Migalhas Quentes

Anencefalia

Os ministros do STF receberam um memorial acerca

20/10/2004

 

Anencefalia

 

Ontem, os ministros do STF receberam um memorial acerca do cabimento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental sobre a questão da anencefalia.

 

A questão de ordem estará sendo apreciada pelo colegiado hoje, ocasião em que o Prof. Luís Roberto Barroso, advogado do escritório Luís Roberto Barroso e Associados, sustentará oralmente as razões contidas no memorial.

 

Leia abaixo a íntegra do memorial.

_______________

 

 

 

 

 

 

Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54:

Demonstração de seu Cabimento

Memorial da Autora

Confederação Nacional de Trabalhadores na Saúde (CNTS)

Sumário

A hipótese

Nota Prévia

Fundamento e legitimidade da atuação do supremo tribunal federal na matéria

Parte I

Possibilidade jurídica do pedido: propriedade da utilização da técnica da interpretação conforme a Constituição

Parte II

Atendimento dos requisitos constitucionais e legais de cabimento da ADPF

Conclusão

Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2004

Excelentíssimo Senhor

Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE

Supremo Tribunal Federal

Ref. ADPF Nº 54

Excelentíssimo Senhor Ministro:

Em vista da Questão de Ordem designada para o próximo dia 20 de outubro, tendo por objeto o cabimento da ADPF proposta, pede vênia a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, por seu advogado, para submeter a V. Exa. o presente memorial.

Nas páginas que se seguem são enfrentadas as impugnações suscitadas, tanto a de caráter institucional – a de ser o Legislativo e não o Judiciário a instância própria de deliberação da matéria – quanto as de natureza dogmática, relativas à utilização da técnica de interpretação conforme a Constituição e ao cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental.

O memorial seguirá o roteiro apresentado ao início.

A hipótese

1. Postula-se, na ADPF nº 54, a interpretação conforme a Constituição dos art. 124, 126, caput e 128, I e II do Código Penal, para o fim de se reconhecer que eles não incidem no caso de interrupção da gestação de fetos anencefálicos. A anencefalia é a má-formação congênita pela qual o feto, por defeito de fechamento do tubo neural durante a gestação, não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex. Como conseqüência, o feto não terá qualquer viabilidade de vida extra-uterina.

2. Pelo menos desde o início da década de 90, centenas de juízes por todo o país concederam alvarás autorizando a antecipação do parto nessa hipótese1. No Brasil, na linha do padrão internacional, adota-se a morte encefálica ou cerebral como critério científico para declarar um indivíduo morto. Isso é o que dispõe a Lei nº 9.434, de 4.01.97, que regula o transplante de órgãos no país2. Ou seja: uma vez que se constate, de acordo com os critérios médicos próprios, a morte cerebral, o indivíduo será considerado morto, ainda que alguns de seus órgãos permaneçam funcionando por meio de aparelhos.

3. A “vida” intra-uterina do feto anencefálico corresponde, a rigor, apenas ao funcionamento de seus órgãos, mantido pelo corpo da gestante ao qual está ligado, da mesma forma que os órgãos de um indivíduo cuja morte cerebral tenha sido constatada podem ser mantidos em funcionamento por aparelhos a ele conectados. Ora bem: se não há, na hipótese, vida a ser protegida, nada justifica a restrição aos direitos fundamentais da gestante (dignidade, liberdade e saúde) que a obrigação de levar a cabo a gravidez acarreta. A incidência da norma penal no caso, portanto, será inteiramente desproporcional e inconstitucional3.

4.Exposta a hipótese, com o fim de permitir que o intérprete visualize o problema como um todo, passa-se a enfrentar o tema específico da questão de ordem.

Nota Prévia

Fundamento e legitimidade da atuação do supremo tribunal federal na matéria

I. Legitimidade da jurisdição constitucional4

5.Em sentido amplo, a jurisdição constitucional envolve a interpretação e aplicação da Constituição, tendo como uma de suas principais expressões o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. No Brasil, esta possibilidade vem desde a primeira Constituição republicana (controle incidental e difuso), tendo sido ampliada após a Emenda Constitucional nº 16/65 (controle principal e concentrado). A existência de fundamento normativo expresso, aliada a outras circunstâncias, adiou o debate no país acerca da legitimidade do desempenho pela corte constitucional de um papel normalmente referido como contra-majoritário5: órgãos e agentes públicos não eleitos têm o poder de afastar ou conformar normas e políticas públicas elaboradas por representantes escolhidos pela vontade popular.

