Migalhas Quentes

Dois palhaços

Caso do juiz "doutor" rende comentários até na Noruega

10/11/2004


Dois palhaços


O caso do juiz Antonio Marreiro da Silva Melo Neto, que teria exigido ser tratado de “doutor” ou “excelência”, está rendendo comentários até na Noruega. De lá nos chega um conto gentilmente enviado pelo nosso distante migalheiro Adauto Suannes. Confira.
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“Deu no Migalhas:

Obrigação - legal ou moral?

Deixando a emenda pior que o soneto, o juiz Antonio Marreiro da Silva Melo Neto, que teria exigido certos protocolos no tratamento do porteiro de seu prédio, alega em O Globo que não exigiu ser chamado de 'doutor' ou 'excelência'. O juiz disse que solicitou na ação que os funcionários fossem orientados, e não obrigados, a tratá-lo por "senhor" ou "doutor".

Tomo a liberdade de enviar-lhe um conto do A. Cerviño Seoane intitulado "To klovner", isto é "Dois palhaços". Talvez seja o caso... Um abraço do gelado do Adauto Suannes

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To klovner


Dino Segre Pitigrilli, escritor italiano perseguido pelo fascismo, conseguiu fugir para a Argentina, onde continuou a publicar seus livros irônicos. Um deles fala de um juiz que, de tanto ver injustiças feitas por seus colegas, resolve deixar a toga e tornar-se palhaço de circo. “Ver um homem julgando outro homem me faria rir, se não me fizesse chorar”, sintetizava ele.

Por que me lembrei do humorista italiano? Pois vinha eu pela estrada que liga Oslo à vizinhança e dei com um letreiro: “Munchenmuseet”. Ótima oportunidade para ver as obras do autor do celebrado “O Grito” (atualmente nas mãos de ladrões de bom gosto).

Toco a campainha, desço do ônibus, sigo as setas e, depois de umas tantas voltas, dou com uma porta fechada. “Lamentamos informar que estamos em obras”

Ora essa! Perdi meu sábado!

Como o museu fica num belo parque, ando por ali e dou com um circo. Não é nenhum Cirque du Soleil, mas tem sua dignidade. Como há muito tempo não entro naquele teatro de lona, lá vou eu.

O curioso daquele circo é que o palhaço se apresenta com uma criança, que suponho seja seu filho. Como tantas vezes me acontece nessas ocasiões, fico imaginando a história daquele clown de cara trista. Ele teria sido um juiz, casado, pai de uma criança. Um dia, chegando mais cedo, encontra sua mulher às voltas com o Promotor Público na cama do casal, o célebre tálamo conjugal. Na dúvida se se ofendia pela traição da esposa ou pela canalhice do colega, que lhe usurpou o sacrossanto leito conjugal, ele pega o filho e sai pelo mundo, abandonando a magistratura. E agora ali está ele, ensinando ao filho não as inutilidades do Direito, mas as indispensáveis cabriolas do palhaço.

Ele se supunha, de fato, um magistrado justo, como diziam até mesmo os advogados, essa classe eternamente insatisfeita com os andamentos das coisas da Justiça. E que adoram adular juizes. Quando perdem a causa, no entanto, o juiz se vendeu; quando vencem, dizem que qualquer leigo não daria decisão diversa. Mas até os advogados do seu distrito reconheciam: tinham ali alguém de ilibada conduta e saber jurídico acima daquilo que se poderia chamar a média entre seus pares. Jovem e entusiasmado, fazia de sua toga um símbolo de realização pessoal, impregnando cada ato, cada gesto seu de uma solenidade algo agressiva, muitas vezes mal compreendida pelos que o conheciam menos, mas sempre cumprindo a lei.

Tratava as pessoas do seu distrito com seriedade, mantendo-as longe da casa dele, para ficar eqüidistante da problemática local, como dizia à esposa, quando ela aceitava a visita de alguém.

Um juiz severo, mas, conhecedor dos seus deveres funcionais, mesmo porque era professor de deontologia jurídica.

Sua postura hierática era de uma severidade total, que se notava ser imposta não só às demais pessoas como a si próprio. Simbolizava a serenidade, como juiz, como pai de família, como marido, como homem, enfim. A perfeição encarnada.

As dificuldades naturais que os parcos ganhos salariais apresentavam não permitiam a ele e à família grandes ambições. Sacerdócio, justificava-se perante a mulher, sem abalar-se, contando com a compreensão dela, que não tinha ocupação fora do lar, para que a neutralidade do marido não quedasse abalada. Como explicava ele quando as oportunidades para isso chegavam.

Classe média, apartamento térreo em bairro afastado, vida simples, trivial, repartindo o tempo entre o trabalho estafante e o lazer quase nenhum.

