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O advogado responde perante a OAB por atos de sua vida privada?

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Atualizado em 8 de agosto de 2024 14:05

Dúvida comum perante a advocacia, assim como da sociedade, é se o advogado pode responder perante o Tribunal de Ética e Disciplina por atos de sua vida privada. 

Ainda é comum observar decisões de arquivamento de representações com o uso desse pensamento, ou seja, se o ato do advogado não se deu no exercício da advocacia, faltaria ao Tribunal de Ética e Disciplina competência legal para conhecer da matéria, porque, tanto as infrações éticas como as infrações disciplinares estariam sempre ligadas ao exercício da profissão.

Esse entender é incorreto e não deve haver dúvidas sobre isso.

Primeiro porque desde os primórdios da advocacia brasileira já havia previsão legal para punição do advogado por ato da vida privada, conforme o revogado artigo 110, parágrafo único, alíneas "a", "b" e "c" da lei federal 4.215/63, o antigo Estatuto da OAB:

Art. 110. A pena de suspensão é aplicável:

Parágrafo único. Considera-se conduta incompatível com o exercício da profissão:

  1. A prática reiterada de jogo de azar, como tal definido em lei;
  2. A incontinência pública e escandalosa;
  3. A embriaguez habitual.

Da redação da norma resta de clareza solar que o legislador arrolou nas alíneas do parágrafo exemplos de condutas que poderiam imputar responsabilização ao advogado por atos de sua vida privada, pois, obviamente, ninguém praticará jogos de azar no exercício da advocacia. Aquele rol, ademais, era exemplificativo. 

A lei federal 8.906/94, o EAOAB, revogou a norma 4.215/1963, todavia, ainda assim, manteve a regra material em seu artigo 34, §1º, alíneas "a", "b" e "c":

Art. 34. Constitui infração disciplinar:

XXV - manter conduta incompatível com a advocacia;

§1º Inclui-se na conduta incompatível:   

  1. Prática reiterada de jogo de azar, não autorizado por lei;
  2. Incontinência pública e escandalosa;
  3. Embriaguez ou toxicomania habituais.

Prescindível qualquer outra regra de hermenêutica que não a interpretação gramatical jurídica para entender que ao menos desde 1963, portanto há quase 60 anos, a OAB permite que o advogado seja responsabilizado por seus atos da vida privada, não se limitando, vale destacar, às condutas previstas na norma legal, pois, como dito, trata-se de rol exemplificativo. 

Sobre este mérito, vale mencionar que entender de forma contrária é cercear o poder disciplinar da OAB para os casos mais graves, haja vista que, os crimes mais abjetos, como o estupro, o tráfico de drogas, a pedofilia, a agressão às mulheres, o feminicídio e outros análogos, nunca são cometidos com a respeitável toga de tão grandiosa profissão.

Em data recente o Conselho Federal ratificou essa interpretação ao criar a súmula 9/19, com a seguinte redação:

INIDONEIDADE MORAL. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER. ANÁLISE DO CONSELHO SECCIONAL DA OAB. Requisitos para a inscrição nos quadros da OAB. Inidoneidade moral. A prática de violência contra a mulher, assim definida na "Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher - 'Convenção de Belém do Pará' (1994)", constitui fator apto a demonstrar a ausência de idoneidade moral para a inscrição de bacharel em Direito nos quadros da OAB, independente da instância criminal, assegurado ao Conselho Seccional a análise de cada caso concreto.

Ora, por óbvio, se a violência contra a mulher, independente de atuação no exercício da profissão e de instância criminal e, portanto, do trânsito em julgado da decisão penal condenatória, é fato apto a retirar a idoneidade necessária para a inscrição nos quadros da advocacia brasileira, na forma do quanto prescreve o artigo 8º, inciso VI do EAOAB, também será apta a promover contra o advogado processo ético disciplinar por esse fato pelo inciso XXVII do art. 34 da lei, cuja pena é a exclusão dos quadros da advocacia:

Art. 34. Constitui infração disciplinar:

XXVII - tornar-se moralmente inidôneo para o exercício da advocacia;

Art. 38. A exclusão é aplicável nos casos de:

II - infrações definidas nos incisos XXVI a XXVIII do art. 34.