6. Ao longo dos últimos dois séculos, impuseram-se doutrinariamente duas grandes linhas de justificação desse papel das supremas cortes/tribunais constitucionais. A primeira, mais tradicional, assenta raízes na soberania popular e na separação de Poderes: a Constituição, expressão maior da vontade do povo, deve prevalecer sobre as leis, manifestação das maiorias parlamentares. Cabe assim ao Judiciário, no desempenho de sua função de aplicar o Direito, afirmar tal supremacia, negando validade à lei inconstitucional. A segunda, que lida com a realidade mais complexa da nova interpretação jurídica6, procura legitimar o desempenho do controle de constitucionalidade em outro fundamento: a preservação das condições essenciais de funcionamento do Estado democrático. Ao juiz constitucional cabe assegurar determinados valores substantivos e a observância dos procedimentos adequados de participação e deliberação7.

7. A propósito do tema versado na ADPF objeto do presente memorial, e confirmando a tese desenvolvida nos parágrafos e notas anteriores, é bem de ver que as principais cortes constitucionais do mundo – Estados Unidos, Alemanha, Canadá, França, Portugal etc. – já lidaram com questões afetas à interrupção da gravidez em hipóteses muito mais abrangentes do que aquela aqui versada. E a Suprema Corte da Argentina, em decisão histórica juntada à petição inicial, pronunciou-se especificamente sobre a legitimidade da antecipação do parto de fetos anencefálicos.

II. Inexistência de dificuldade contra-majoritária

8. O papel de preeminência exercido pelo supremo tribunal/corte constitucional na sustentação e equilíbrio do Estado constitucional moderno neutralizou, em intensidade relevante, a crítica relativa à denominada dificuldade contra-majoritária. O ideal democrático não se reduz ao princípio majoritário, cabendo ao órgão maior da jurisdição constitucional a função de árbitro do jogo e garantidor dos direitos fundamentais. Instigante que seja este debate, a verdade é que na questão discutida nesta ADPF nº 54 não se coloca qualquer dificuldade dessa natureza. A pretensão veiculada pela autora – tanto no pedido principal como no alternativo – não consiste na declaração de inconstitucionalidade de qualquer norma em vigor, a ser retirada do sistema. Vale dizer: não há qualquer grau de superposição entre Poderes. Pede-se tão-somente que o Supremo Tribunal Federal determine o sentido e alcance de normas constitucionais e infraconstitucionais, pronunciando uma interpretação harmonizadora, singelamente dedutível do sistema como um todo.

III. A hipótese não é de atuação como legislador positivo

9. O tipo de preocupação subjacente à terminologia legislador positivo, que remonta ao debate entre Kelsen e Carl Schmitt a propósito de quem deveria ser o guardião da Constituição, tem sido amplamente revisitado pela moderna teoria constitucional8. Não é o caso, todavia, de se fazer aqui o desvio da discussão, à vista de sua inaplicabilidade à hipótese. Não se pede nem se espera que o Supremo Tribunal Federal atue como legislador positivo no processo objetivo aqui examinado, criando uma norma até então inexistente. A pretensão formulada pela autora da ação pode ser enquadrada em uma de duas categorias: (i) a da aplicação direta e imediata do texto constitucional; ou (ii) a da aplicação do direito infraconstitucional em harmonia com a Constituição. Em nenhuma das duas situações pretende-se que o STF inove originariamente na ordem jurídica, mas apenas que extraia do sistema a disciplina imposta à matéria.

IV. Força normativa da Constituição e aplicabilidade direta e imediata de suas normas9

10. Uma das grandes mudanças de paradigma ocorridas na ciência jurídica ao longo do século XX foi o reconhecimento de força normativa às normas constitucionais10. Entre nós, este processo só se consumou após a vigência da Constituição de 1988, com o impulso dado pela doutrina brasileira da efetividade11. Investidas do atributo próprio das normas jurídicas – a imperatividade –, as normas constitucionais passam a tutelar, direta e imediatamente, as situações que contemplam, podendo ser invocadas tanto pelos cidadãos quanto pelos Poderes Públicos. O constituinte houve por bem explicitar este entendimento, na dicção expressa do art. 5º, § 1º: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

11. Como conseqüência, as normas constitucionais que consagram os preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da liberdade e da autonomia da vontade, bem como do direito à saúde, protegem de maneira direta e imediata as situações abrangidas por elas. Eventual ausência de intermediação do legislador ordinário – ainda que fosse esta necessária, o que não é o caso – não teria o condão de barrar sua aplicação pelo Judiciário na concretização daqueles valores e bens jurídicos.

V. Centralidade da Constituição e constitucionalização do direito infraconstitucional12

12. Nestes últimos dezesseis anos, a normatividade e a efetividade acima apreciadas, aliadas ao desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional, redefiniram o papel da Constituição na ordem jurídica brasileira. Neste novo cenário, o Código Civil (e os microssistemas que se formaram em torno dele, em áreas como direito do consumidor, criança e adolescente, locações, alimentos, divórcio, dentre outras) perdeu pouco a pouco sua posição de preeminência. Progressivamente, foi se consumando no Brasil um fenômeno anteriormente verificado na Alemanha, após a Segunda Guerra: a passagem da Lei Fundamental para o centro do sistema. À supremacia até então meramente formal, agregou-se uma valia material e axiológica à Constituição, potencializada pela abertura do sistema jurídico e pela normatividade de seus princípios13.