Naquele dia chegara tarde, como de hábito. Seu zelo na coleta da prova tornava as audiências infindáveis, pois tinha fixação na busca da verdade real, esse Santo Graal inatingível, para desespero dos advogados. A esposa se habituara também a isso, retardando a mais não poder o horário do jantar, para que o ágape familiar não fosse cindido, para usar uma expressão do agrado dele.

Servida a refeição, passaram todos para a sala de estar, dedicando ele uns poucos minutos ao filho, antes de atacar a nova remessa de processos a destrinçar. A mulher rematava umas costuras enquanto fingia acompanhar o programa de televisão, em cujo noticiário ele se atualizava sobre os últimos acontecimentos. A tempo certo ela deu por encerrado o recreio, e o filho, qual tivesse ouvido o toque de recolher dado por um distante clarim, recolheu-se ao quarto para o descanso, após colher os ósculos e as bênçãos dos pais.

Ele tinha orgulho do filho. E talvez estivesse aí a ocasião única em que se permitia exteriorizar algum traço de figura humana, que a severidade do rosto, a dureza das expressões e o rigor dos conceitos que emitia teimavam em esconder. Foi até o quarto dele e esperou que dormisse, embe-vecido com a tranqüila serenidade que o sono em-prestava às afeições daquele travesso. Um pensamento distante veio chegando, pondo a nu a dúvi-da que vez ou outra o assaltava. Até onde estava sendo um bom pai? O comportamento severo que impunha ao filho, como norte para uma vida exemplar, dar-lhe-ia, no futuro, a medida exata do seu amor? Não respondeu à pergunta, como das outras vezes que ela viera à sua mente, assentado, talvez, na certeza de sua infalibilidade. Fazia o melhor que podia, dentro de suas limitações humanas, concluiu mais uma vez.

A troca de palavras rápidas com a esposa, uma quase cobrança das atividades do dia, que ela, prazenteiramente, lhe pagava em relatório especí-fico, e o diálogo do casal se encerrava. Seguiu-se a leitura de um livro técnico e dos autos de um pro-cesso, sem possibilidade de debates com a mulher que se limitava, quando indagada, a titubear algu-ma resposta lacônica, dúbia, que não o magoasse, mesmo sendo aquele o diálogo de que ele talvez necessitasse, para mostrar, mais a si mesmo do que aos outros, suas convicções sobre tal ou qual assunto, mas que a mulher, leiga nessas coisas de lei, não podia trazer em seu auxílio, para tristeza dela, como dizia a ele.

Era, em suma, uma noite comum de um dia normal.

A horas tantas, os olhos já algo sentidos pelo esforço da leitura, deu por encerradas as suas atividades profissionais. Tornou-se o marido e, já no quarto, pagou à esposa o debitum conjugale, como a moral e o direito impunham e como ele destacava nas aulas que dava na Faculdade local. Adormeceu tranqüilo, como as consciências puras costumam repousar, após agradecer a Deus mais aquele dia de vida exemplar que lhe havia proporcionado.

A idéia de levantar-se em plena madrugada, para cobrir melhor o filho, se reclamasse de frio, ou para levar de volta ao quarto o fugitivo que teimava em procurar o quarto paterno para melhor proteger-se dos perigos noturnos, trazidos pelas fantasias, nunca lhe fora incômodo. Habituara-se a isso, mesmo porque, na definição de matrimônio, sabia-o muito bem, a mútua assistência era tão importante quanto o remedium concupiscentiae.

Assim, com o mecanismo de hábito, ouvindo passos abafados no quarto, estendeu a mão até o interruptor e acendeu a luz, já se preparando para encontrar o filho que por ali se encontrava. Sentou-se na cama e, por mais que não o desejasse, empalideceu. Sentiu que a cor lhe fugia do rosto. À sua frente, ao contrário do que havia suposto, não se encontrava seu filho, mas um mulato forte, com meia feminina cobrindo-lhe o rosto, também assustado, que, de início, o encarou algo respeitoso.

O raciocínio rápido fez o rapaz levar a mão à cinta e empunhar um revólver, em gesto intimidador. Nada disse o magistrado, que permaneceu estático, impassível, mesmo porque qualquer atitude seria inútil diante da disposição da incômoda visita, expressa no objeto que empunhava, algo rara entre os noruegueses, pois nem policiais andam armados, e na postura grave que assumira.

Enquanto a esposa do juiz despertava, o africano se encaminhou para a porta, retirou a chave, saiu e trancou o quarto pelo lado de fora.

