Dupla negativa
Antonio Velloso Carneiro esclarece o emprego do pronome "qualquer" em duplas negativas
Saiu no Migalhas 2.104 (Sadião - clique aqui) que a companhia Perdigão havia comunicado ao mercado que Perdigão e Sadia "não chegaram a qualquer entendimento sobre [associação]" e que "não há, nesta data, qualquer negociação em curso".
Provocado pela referência ao uso de "qualquer", o migalheiro Antonio Velloso Carneiro (Velloso, Pugliese & Guidoni Advogados) encaminhou à redação uma carta com algumas impressões sobre o emprego de "qualquer" em duplas negativas.
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Confira abaixo os esclarecimentos.
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São Paulo, 23 de março de 2009
Carta aberta ao nobre Redator de Migalhas
Ref. Emprego do pronome qualquer em duplas negativas
Senhor Redator:
Saiu no Migalhas nº 2.104 que a companhia Perdigão, em 16 de março, havia comunicado ao mercado que Perdigão e Sadia “não chegaram a qualquer entendimento sobre [associação]” e que “não há, nesta data, qualquer negociação em curso”. Provocado pela referência no número seguinte ao “lastimoso uso de qualquer” naquele comunicado, tomo a liberdade de dividir com V.Sa. algumas impressões sobre o emprego de qualquer em duplas negativas.
Segundo Napoleão Mendes de Almeida, as duplas negativas mantêm o sentido de negação (Gramática Metódica, §784, n. 6). Não é correto empregar qualquer, nosso equivalente ao any inglês, quando vier depois de não, nem, nada, sem ou outra partícula que introduza ou reforce a negação. No Dicionário de Questões Vernáculas, Napoleão critica o emprego de qualquer em duplas negativas:
“Como a ferrugem o é do café, qualquer transformou-se em praga do português. (...) Convençamos-nos, pelos dicionários pelo menos, de que qualquer jamais teve sentido negativo; saibamos, depois, que é de gente muito curta em nossas letras dizer que não podemos empregar duas negativas. Enquanto nosso idioma for o português, a construção inglesa ‘There are no tiger Brazil and there have never been any’ não poderá ser barbaramente traduzida por ‘não há tigres no Brasil e nunca houve qualquer’” (verbete Qualquer e nenhum, p. 452).
Em busca de segunda opinião, consultei o precioso Manual de Redação Profissional do doutor José Maria da Costa. Os verbetes Dupla negativa, Ninguém nunca e Nunca jamais confirmam que as duplas negativas mantêm o sentido de negação. Descendo ao pormenor que nos interessa, o verbete Qualquer aponta a licença que Domingos Paschoal Cegalla pretende dar ao pronome qualquer para exercer a função de nenhum em duplas negativas, mas o Manual obtempera que tal licença se atém “tão-somente à linguagem informal” (p. 1169, itens 6 e 7).
Entre gramáticos, portanto, parece haver consenso: é errado empregar qualquer no lugar de nenhum ou algum nas duplas negativas.
O problema – já para o autor do comunicado de 16 de março, a solução – é que o emprego de qualquer em negativas não é generalizado só no mercado negro. De fato, o caput do art. 5º da Constituição afirma que todos são iguais perante a lei, “sem discriminação de qualquer natureza”. O art. 1.047 do Código Civil prevê que “não pode o comanditário praticar qualquer ato de gestão”. De acordo com o art. 42 do CDC, “o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento”. O art. 42 da Lei de Locações estipula que “[n]ão estando a locação garantida por qualquer das modalidades, o locador poderá exigir do locatário o pagamento do aluguel e encargos até o sexto dia útil do mês vincendo”. O CPC está repleto de duplas negativas que empregam qualquer, nem todas introduzidas por reformas legislativas; é da redação original de 1973, por exemplo, o qualquer empregado nos arts. 601 e 709, II.
Pelo menos duas súmulas do Supremo Tribunal Federal empregam qualquer em duplas negativas:
“Súmula 505. Salvo quando contrariarem a Constituição, não cabe recurso para o Supremo Tribunal Federal, de quaisquer decisões da justiça do trabalho, inclusive dos presidentes de seus tribunais.”
“Súmula 292. Interposto o recurso extraordinário por mais de um dos fundamentos indicados no art. 101, III, da Constituição, a admissão apenas por um deles não prejudica o seu conhecimento por qualquer dos outros.”
A súmula 18 do Superior Tribunal de Justiça também o admite:
“Súmula 18. A sentença concessiva do perdão judicial é declaratória da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório.”