13. A Constituição passa a ser, assim, não apenas um sistema em si – com a sua ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Este fenômeno de constitucionalização do direito infraconstitucional, também apelidado de filtragem constitucional , consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. A constitucionalização do direito em geral – civil, penal, processual, administrativo – não identifica apenas a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional14.

14. À luz de tais premissas, toda interpretação jurídica é também interpretação constitucional. Qualquer operação de realização do direito envolve a aplicação direta ou indireta da Constituição. Direta, quando uma pretensão se fundar em uma norma constitucional; e indireta quando se fundar em uma norma infraconstitucional, por duas razões: a) antes de aplicar a norma, o intérprete deverá verificar se ela é compatível com a Constituição, porque, se não for, não poderá fazê-la incidir; e b) ao aplicar a norma, deverá orientar seu sentido e alcance à realização dos fins constitucionais.

15. É disso que se trata na presente ADPF. Requer-se ao Supremo Tribunal Federal que proceda à leitura do Código Penal à luz da Constituição, interpretando-o de modo a realizar os preceitos fundamentais nela inscritos, impedindo uma desajustada interpretação retrospectiva15. O intérprete constitucional deve ser passageiro do futuro e não prisioneiro do passado16.

VI. Democracia deliberativa e razão pública17

16. Por fim, e apenas para ampliar a justificação do argumento, cabe fazer breve referência a dois conceitos presentes no debate atual da teoria democrática e da filosofia constitucional. Na configuração moderna do Estado e da sociedade, a idéia de democracia já não se reduz à prerrogativa popular de eleger representantes, nem tampouco às manifestações das instâncias formais do processo majoritário. Na democracia deliberativa, o debate público amplo, realizado em contexto de livre circulação de idéias e de informações, e observado o respeito aos direitos fundamentais, desempenha uma função racionalizadora e legitimadora de determinadas decisões políticas.

17. Nesse ambiente, o tribunal constitucional deve ser o intérprete da razão pública, dela se valendo para justificar suas decisões. O uso da razão pública importa em afastar dogmas religiosos ou ideológicos – cuja validade é aceita apenas pelo grupo dos seus seguidores – e utilizar argumentos que sejam reconhecidos como legítimos por todos os grupos sociais dispostos a um debate franco18, ainda que não concordem quanto ao resultado obtido em concreto. O contrário seria privilegiar as opções de determinados segmentos sociais em detrimento das de outros, desconsiderando que o pluralismo é não apenas um fato social inegável, mas também um dos fundamentos expressos da República Federativa do Brasil, consagrado no art. 1º, inciso IV, da Constituição.

Parte I

Possibilidade jurídica do pedido: propriedade da utilização da técnica da interpretação conforme a Constituição19

I. Declarar inconstitucional uma incidência normativa (declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução do texto) não é legislar positivamente

18. O pedido formulado na ADPF nº 54 é o de que o Supremo Tribunal Federal, procedendo à interpretação conforme a Constituição do conjunto normativo formado pelos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal, declare que ele não se aplica – sob pena de inconstitucionalidade – à seguinte hipótese: antecipação do parto de feto anencefálico por decisão da gestante. Em outros termos: pede-se que o STF declare a inconstitucionalidade de uma determinada incidência dos dispositivos referidos, produzindo como resultado uma declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução do texto20.

19. O que cumpre examinar nesta questão de ordem é se o pedido que se acaba de descrever é juridicamente possível. Isto é: se ele pode ser atendido pelo STF, se ele está dentro das possibilidades da técnica da interpretação conforme a Constituição ou se ele transformaria o STF, indevidamente, em legislador positivo. Trata-se de investigar, portanto, se, para atender ao pedido formulado, o STF estaria elaborando norma nova e invadindo a competência do Legislativo. O ponto, na verdade, não envolve maiores complexidades.

20. O controle de constitucionalidade, como consignado anteriormente, é uma modalidade de interpretação e aplicação da Constituição. Independentemente de outras especulações, há consenso de que cabe ao Judiciário pronunciar a invalidade dos enunciados normativos incompatíveis com o texto constitucional, paralisando-lhes a eficácia. De outra parte, na linha do conhecimento convencional, a ele não caberia inovar na ordem jurídica, criando comando até então inexistente. Em outras palavras: o Judiciário estaria autorizado a invalidar um ato do Legislativo, mas não a substituí-lo por um ato de vontade própria21.

