Outros tempos, outra lei
Tudo começou com a aproximação de um mulato. Ele vinha montado numa besta e trazia nas mãos um papel, um bilhete, coisa que Franz Kraus não soube entender do que se tratava, pois não conhecia o idioma daquele lugar. Não demorou muito e o mulato explicou : "pois fique sabendo que isto é um mandado da justiça. É um mandado do senhor Juiz Municipal para que vosmecê dê a inventário os bens de seu pai Augusto Kraus".
Manoel, o meirinho mulato, é um dos personagens de Graça Aranha em "Canaã". Diz-se que o livro, cujo enredo se desenvolve em torno da vida de dois imigrantes alemães, é resultado das experiências do autor, que foi juiz de Direito no Estado do Rio de Janeiro e também no município de Porto do Cachoeiro, no Espírito Santo. Assim, o livro publicado em 1902 configura-se uma verdadeira denúncia dos desmandos envolvendo os representantes da Justiça na época.
Para começar, o oficial à cavalo disse : "a audiência é amanhã, aqui, ao meio-dia... A Justiça pernoita em sua casa. Prepare do que comer...e do melhor". Ao despedir-se, ameaçou : "prepare tudo para se arrolar. Não esconda nada, senão cadeia".
No dia seguinte, ao meio dia, estavam na casa de Kraus três juízes, o escrivão e o oficial do juízo.
"Três juízes ?" Talvez pergunte o migalheiro. Sim, três juízes. Um deles, o juiz municipal. Os outros dois nada tinham a ver com o caso, estavam ali apenas pelo passeio !
A casa estava tomada "em nome da lei" e "todos passeavam pela sala com estrépito, batendo com o chicote nos móveis, ou praguejando, ou rindo das pobres estampas nas paredes, ou farejando para dentro, de onde vinha um capitoso cheiro de comida". Assim que terminaram, o promotor gritou : "moça bonita que saia! Não haverá nenhuma por aqui?" E a lubricidade dos olhares excitados e cobiçosos pairou sobre Maria, a empregada.
Os homens da Lei pediram ao dono da casa a "parati", bebida típica da colônia e o almoço, que comeram com apetite. Beberam cerveja em quantidade e depois se puseram a fumar descansados. "Quando um grande torpor ia dominando a companhia, entendeu o Escrivão espertá-la, dizendo ao Juiz Municipal: ‘o senhor doutor, V. Sª não manda abrir a audiência?’".
Enfadonhamente o juiz pôs-se a realizar a tarefa. Duas horas levou o Escrivão a trabalhar no inventário e assim que terminou "deixou apenas em claro as assinaturas do juiz e dos avaliadores que ele dava como presentes, e que eram seus homens-de-palha, numa costumada fraude que lhe rendia mais custas".
O relato de Graça Aranha é sortido de passagens que faria qualquer pessoa, sendo ou não do Direito, indignar-se. Mas o que hoje soa como absurdo pode já ter sido a mais pura história real. Outros tempos, outra Lei.
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Canaã
Obra de maior destaque do autor Graça Aranha, Canaã conta a história de Milkau e Lentz, dois jovens imigrantes alemães que se estabelecem numa colônia no Espírito Santo. Apesar da amizade que se firma entre os dois, o ponto de vista que têm em relação à nova terra difere bastante entre um do outro. Enquanto Mikau possui um discurso de integração, Lentz tem um pensamento de dominação. Também ganha destaque na trama a personagem de Maria, filha de imigrantes pobres que se vê grávida e rejeitada pela família do amante, bem como por todos na comunidade. Mikau, que a havia conhecido anteriormente em uma festa, se compadece de sua sorte e a acolhe, levando-a para morar na fazendo de conhecidos. Num certo dia, com a gravidez já adiantada, Maria sente as primeiras dores do parto enquanto trabalha no cafezal. O filho que dela nasce é imediatamente devorado por porcos e a jovem é acusada e presa por infanticídio. Apesar disso, Mikau acredita na inocência de Maria e esquematiza uma fuga, salvando-a da cadeia. O desfecho do livro está na procura por um lugar melhor para se viver. Temas relativos à imigração no Brasil, à corrupção das autoridades e às incoerências do homem no trato com outros homens estão presentes em Canaã.
Graça Aranha