Mesmo o Código Civil de 1916, cuja redação fora rigorosamente depurada, previa no art. 103 que a simulação “não se considerará defeito em qualquer dos casos do artigo antecedente, quando não houver intenção de prejudicar a terceiros”. Ora, se esse qualquer passou pela lupa de Rui Barbosa, ficou na lei por quase noventa anos, foi replicado em tantas outras leis e em súmulas e chegou à Constituição, o argumento do erro perde força e cede lugar à preferência de estilo. É difícil argumentar contra a Constituição, por mais que as leis não sirvam de modelo de linguagem.
Outro atenuante beneficia o autor do comunicado de 16 de março: os escritores e os gramáticos têm seus momentos de fraqueza. Estas são exceções abertas por Machado de Assis e Alexandre Herculano:
“Em todo caso, não violentaremos qualquer outra afeição que ela possa ter” (Machado de Assis, Seus Trinta Melhores Contos, 10ª impressão, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 107).
“estava habituado a não considerar qualquer indivíduo dos que compõem a metade feminina do gênero humano” (Alexandre Herculano, O Monge de Cister).
Debrucei-me sobre o Manual do doutor José Maria da Costa para verificar como ele emprega na prática a regra exposta no verbete Dupla negativa. Em abono daquela regra restritiva, o Manual apresenta estas passagens:
“sem problema algum” (p. 2).
“sem condenação alguma” (p. 5, 40, 612, 845, 860).
“sem modificação alguma” (p. 31 e 46).
“Geraldo Amaral Arruda assevera não conhecer justificativa alguma para essa locução” (p. 35).
“sem restrição alguma” (p. 105, 1159, 1202).
“sem motivo algum” (p. 422, apud José F. Stringari).
“sem proceder a distinção alguma” (p. 458).
“sem determinação alguma” (p. 501, apud Silveira Bueno).
“não pesa acusação alguma” (p. 531).
“sem preposição alguma” (p. 534 e 1440).
“não permitem confusão alguma” (p. 535).
“sem discrepância alguma” (p. 535).
“sem alteração formal alguma” (p. 557).
“sem explicação alguma” (p. 612 e 878).
“sem reflexo algum” (p. 1088).
“sem base científica alguma” (p. 1127).
“sem acento gráfico algum” (p. 1164).
“sem alteração alguma” (p. 1214).
“sem distinção alguma” (p. 1309).
“sem lhe conferir restrição alguma” (p. 1351).
“sem variação alguma” (p. 1369).
“sem prejuízo algum” (p. 1377).
“sem interposição de nenhuma outra partícula de ligação” (p. 619 e 1264).
“sem nenhuma sistematização” (p. 619, apud Artur de Almeida Torres).
“sem nenhum adjunto adverbial” (p. 998).
Todavia, o Manual também emprega diversas vezes a forma condenada:
“não se há de falar no uso do trema em qualquer de suas formas” (p. 82).
“o u não é pronunciado em qualquer das formas de sua conjugação verbal” (p. 480 e 596).
“não transcrevendo qualquer das formas” (p. 1327).
“sem proceder a qualquer distinção” (p. 4).
“sem quaisquer comentários” (p. 5 e 662).
“sem quaisquer outras explicações” (p. 107).
“sem qualquer concessão” (p. 245).
“sem quaisquer outros questionamentos” (p. 354).
“sem acréscimo final de qualquer letra” (p. 666).
“sem qualquer condenação” (p. 736).
“sem qualquer teoria” (p. 881).
“Sem qualquer contestação” (p. 889).
“sem qualquer acréscimo” (p. 902).
“sem proceder a qualquer ressalva” (p. 948).
“sem qualquer reparo” (p. 1019).
“sem qualquer sinal de separação” (p. 1043).
“sem qualquer variação” (p. 1326).
“[o VOLP] não toma partido no caso, não transcrevendo qualquer das formas” (p. 1327).
Há ainda no Manual emprego misto de ambas as formas:
“Aponta-se o fato por curiosidade, sem objeção alguma a qualquer das expressões” (p. 424, acrescentei sublinhados).
“Sem restrição alguma a qualquer das regências” (p. 552).
“Muito embora não haja razão para o uso de qualquer acento gráfico, não surgindo dúvida alguma nesse sentido” (p. 1021).
“...não parece haver razão alguma para se restringir o emprego de qualquer das formas” (p. 643).
“...não parece haver razão para tal emprego restritivo, porquanto, se se admite o uso das formas nominais de ambos os verbos (p. infinitivo, gerúndio e particípio), e se não há empecilho algum que determine ser defectivo qualquer deles no que concerne à conjugação verbal, não parece haver razão impeditiva de seu emprego nas demais formas, também não se apresentando visível qualquer ‘questão de estilo e clareza’ que justifique tal proceder proibitivo” (p. 1147 e 1159).