21. Pois bem. As modernas técnicas de interpretação constitucional – como é o caso da interpretação conforme a Constituição – continuam vinculadas a esse pressuposto, ao qual agregam um elemento adicional inexorável. A interpretação jurídica dificilmente é unívoca, seja porque um mesmo enunciado, ao incidir sobre diferentes circunstâncias de fato, pode produzir normas diversas22, seja porque, mesmo em tese, um enunciado pode admitir várias interpretações. Inicie-se por essa segunda possibilidade.

22. Não é incomum que um enunciado abstrato admita várias interpretações, algumas inconstitucionais e outras válidas. Ao invés de declarar a invalidade do enunciado como um todo, a Corte Constitucional pode declarar inconstitucionais apenas uma ou algumas das interpretações possíveis, salvando assim o dispositivo. Trata-se, como já se tornou corrente, de um esforço de conciliação entre a presunção de constitucionalidade das leis e a supremacia da Constituição. Note-se que ao fixar uma interpretação conforme a Constituição, e excluir as demais, a Corte Constitucional procede a um minus em relação ao que está autorizada a fazer, já que poderia declarar a invalidade total do dispositivo. Essa, portanto, é uma primeira aplicação da interpretação conforme a Constituição: fixar, relativamente a um enunciado, uma interpretação possível e que o torne compatível com a Carta, excluindo as demais possibilidades interpretativas.

23. A técnica da interpretação conforme a Constituição pode produzir, no entanto, um segundo tipo de resultado: trata-se da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução do texto. A hipótese é ainda mais simples que a anterior. Como se sabe, um mesmo dispositivo, ao incidir sobre circunstâncias diferentes, pode produzir normas diversas; e é perfeitamente possível que uma ou alguma delas se mostrem inconstitucionais por conta de suas características particulares. Ora, por meio da interpretação conforme, no lugar de declarar inconstitucional o dispositivo como um todo, bastará reduzir sua aparente abrangência para o fim de excluir aquela hipótese de sua incidência.

24. É bem de ver que nem a técnica nem os resultados da interpretação conforme a Constituição são novidade para a experiência do Supremo Tribunal Federal. Em várias ocasiões, a Corte já se utilizou dessa ferramenta hermenêutica, valendo referir como exemplo o julgamento da ADIn nº 1946/DF, na qual foi apreciada, dentre outros pontos, a constitucionalidade do teto criado pela EC nº 20/98 para os benefícios pagos pela Previdência Social. Naquela oportunidade, o STF entendeu que, embora a imposição do teto fosse válida para a generalidade dos casos, ela seria inconstitucional caso aplicada a um benefício específico: a licença maternidade. Nessa linha, o Plenário conferiu interpretação conforme a Constituição ao dispositivo para declarar que a inovação da EC nº 20/98 era constitucional uma vez que não incidisse sobre a licença maternidade23.

25. A aplicação do que se acaba de expor à ADPF nº 54 é intuitiva. Não se pretende aqui que o STF edite qualquer norma nova, mas apenas que declare a inconstitucionalidade de uma determinada incidência dos enunciados referidos no Código Penal24. Sobre esse tema, há ainda um aspecto importante a observar.

II. A existência de projeto de lei pretendendo modificar dispositivo impugnado perante o STF não impede a Corte de declarar sua inconstitucionalidade total ou parcial

26. Retome-se por um instante o exemplo da ADIn nº 1946/DF mencionada acima. Imagine-se que, antes de examinado o seu mérito pelo STF, estivesse em tramitação no Congresso Nacional proposta de emenda constitucional cujo objeto fosse esclarecer que o teto imposto aos benefícios previdenciários não se deveria aplicar à licença maternidade. Essa circunstância impediria o STF de considerar a referida incidência da EC nº 20/98 inconstitucional? Naturalmente que não.

27. Na verdade, a existência ou não de projeto de lei pretendendo revogar ou alterar dispositivos impugnados perante o STF não tem o condão de impedir que a Corte pronuncie a sua inconstitucionalidade e nem transforma o STF, por isso, em legislador positivo nessas hipóteses. Se fosse assim, bastaria a apresentação de um projeto de lei, por um único parlamentar, para obstruir a competência constitucional do Supremo Tribunal Federal. O argumento evidentemente não se sustenta.

28. Na realidade, o fato de a constitucionalidade de uma lei – ou mesmo de uma incidência específica dela, como é o caso aqui – estar em discussão perante o STF não impede que as Casas Legislativas debatam alterações nesse mesmo diploma ou mesmo sua revogação. Por outro lado, até que se ultimem, os trabalhos do Legislativo não interferem na competência do STF para declarar a invalidade, total ou parcial, de enunciados vigentes.