Era preciso fazer alguma coisa, tomar alguma decisão. Mas qual? A divagação rápida foi cortada pelo choro da criança, que lhe chegava abafado, vindo do outro quarto. Que se passaria lá? Era um ladrão? Ou um pretenso injustiçado, que ali estava para vingar-se? Que faria ele com o garoto? Seria ele um violador? Um seqüestrador?

Casos célebres de seqüestro, que sua atividade profissional o levara a conhecer, bailavam agora em sua cabeça. Violência sexual hoje envolve até sacerdotes. Seu desespero aumentava à medida que verificava sua lamentável impotência.

Súbito, a solução: abriu a janela e mediu a altura até o pátio interno do edifício. Arriscou um pulo, algo desajeitado. A falta do necessário preparo físico foi compensada pela pouca altura da janela, que lhe pareceu bem maior do que efetivamente era. Dali se insinuou até um apartamento vizinho, cujo ocupante, procurando não notar o emcabulamento daquela visita inesperada, não lhe regateou auxílio, passado o susto. Toda cautela era necessária, face ao refém de que se poderia valer o meliante, em caso de se vir acuado.

Mais dois ou três vizinhos, convenientemente municiados, colocaram-se em pontos estratégicos, no pátio do edifício, para evitar a retirada do malfeitor.

A espera talvez não tivesse sido pelo tempo enorme que lhes pareceu. Como quer que fosse, lá vinha o estranho, caminhando sozinho, cauteloso, junto à parede, silencioso e atento, em busca da porta do edifício, não dando pela presença dos prestativos vizinhos do magistrado.

- Pare e não se mova: você está cercado.

Atônito, o mulato ainda esboçou um gesto de retirada, que não chegou a executar, diante de um disparo intimidatório. Entregou-se sem luta, com ar de vencido, diante da maioria esmagadora dos captores, que o seguraram pelos braços, levando-o à presença do juiz.

O carro com a sirene ligada não tardou. Uma busca pessoal, uma revista demorada e cuidadosa feita ali mesmo pelos policiais mostrou que o meliante de nada se apossara. Com certeza não tivera tempo, aventou alguém.

- Eu não entrei lá para roubar, foi a explicação sumária dada pelo detido.

- Qual o escopo, então, de alguém que, plenas desoras, invade domicílio alheio, senão para subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia mó-vel? Para furtar algo, enfim?

- Eu não queria roubar nada, excelência, insistiu o preso.

Diante da insistência geral, explicou-se o detido. Deu nome completo, até mesmo a alcunha pela qual era conhecido no bairro dos turcos. Estava sendo processado por um crime de furto. Confessara quando fora preso por causa da tortura, ameaça de ser deportado para seu país de origem, para onde não queria nem poderia voltar. Porém era inocente. Quando fora interrogado em juízo, desmentira a confissão. Segundo seu advogado, porém, a prova era robusta e o promotor tinha insistido que a condenação era imperiosa. Uns três anos de prisão era o que o esperava, dissera o causídico, pois tinha antecedentes criminais em sua pátria, concluíra ele friamente. Que estivesse preparado. Que fugisse, que fosse para longe, à espera da prescrição do crime. Dez anos passam depressa.

Contudo, fugir como? E a mulher grávida? E os filhos na escola? E o emprego, conseguido com tanta dificuldade, na empresa de táxi, mesmo com aquela besteira que havia, de fato, feito quando era jovem? A solução que havia encontrado era bastante simples: ingressaria na casa do juiz e subtrairia os autos do processo, que, segundo o defensor, o magistrado havia levado para casa para sentenciar. De posse dos autos, era dar-lhe sumiço. Livrar-se-ia daquela acusação injusta que tanto o atormentava. Era o que havia tentado fazer, porém sem êxito. Procurara na biblioteca, vasculhara gaveta por gaveta, encontrara inúmeros processos. O seu, no entanto, ali não estava. Arriscara-se por nada, concluiu, patético.

- Quer dizer que, para proclamar sua inocência, vossa senhoria invade domicílio alheio, que é crime previsto no estatuto penal? E empunhando arma de fogo, o que também é crime pelo mesmo estatuto. Acha isso correto?

- Não sei se é correto ou incorreto, doutor. Mas o que eu sei é que naquele caso do furto eu estou inocente. Aquela confissão não vale. Eu juro pela saúde dos meus filhos.

- Eu sei disso, encerrou o magistrado. Baixei os autos ontem a cartório, com a sentença absolutória.

E apontando aos policiais, que seguravam o preso, a porta da rua, sentenciou: podem levá-lo.

Na manhã seguinte o magistrado permitiu-se acordar um pouco mais tarde, para compensar as horas que havia perdido no lamentável incidente, que, de certa forma, dizia respeito a sua atividade profissional.
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