Há variações, portanto, mesmo em quem afirma que na linguagem formal não deve haver (a) variação alguma; (b) nenhuma variação; ou (c) qualquer variação. Escolha-se a alternativa que mais agradar, pois em todas está assegurado o mínimo suficiente de gramaticalidade.
Apesar dessa libertinagem, nem tudo está perdido. Difícil que seja tachar de errado o emprego de qualquer em duplas negativas, dois argumentos de estilo se lhe opõem. Em primeiro lugar, em certas negativas o emprego qualquer aumenta a precisão da frase. Veja-se o art. 1.336, §2º, do Código Civil:
“Art. 1.336. (...) §2º. O condômino, que não cumprir qualquer dos deveres estabelecidos nos incisos II a V [do caput], pagará a multa prevista no ato constitutivo ou na convenção.”
Quando não cumpre algum dos deveres, um só que seja, o condômino paga multa. Se qualquer fosse trocado por nenhum, as hipóteses de incidência passariam de alternativas a cumulativas, e a multa só incidiria se o condômino descumprisse todos os deveres previstos no caput. Vale dizer, o qualquer está ali bem empregado, mas não se trata de dupla negativa.
O segundo argumento, e melhor, baseia-se na prática dos bons escritores. Façamos logo justiça a Machado de Assis, cujas duplas negativas, apesar do único desvio que encontrei e transcrevi acima, não empregam o pronome qualquer:
“a famosa chinela não tinha nenhum diamante” (Seus Trinta Melhores Contos, 10ª impressão, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 30).
“não olhava nunca para nenhuma pessoa” (Id., p. 40).
“Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa” (Id., p. 41).
“ele não podia, sem desdouro nem perito, desvendar a nenhuma pessoa humana” (Id., p. 50).
“posto que ele não a confessasse e nenhuma pessoa” (Id., p. 51).
“d. Evarista não merecia nenhuma desconfiança” (Id., p. 54).
“A vereança, concluiu ele, não nos dá nenhum poder especial” (Id., p. 75).
“não fica excluída nenhuma outra atividade” (Id., p. 92).
“com a cláusula única de não ligar nenhuma idéia especial a esses vocábulos” (Id., p. 92).
“como o não fizemos em nenhuma outra sala ou quarto” (Id., p. 101).
“conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes” (Id., p. 146).
“não cogitando de nenhum outro interesse” (Id., p. 154).
“o outro advertiu que não tinha nenhum interesse de inventar semelhante cousa” (Id., p. 157).
“as barcas da Praia Grande não viram cair ao mar nenhum passageiro; as casas de armas não venderam nenhuma; as boticas nenhum veneno” (Id., p. 159).
“um certo instinto o levava a não prometer coisa nenhuma a ninguém” (Id., p. 176).
“[Conrado] não atribuía à mulher nenhuma índole perversa ou viciosa” (Id., p. 228).
“por mais que evocasse as emoções extintas, não lhe voltava nenhuma” (Id., p. 231).
“era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum” (Id., p. 254).
“não havia recear nenhum desacato” (Id., p. 267).
“Não estava bem em parte nenhuma” (Id., p. 268).
“não vinha de parte nenhuma” (Id., p. 274).
“Trinta anos. Não os parecia, nem era nenhuma inimiga que lhe dava essa idade” (Id., p. 300).
“de memória percorreu as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma” (Id., p. 321).
“não pratiquei nenhum crime” (Id., p. 322).
“pegou da palavra e demonstrou que nem o escrito prestava, nem o resto do plano valia cousa nenhuma” (Id., p. 340).
“Assim viveu os últimos anos do império e os primeiros da república, sem já crer em nenhum dos dois regimes” (Id., p. 378).
“Não lhe atribuais nenhum ceticismo elegante” (Id., p. 379).
“nada contou pelo receito de não tirar coisa nenhuma” (Id., p. 382).
“Não direi as traças que urdi, nem as peitas, nem as alternativas de confiança e temor, nem as esperadas baldadas, nem nenhuma outra dessas cousas preliminares” (Memórias Póstumas de Brás Cubas, 8ª impressão, Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1999, p. 57).
“Desta vez ou tomas juízo, ou ficas sem cousa nenhuma” (Id., p. 61).
“sem nenhum alinho” (Id., p. 63).
“não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não” (Id., p. 82).
“sem acudir a cousa nenhuma” (Id., p. 91).
“Entrei a desconfiar que não padecera nenhum desastre” (Id., p. 97).