29. Aplicando-se tais premissas à ADPF nº 54: o fato de existir projeto de lei pretendendo explicitar a não aplicação das disposições do Código Penal sobre aborto às hipóteses de antecipação do parto de fato anencefálico não interfere com a competência e legitimidade do STF para decidir se essa incidência normativa é constitucional ou não. Ou seja: nem o pedido formulado na ADPF pretende que o Supremo Tribunal Federal crie qualquer norma nova, nem o fato de a questão ter sido ou estar sendo discutida no Congresso Nacional retira da Corte a possibilidade de pronunciar-se a respeito.

Parte II

Atendimento dos requisitos constitucionais e legais de cabimento da ADPf25

30.O objeto da ADPF, nos termos do art. 102, § 1º, da Constituição26 e do art. 1º da Lei nº 9.882/9927, é evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público. Os dois requisitos principais estão claramente presentes na hipótese:

(i) há preceitos constitucionais fundamentais sendo lesionados – a dignidade, a liberdade e a saúde da gestante; e

(ii) a lesão em tela resulta de ato do Poder Público, que pode ser descrito como o conjunto normativo extraído dos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal, ou mais propriamente, na interpretação inadequada que múltiplas decisões têm dado a tais dispositivos.

31. Nos termos do art. 11 da Lei nº 9.882/9928, a decisão a ser proferida em ADPF poderá envolver a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Como referido, o pedido envolve menos do que isso, já que apenas se requer a declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução do texto, dos dispositivos do Código Penal já referidos.

32. A Lei nº 9.882/99 adicionou aos dois requisitos acima um terceiro: a inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesividade (art. 4º, § 1º)29. Outro meio eficaz, como já tem entendido essa Eg. Corte, corresponde a outro processo objetivo no qual se possa decidir a questão em caráter erga omnes e vinculante. Ocorre que, na linha da jurisprudência do STF acerca da legislação editada antes da edição da Carta de 1988, não caberia ação direta de inconstitucionalidade para examinar a validade de incidência de dispositivos do Código Penal30. Tampouco seria hipótese de ação declaratória de constitucionalidade ou de qualquer outro processo objetivo.

33. E há ainda uma questão adicional da maior relevância. Além de não haver outro meio objetivo de sanar a lesão, muito dificilmente o tema discutido nesta ADPF chegará ao STF por via de um processo subjetivo, ainda que para produzir efeito apenas entre as partes. Como a prática já demonstrou, a demora inerente aos trâmites processuais normalmente privará a Corte da oportunidade de examinar o assunto antes do desfecho trágico da gestação, com todo o sofrimento que ele trará, inclusive o ônus de submeter-se a gestante à operação de cesariana, de registrar o natimorto, comunicar oficialmente seu óbito e enterrá-lo31.

34. Note-se, em desfecho, que a autora requereu, alternativamente e por eventualidade, que na hipótese de se entender pelo descabimento da ADPF, fosse o pedido recebido como de ação direta de inconstitucionalidade (ADIn), no qual se procederia à interpretação conforme a Constituição dos dispositivos do Código Penal impugnados. A jurisprudência tradicional do STF, relativamente ao não cabimento de ADIn em face do direito pré-constitucional, não seria de se aplicar32. É que a lógica que move essa linha de entendimento é a de que a lei anterior incompatível com a Constituição terá sido por ela revogada, sendo descabida a ação direta de inconstitucionalidade, que se destina a retirá-la do sistema. Esse raciocínio, naturalmente, não se aplica ao pedido de interpretação conforme, em que a norma permanece em vigor, apenas com a exclusão de uma ou mais incidências.

Conclusão

35. A matéria debatida na ADPF nº 54 é tipicamente da competência de uma corte constitucional, que tem legitimidade democrática para decidi-la. A questão posta perante o Supremo Tribunal Federal sequer envolve qualquer dificuldade contra-majoritária ou pedido de atuação como legislador positivo. Trata-se tão-somente da aplicação direta e imediata do texto constitucional e/ou da interpretação do direito infraconstitucional de modo a realizar os preceitos fundamentais da Constituição. Numa democracia deliberativa, o tribunal constitucional deve ser intérprete e veículo da razão pública.

36. A viabilidade jurídica do pedido formulado é confirmada por inúmeros precedentes do STF, nos quais procedeu à interpretação conforme a Constituição. Esta técnica de interpretação no âmbito do exercício da jurisdição constitucional pode produzir dois resultados, ambos menos abrangentes que a declaração de inconstitucionalidade de dispositivo legal, a saber: (i) a fixação, como legítima, de uma interpretação possível do enunciado normativo, com exclusão das demais; e (ii) a declaração de inconstitucionalidade de determinadas incidências do enunciado, sem redução ou alteração de seu texto. A hipótese dos autos subsume-se perfeitamente nesta segunda possibilidade. Tudo o que se pede é que o STF declare que as normas penais sobre aborto não incidem sobre a hipótese de antecipação de parto de feto anencefálico – quando tal condição seja atestada por laudo médico33 e o procedimento seja autorizado pela gestante –, sob pena de inconstitucionalidade.

