Nos casos de suspensão, como já mencionado, o advogado perde todos os seus direitos junto ao Judiciário, incluindo sua capacidade postulatória:  

PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NA PETIÇÃO. ADVOGADO COM INSCRIÇÃO NA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - SEÇÃO JUDICIÁRIA DE MINAS GERAIS -OAB/MG SUSPENSA. AUSÊNCIA DE CAPACIDADE POSTULATÓRIA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO CONHECIDO. 1. A decisão agravada não identificou qualquer ilegalidade na decisão proferida por desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais - TJMG que impediu o ora agravante de encaminhar petições àquele Tribunal Estadual, por estar com sua inscrição na OAB/MG suspensa. 2. Referida suspensão foi confirmada em resposta a ofício encaminhado ao Diretor Secretário Geral da OAB/MG, em 12/4/2024. Diante disso, o presente agravo regimental é inadmissível por ausência de capacidade postulatória do agravante. 3. Agravo regimental não conhecido. (AgRg na Pet n. 16.216/MG, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 1/7/2024, DJe de 3/7/2024.)

Os efeitos da suspensão são tão contundentes na vida do profissional, que suas prerrogativas também são suspensas, como o diferenciado direito de ser recolhido à sala de Estado maior em caso de prisão:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. DECISÃO ADEQUADAMENTE FUNDAMENTADA. REITERAÇÃO DELITIVA. ACUSADA CONDENADA EM OUTRO PROCESSO E QUE RESPONDE A VÁRIOS FATOS DELITUOSOS. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE MANIFESTA. RECOLHIMENTO EM SALA DE ESTADO MAIOR.

DIREITO DO ADVOGADO NÃO SUSPENSO DO EXERCÍCIO DA ATIVIDADE.

1. A prisão é medida extrema sujeita à existência de elementos concretos de comprovação da necessidade de proteção da ordem pública, garantia de aplicação da lei penal e conveniência da instrução criminal.

2. Na hipótese, não há patente ilegalidade a ser reconhecida, pois a custódia preventiva restou firmada para o resguardo da ordem pública pelo risco da reiteração delitiva, na medida em que a acusada tem contra si outros processos criminais e é conhecido por ser traficante de drogas.

3. Quanto ao direito ao recolhimento em sala de Estado Maior, o advogado só faz jus a essa prerrogativa se estiver no livre exercício da profissão, o que não é o caso dos autos porque a pretendente encontra-se suspensa dos quadros da OAB.

4. Ordem denegada.

(HC 368.393/MG, rel. ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 20/09/2016, DJe 30/09/2016)

Até aqui, portanto, pode-se expor as seguintes conclusões: (a) embora a OAB entenda que a conduta de advogar enquanto suspenso configure a mácula disciplinar prevista no art. 34, inciso I da lei federal 8.906/94, melhor interpretação é que o inciso I, que estabelece a mais branda das infrações disciplinares, trate apenas dos impedimentos do art. 30.

Assim, a conduta gravíssima em debate estaria enquadrada nas hipóteses mais graves da lei, incisos XXV, XXVII e XXVIII.

Ademais, essa interpretação corrige a inegável distorção advinda da desproporcionalidade por se punir de forma igual aquele que viola o art. 30 do EAOAB com aquele que, por exemplo, está suspenso por 12 meses porque se apropriou indevidamente de elevada quantia de cliente, cometendo potencialmente o crime de apropriação indébita e ainda assim continua a advogar. Esse exemplo revela às escâncaras o problema aqui exposto, pois se esse último advogado mantém sua advocacia em desprezo à decisão da OAB, ficará sujeito à mesma sanção daquele que apenas viola o art. 30 do EAOAB.

A outra conclusão é que (b) referida conduta é tão grave que pode configurar diferentes crimes praticados pelo infrator, incluindo o tipo penal do art. 205 do CP, além de estelionato e falsidade ideológica.

*Fale com o advogado e envie suas dúvidas e temas que gostaria de ver por aqui. (Clique aqui) ou pelo Instagram @antonioalbertocerqueira

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1 Art. 18. Desobedecer aos acórdãos e às resoluções dos Conselhos Federal e Regionais de Medicina ou desrespeitá-los.