“não queria dizer cousa nenhuma” (Id., p. 101).
“não lhe estava preso agora por nenhum outro vínculo” (Id., p. 102).
“Morreu sem valer a ciência dos médicos, nem o nosso amor, nem os cuidados, que foram muitos, nem cousa nenhuma” (Id., p. 104).
“eu não faria questão nenhuma” (Id., p. 105).
“não cedi cousa nenhuma” (Id., p. 106).
“É certo que não havia ali nenhuma testemunha externa” (Id., p. 114).
“De certo tempo em diante não ouvi cousa nenhuma” (Id., p. 118).
“não houvera paixão nenhuma” (Id., p. 120).
“parecendo não ouvir cousa nenhuma” (Id., p. 122).
“um mundo nosso, em que não havia Lobo Neves, nem casamento, nem moral, nem nenhum outro liame” (Id., p. 128).
“Disse-lhe que não me fizera cousa nenhuma” (Id., p. 132).
“Onde se mete o senhor que não aparece em parte nenhuma?” (Id., p. 133).
“não lhe tinha medo nenhum” (Id., p. 134).
“eu não lhe acho graça nenhuma” (Id., p. 138).
“não ama nenhuma outra cousa além dos livros” (Id., p. 140).
“D. Plácida jurou-me que não esperava fidalgo nenhum” (Id., p. 143).
“não teve nenhum sobressalto” (Id., p. 146).
“era evidente que não acabavam de ouvir nenhuma novidade” (Id., p. 153).
“não era nenhum pé-rapado” (Id., p. 167).
“sem lhe dizer cousa nenhuma” (Id., p. 180).
“estava fechado o livro da vida, sem nenhuma página de sangue” (Id., p. 186).
“Não era levado por nenhum ódio” (Id., p. 198).
“falávamos muito, sem aludir a cousa nenhuma do passado” (Id., p. 204).
“Quincas Borba, porém, não fez restrição alguma” (Id., p. 210).
“estou farto de filosofias que não levam a cousa nenhuma” (Id., p. 212).
“assentamos de lhe não fazer nenhuma referência” (Id., p. 217).
“posto não militasse em nenhum dos partidos sem que se divida a pátria” (Id., p. 219).
“não me lembrava nenhum dissentimento, nenhuma sombra, nada” (Id., p. 220).
“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria” (Id., p. 230).
“Mas não sei nada, coisa nenhuma” (Coleção Melhores Crônicas / Machado de Assis, 2ª ed., São Paulo: Global, p. 163).
“Há estribilhos mais animados que este; não creio que nenhum o alcance na regularidade e na graça do ritmo” (Id., p. 223).
O pronome qualquer também não tem vez nas duplas negativas de Camões:
“não temais / Perigo algum nos vossos Lusitanos” (Os Lusíadas, II/44).
“não refreia / Temor nenhum o juvenil despejo” (Id., IV/84).
“Nunca juízo algum” (Id., IV/102).
“E seu livre confiado não sabendo / Que nenhum confiado lhe fugia” (Obras Completas, 4ª ed., Lisboa: Sá da Costa, 1985, v. I, p. 224).
“sabe[s] tu que, desde agora, / Nem tão triste nenhuma outra pastora” (Id., p. 225).
“Que não sabia ter nenhum respeito” (Id., p. 233).
“Não te engane nenhum contentamento” (Id., vol. II, p. 3).
“Não temas tu (...) Que em nenhum tempo sejam sojugados” (Id., p. 3).
“Não vem de nenhum jeito” (Id., p. 23).
“sem nenhum tento” (Id., p. 35).
“Nem pode haver nenhum contentamento” (Id., p. 37).
“Sem nunca ser ao jugo sometido / De nenhum amoroso pensamento” (Id., p. 37).
“sem nenhuma arte” (Id., p. 59).
“sem nenhum tento” (Id., p. 35).
“A mim não me fizeste / Nenhuma sem-razão” (Id., p. 61).
“Porque em nenhuma parte / Poderás nunca estar” (Id., p. 63).
“sem conserto algum” (Id., p. 74).
“sem nenhum conhecer” (Id., vol. III, p. 92).
“sem nenhum remédio” (Id., p. 128).
“de si só nasce, e não de outro nenhum interesse” (Id., p. 154).
“eu sem ti não quero / Nenhuma alteza de estado” (Id., p. 206).
As duplas negativas são comuns em Rui Barbosa, jamais, pelo que pude encontrar, com emprego do pronome qualquer:
“A lei não prejudicará, em caso nenhum, direitos adquiridos” (Parecer Sobre a Redação do Código Civil, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1949, p. 24).