37. Por fim, também os três requisitos legais para o cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental estão inequivocamente presentes: (i) há preceitos fundamentais sendo vulnerados (dignidade, liberdade e saúde da gestante); (ii) a lesão resulta de ato do Poder Público (imposição, sobre a hipótese, de uma incidência inconstitucional de normas do Código Penal); e (ii) não há outro meio eficaz de sanar a lesividade, quer objetivo quer subjetivo.

38. Assim, pelas razões expostas analiticamente, e que foram acima compendiadas, a CNTS requer que a ADPF nº 54 seja conhecida, de modo que a questão de mérito nela discutida possa ser apreciada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.

LUÍS ROBERTO BARROSO

OAB/RJ 37.769


1 Esse entendimento amplamente majoritário pode vir a sofrer o impacto de recente decisão proferida na matéria pelo Superior Tribunal de Justiça (DJU 22.03.04, HC nº 32.159, Rel. Min. Laurita Vaz).
2Lei nº 9.434/97, art. 3º: “A retirada post mortem de tecidos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.”
3 É possível chegar-se ao mesmo resultado mediante um critério de ponderação de valores: a permanência de um feto sem viabilidade de vida extra-uterina no útero da gestante não legitima o imenso sofrimento a que esta estará sujeita, por meses a fio, submetendo-se inutilmente às transformações físicas e psicológicas trazidas pela gravidez.
4 Esta não é a sede própria para aprofundar o debate doutrinário que tem mobilizado, de longa data, os principais constitucionalistas do mundo, e que mais recentemente vem se desenvolvendo no Brasil. Sobre o tema, vejam-se: Hamilton, Madison e Jay, The federalist papers, 1981 (a publicação original foi entre 1787 e 1788), especialmente o Federalista n. 78; John Marshall, voto em Marbury v. Madison [5 U.S. (1 Cranch)], 1803; Hans Kelsen, Quién debe ser el defensor de la Constitución, 1931; Carl Schmitt, La defensa de la constitución, 1931; John Hart Ely, Democracy and distrust, 1980; Alexander Bickel, The least dangerous branch, 1986; Ronald Dworkin, A matter of principle, 1985; John Rawls, A theory of justice, 1999; Jürgen Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1989; Bruce Ackerman, We the people: foundations, 1993; Carlos Santiago Nino, La Constitución de la democracia deliberativa, 1997. Na literatura nacional mais recente, vejam-se: Gustavo Binenbojm, A nova jurisdição constitucional brasileira, 2004; Cláudio de Souza Pereira Neto, Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade prática, 2002; José Adércio Leite Sampaio, A Constituição reinventada pela jurisdição constitucional, 2002; Bianca Stamato Fernandes, Jurisdição constitucional, 2004.
5 A expressão “dificuldade contra-majoritária” (the counter-majoritarian difficulty) foi cunhada por Alexander Bickel, The least dangerous branch, 1986, p. 16, cuja 1a. edição é de 1962.
6 No atual estágio da dogmática jurídica reconhece-se que, em múltiplas situações, o juiz não é apenas “a boca que pronuncia as palavras da lei”, na expressão de Montesquieu. Hipóteses há em que o intérprete é co-participante do processo de criação do Direito, integrando o conteúdo da norma com valorações próprias e escolhas fundamentadas, notadamente quando se trate da aplicação de cláusulas gerais e princípios. Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, “O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro”, Revista Forense 371:175.
7 A jurisdição constitucional legitimou-se, historicamente, pelo inestimável serviço prestado às duas idéias centrais que se fundiram para criar o moderno Estado democrático de direito: constitucionalismo (i.e., poder limitado e respeito aos direitos fundamentais) e democracia (soberania popular e governo da maioria). O papel da corte constitucional é assegurar que todos estes elementos convivam em harmonia, cabendo-lhe, ademais, a atribuição delicada de estancar a vontade da maioria quando atropele o procedimento democrático ou vulnere direitos fundamentais da minoria.
8 V. a propósito, Bianca Stamato Fernandes, Jurisdição constitucional, 2004, p. 97.
9Konrad Hesse, A força normativa da Constituição, trad. Gilmar Ferreira Mendes, 1991; Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, 1991.
10Superou-se, assim, o modelo no qual a Constituição era vista como um documento essencialmente político, um convite à atuação dos Poderes Públicos. A concretização de suas propostas ficava invariavelmente condicionada à liberdade de conformação do legislador ou à discricionariedade do administrador. Ao Judiciário não se reconhecia qualquer papel relevante na realização do conteúdo da Constituição. O fenômeno da normatividade da Constituição consolida-se, em países como Alemanha e Itália, no curso da década de 50, ao passo que em outros, como a Espanha, somente após a redemocratização trazida pela Constituição de 1978. Sobre o caso espanhol, v. Eduardo García de Enterría, La Constitución Española de 1978 como pacto social y como norma jurídica, 2003.