Nesse sentido, é recentíssimo julgado abaixo:

Recurso ao Conselho Federal da OAB. Art. 75, caput, do Estatuto da Advocacia e da OAB. Acórdão unânime de Conselho Seccional da OAB. (...) Tornar-se moralmente inidôneo para o exercício da advocacia (art. 34, XXVII, EAOAB). Violência contra a mulher. Os atos de agressão contra a mulher, ainda mais atos de agressão física, praticados pelo advogado devidamente inscrito na OAB, resultam a perda de inidoneidade moral para o exercício da advocacia, e, consequentemente, infração disciplinar (art. 34, XXVII, EAOAB), independentemente de decorrerem ou tiverem qualquer relação com o exercício da profissão. A OAB não pode permitir a permanência de agressores de mulheres em seus quadros. Precedentes do Conselho Federal da OAB, no sentido de que a infração disciplinar de tornar-se moralmente inidôneo para o exercício profissional não demanda o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, pois não está vinculada à prática de crime (art. 34, XXVIII, EAOAB), mas dela também podendo decorrer, ressalvada a hipótese de decisão que negue a existência do fato ou sua autoria. Recurso não provido. (Recurso n. 49.0000.2021.003027-7/SCA-TTU. EMENTA N. 084/2022/SCA-TTU. Relatora: Conselheira Federal Ana Cláudia Pirajá Bandeira (PR). DEOAB, a. 4, 949, 29.09.2022, p. 46).

Vale destaque para o trecho "Os atos de agressão contra a mulher, ainda mais atos de agressão física, praticados pelo advogado devidamente inscrito na OAB, resultam a perda de inidoneidade moral para o exercício da advocacia, e, consequentemente, infração disciplinar (art. 34, XXVII, EAOAB), independentemente de decorrerem ou tiverem qualquer relação com o exercício da profissão", restando inarredável o entendimento ora defendido.

Mas, não bastasse, em 2020, portanto depois do advento da súmula, mas antes do julgado acima, o CFOAB respondeu à consulta 49.0000.2018.012292-5/OEP, da seguinte forma:

Consulta. Fatos cometidos por advogado sem estar no desempenho da profissão, dentro ou fora do território brasileiro. Notícia jornalística, redes sociais ou blogs. Possibilidade de instauração de representação junto ao competente TED - Tribunal de Ética e Disciplina. Limites de atuação da OAB. (...) Fatos co-metidos por advogado sem estar no desempenho da profissão, dentro ou fora do território brasileiro. Notícia jornalística, redes sociais ou blogs. Possibilida-de de instauração de representação junto ao competente TED. 1. Conduta incompatível para fins disciplinares, significa qualquer ato omissivo ou comissivo, que não se coadune com a postura exigida para o exercício da advocacia. Não se escusa o advogado, sob o argumento de que tenha adotado esta ou aquela conduta na qualidade de cidadão comum, e não no efetivo exercício da profissão, porquanto é impossível separar estas duas situações, no que respeita a advocacia. 2. Um advogado deverá, em todo momento, manter a honra e a dignidade de sua profissão. Deverá, tanto em sua atividade profissional como na sua vida privada, abster-se de ter con-duta que possa redundar em descrédito da profissão a que pertence. 3. Espera-se do advogado atitudes condizentes com a sua função social, não sendo aceitável ambiguidades entre o exercício da profissão e sua vida pessoal, vez que devem atender aos preceitos éticos inerentes à advocacia, que não venham a denegrir e/ou manchar a dignidade da profissão. Consulta respondida. (CON-SULTA 49.0000.2018.012292-5/OEP. EMENTA N. 041/2020/OEP. Relator: Conselheiro Federal Luiz Cláudio Silva Allemand (ES). DEOAB, a. 2, 427, 3.09.2020, p. 4)

Em conclusão, é plenamente possível que o advogado venha a responder administrativamente junto aos Tribunais de Ética e Disciplina do Brasil, caso, em sua vida privada, venha a cometer atos que não se coadunem com a grandeza da profissão e com a honra e a dignidade que se exige do advogado em sua postura pessoal. 

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