“sem necessidade alguma” (Id., p. 26).
“não precedendo o verbo julgará nenhum dos vocábulos” (Id., p. 64).
“Tal palavra não se encontra em nenhum dos nossos dicionaristas consagrados” (Id., p. 106).
“..o projeto não dispõe em parte alguma sobre como, quando e por quem serão levantados os impedimentos” (Id., p. 111).
“O projeto não define em parte nenhuma os rios particulares” (Id., p. 194).
“Nem nas leis de país algum, nem nos tratados internacionais” (Id., p. 223).
“Não se diz, nem até aqui se falou em companhia nenhuma” (Id., p. 256).
“dentre eles, não conheço nenhum mais árduo” (Obras Completas - Réplica, vol. XXIX, tomo II, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1953, p. 25).
“não apelar para autoridade alguma” (Id., p. 59).
“nunca escrevi crítica a trabalho literário nenhum” (Id., p. 66).
“não exprime coisa nenhuma” (Id., p. 69).
“não seria suscetível de comparação nenhuma” (Id., p. 84).
“não há, digo eu, diversidade gramatical nenhuma” (Id., p. 104).
“não tinha o eminente professor rumo nenhum quanto às regras de inserção dos pronomes” (Id., p. 136).
“não há dúvida alguma” (Id., p. 206).
“A comissão não nos mostra que o houvesse encontrado com essa feição em parte nenhuma” (Id., p. 240).
“Não se me apontando, logo, antecedência alguma” (Id., p. 240).
“não há nenhum elemento verbal” (Id., p. 307).
“Mas ali não se determina mudança nenhuma” (Id., p. 356).
“não há trocadilho nenhum” (Id., p. 414).
“Mas nem Bluteau, nem Moraes, nem Constâncio, nem Vieira, nem Aulete, nem Ad. Coelho, nem João de Deus, nem Figueiredo,
nenhum dicionário português, em suma, o registra [o verbo reger] senão como transitivo, ou como pronominal” (Id., p.421).
Outros bons escritores confirmam a regra restritiva de não empregar qualquer em duplas negativas:
“Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto, e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes” (Antonio Vieira, Sermões, São Paulo: Hedra, 2001, v. I, p. 34).
“não fazer nenhum caso” (Id., p. 68).
“Não é a exposição minha, nem de nenhum Português” (Id., p. 288).
“sem nenhum princípio de Fé” (Id., p. 575).
“os cabelos crescidos sem nenhum trato” (Euclides da Cunha, Os Sertões, Ateliê Editorial, p. 322).
“Nunca, por ódio brutal, despedaçaste de dor nenhum coração de pai, de irmão, de amigo?” (Alexandre Herculano, Lendas e Narrativas, Livraria Bertrand, 1970, tomo I, p. 28).
“sem nenhum conforto” (Graciliano Ramos, Letras Tortas, 21ª ed., São Paulo: Editora Record, 2005, p. 234).
“Essas denominações não contrariam nenhuma espécie de idéia” (Id., p. 274).
“Não tenho notícia de nenhum outro Lacerda notável” (Id., p. 275).
“Não lhe deixaram na alma nenhum pavor, nenhuma angústia” (Érico Veríssimo, Olhai os Lírios do Campo, 4ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 151).
Esse material todo permite as seguintes conclusões:
1. As duplas ou múltiplas negativas são admitidas e mantêm o sentido de negação.
2. Entre gramáticos mais formalistas, há consenso quanto à rejeição do emprego do pronome qualquer em duplas ou múltiplas negativas.
3. Embora rejeitado na teoria, aquele emprego está presente na Constituição, nas leis e na súmula do Supremo Tribunal Federal.
4. Os escritores consagrados valeram-se largamente das duplas ou múltiplas negativas, com reiterado emprego do pronome nenhum, menor porém considerável emprego do pronome algum, e raríssimo (diga-se desprezível) emprego do pronome qualquer.
Se, de um lado, com toda a convicção me uno aos formalistas e aos escritores consagrados, de outro reconheço que o faço por questão de estilo. Minha principal objeção àquele emprego de qualquer é ser feio.
Agora que a feiura foi positivada na Constituição, não há alternativa à tolerância. Nessas horas, lembro do infeliz Aldrovando Cantagalo, caricatura desenhada por Monteiro Lobato para mostrar quão trabalhosa é a vida, e trágico o destino, dos heróis que se deixam infectar pelo “furúnculo filológico”. Aldrovando tinha lá sua pontinha de razão.
Saudações à comunidade migalheira!
Abraço do amigo
Antonio Velloso Carneiro
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