11 Sobre eficácia das normas constitucionais, v. Vezio Crisafulli, La Costituzione e le sue disposizioni di principio, 1952; J. H. Meirelles Teixeira, Curso de direito constitucional, 1991, texto revisto e atualizado por Maria Garcia; José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1998; Celso Antonio Bandeira de Mello, “Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social”, Revista de Direito Público n. 57-58, 1981; Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres de Britto, Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais, 1982; Eros Roberto Grau, A constituinte e a constituição que teremos, 1985. Mais especificamente sobre a questão da efetividade, v. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2003, e a Doutrina brasileira da efetividade, artigo em homenagem ao Professor Paulo Bonavides, ainda não publicado: “Para realizar este objetivo, o movimento pela efetividade promoveu, com sucesso, três mudanças de paradigma na teoria e na prática do direito constitucional no país. No plano jurídico, atribuiu normatividade plena à Constituição, que passou a ter aplicabilidade direta e imediata, tornando-se fonte de direitos e obrigações. Do ponto de vista científico ou dogmático, reconheceu ao direito constitucional um objeto próprio e autônomo, estremando-o do discurso puramente político ou sociológico. E, por fim, sob o aspecto institucional, contribuiu para a ascensão do Poder Judiciário no Brasil, dando-lhe um papel mais destacado na concretização dos valores e dos direitos constitucionais”.
12 Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2003; Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios: o princípio da dignidade da pessoa humana, 2002; Daniel Sarmento, Direitos fundamentais e relações privadas, 2004.
13 V. Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil, 1997, p. 6: “O Código Civil certamente perdeu a centralidade de outrora. O papel unificador do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevância publicista, é desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo Texto Constitucional”. Vejam-se também: Maria Celina B. M. Tepedino, “A caminho de um direito civil constitucional”, Revista de Direito Civil 65:21; Luiz Edson Fachin, Teoria crítica do direito civil, 2000; Gustavo Tepedino, O Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas para uma reforma legislativa. In: Gustavo Tepedino (org.), Problemas de direito civil-constitucional, 2001; e Judith Martins-Costa (org.), A reconstrução do direito privado, 2002.
14 J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, 1991, p. 45: “A principal manifestação da preeminência normativa da Constituição consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida à luz dela e passada pelo seu crivo”. V. também, Paulo Ricardo Schier, Filtragem constitucional, 1999; Riccardo Guastini, “La ‘constitucionalización’ del ordenamiento jurídico: el caso italiano”. In: Miguel Carbonell (org.), Neoconstitucionalismo, 2003, p. 49: “Un ordenamiento jurídico constitucionalizado se caracteriza por una Constitución extremadamente invasora, entrometida (pervasiva, invadente), capaz de condicionar tanto la legislación como la jurisprudência y el estilo doctrinal, la acción de los actores políticos, así como las relaciones sociales”.
15 A interpretação retrospectiva é uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo. Com argúcia e espírito, José Carlos Barbosa Moreira estigmatiza a equivocidade dessa postura: “Põe-se ênfase nas semelhanças, corre-se um véu sobre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito destas, a disciplina da matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou. É um tipo de interpretação (...) em que o olhar do intérprete dirige-se antes ao passado que ao presente, e a imagem que ele capta é menos a representação da realidade que uma sombra fantasmagórica” (“O Poder Judiciário e a efetividade da nova Constituição”, Revista Forense 304:151, 1988, p. 152).
16 Veja-se, a propósito, o pertinente comentário de Peter Häberle, Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição, 1997 (trad. Gilmar Ferreira Mendes): “Diferentemente das leis pós-constitucionais, as leis pré-constitucionais não devem ser consideradas como interpretação constitucional do legislador. Assim, elas reclamam não só um tratamento processual diferenciado, como também exigem um exame mais rigoroso quanto ao seu conteúdo”.
17 John Rawls, A theory of justice, 1999; Jürgen Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1989; Carlos Santiago Nino, La Constitución de la democracia deliberativa, 1997; Gisele Citadino, Pluralismo, direito e justiça distributiva, 1999; e Cláudio de Souza Pereira Neto, Teoria constitucional e democracia deliberativa, 2004, tese de doutoramento, no prelo.
18 Nesse ponto deve-se destacar que a tese defendida na ADPF nº 54 tem o apoio amplo e consistente da opinião pública e de órgão e entidades públicos e da sociedade civil, dentre os quais: o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, do Ministério da Justiça (CDDPH-MJ), a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, subordinada diretamente à Presidência da República; a Ordem dos Advogados do Brasil – Conselho Federal (OAB), o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a FEBRASGO (Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia). A visão contrária é defendida, em espectro muito reduzido, por pessoas e entidades – respeitáveis e representativas – que se baseiam em concepções religiosas e dogmáticas.
19 Konrad Hesse, “La interpretación constitucional”. In: Escritos de derecho constitucional, 1983, p. 53 e segs.; Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el tribunal constitucional, 1985, p. 95 e ss.; Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição constitucional, 1999, p. 229 e segs.; Clèmerson Merlin Clève, A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, 2000, p. 263 e ss.; Lênio Luiz Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2002, p. 443 e ss.; Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2004, p. 188 e ss..
20Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição constitucional, 1999, p. 204/5.
21 Nesse sentido, v. STF, Rp 1.417-DF, DJ 15.04.88, Rel. Min. Moreira Alves: “Ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese, o STF – em sua função de Corte Constitucional – atua como legislador negativo, mas não tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurídica diversa da instituída pelo Poder Legislativo”. Não é relevante para a hipótese aqui versada o aprofundamento da reflexão sobre este tema.
22 A doutrina mais moderna tem traçado uma distinção entre enunciado normativo e norma, baseada na premissa de que não há interpretação em abstrato. Enunciado normativo é o texto, o relato contido no dispositivo constitucional ou legal. Norma, por sua vez, é o produto da aplicação do enunciado a uma determinada situação, isto é, a concretização do enunciado. De um mesmo enunciado é possível extrair diversas normas. Por exemplo: do enunciado do art. 5º, LXIII da Constituição – o preso tem direito de permanecer calado – extraem-se normas diversas, inclusive as que asseguram o direito à não auto-incriminação ao interrogado em geral (STF, DJU 14.12.01, HC 80.949, Rel. Min. Sepúlveda Pertence) e até ao depoente em CPI (STF, DJU 16.02.01, HC 79.812, Rel. Min. Celso de Mello) . Sobre o tema, v. Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, 1969, p. 270 e ss.; Friedrich Müller, Métodos de trabalho do direito constitucional, Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Edição especial comemorativa dos 50 anos da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, 1999, p. 45 e ss.; Riccardo Guastini, Distinguendo. Studi di Teoria e Metateoria del Diritto, 1996, p. 82/3; e Humberto Ávila, Teoria dos princípios, 2003, p. 13.
23STF, ADIn nº 1946/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 16.05.03: “Reiteradas as considerações feitas nos votos, então proferidos, e nessa manifestação do Ministério Público Federal, a Ação Direta de Inconstitucionalidade é julgada procedente, em parte, para se dar, ao art. 14 da Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.1998, interpretação conforme à Constituição, excluindo-se sua aplicação ao salário da licença gestante, a que se refere o art. 7º, inciso XVIII, da Constituição Federal”.
24 Com efeito, não se pretende criar uma nova exceção a ser acrescida ao elenco do art. 128 (aborto em caso de estupro ou de risco de vida da gestante), mas simplesmente que se reconheça que os enunciados dos arts. 124 e 126 (que criminalizam a gestante e o terceiro na hipótese de aborto consentido) não se aplicam à antecipação de parto do feto anencefálico.
25 André Ramos Tavares e Walter Claudius Rothenburg (org.), Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da Lei n° 9.882/99, 2001; Gilmar Ferreira Mendes: “Argüição de descumprimento de preceito fundamental” e “Argüição de descumprimento de preceito fundamental: demonstração de inexistência de outro meio eficaz”. In: www.jusnavigandi.com.br; Carlos Mário da Silva Velloso, A argüição de descumprimento de preceito fundamental, Fórum Administrativo, 24:1849, 2003; Luís Roberto Barroso, O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, 2004.
26 CF/88, art. 102, § 1º: “A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.”
27 Lei nº 9.882/99, art. 1º: ” A argüição prevista no § 1° do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.”
28 Lei nº 9.882/99, art. 11: “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”
29 Lei nº 9.882/99, art. 4º, § 1º: “Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.”
30 STF, DJU 21.11.97, Rel. Min. Paulo Brossard. É bem de ver que esse entendimento não foi concebido tendo em conta a técnica da interpretação conforme a Constituição, como se observará mais adiante.
31 Foi o que ocorreu recentemente no HC 84.025-6/RJ, de que era relator o Ministro Joaquim Barbosa. Discutia-se no caso, precisamente, pedido de antecipação do parto de feto anencefálico. Seria a primeira vez que o STF teria oportunidade de apreciar a questão. Lamentavelmente, porém, antes que o julgamento pudesse acontecer, a gravidez chegou a termo e o feto anencefálico morreu sete minutos após o parto.
32 V. nota 30, supra.
33 Assinale-se que o aventado temor de fraude no diagnóstico de anencefalia não se justifica. Tal possibilidade, a rigor, já estaria presente – e mais intensamente – na hipótese de interrupção da gravidez por risco de vida para a gestante (CP, art. 128, I). O dispositivo está em vigor há mais de sessenta anos e não há notícia relevante acerca de abusos.
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