"Procedimentos precipitados"
Volkswagen é condenada a indenizar ex-funcionário acusado de participação em uma tentativa de furto de peças automotivas
A juíza Kyong Mi Lee, da 11ª Turma do TRT/SP, em acórdão, negou provimento da Volkswagen do Brasil e a declarou litigante de má-fé, condenando-a a pagar indenização por perdas e danos a um ex-funcionário acusado de participação em uma tentativa de furto de peças automotivas. Segundo a juíza, "Os procedimentos precipitados, imprudentes, negligentes e arbitrários da ré restaram patentes, extrapolando, e muito, o seu direito potestativo de empregador."
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Leia abaixo na íntegra o acórdão.
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RECURSO ORDINÁRIO - 11ª TURMA
Processo TRT/SP nº 01144.2005.463.02.00-0
ORIGEM: 3ª Vara do Trabalho de São Bernardo do Campo
RECORRENTES: VOLKSWAGEN DO BRASIL IND. DE VEÍCULOS AUTOMOTORES LTDA
EDUARDO MATSUMURA
Inconformados com a sentença de fl. 289/95 (complementada pela decisão de embargos declaratórios às fl. 306/7), cujo relatório adoto, que julgou parcialmente procedente o pedido, recorrem ordinariamente: a ré (fl. 309/38), no tocante à prova emprestada (decisão proferida em Juízo Criminal), justa causa, caráter indenitário do período de afastamento e danos morais; e o autor (fl. 371/3), quanto à natureza jurídica das verbas da condenação.
Depósito recursal e custas às fl. 339/43.
Contra-razões do autor às fl. 350/70.
V O T O
Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço de ambos os apelos.
RECURSO DA RÉ
1. Refuta a recorrente a prova emprestada trazida pelo autor, consistente em cópias de peças da ação criminal, em que foi tratado o mesmo fato ensejador da justa causa repelida na sentença recorrida.
Acusa o recorrido de, “maliciosamente”, não ter trasladado a sentença criminal. Diz que, nas alegações finais do Ministério Público, foi pedida a absolvição do réu (ora recorrido) com base no inciso VI do art. 386 do Código de Processo Penal (por insuficiência de provas), enquanto que acusado pretendia fosse enquadrada a sua situação no inciso IV do mesmo dispositivo.
Em suas razões recursais (fl. 312, 2º parágrafo), a ré afirma:
“Obviamente o Recorrido não juntou cópia da sentença porque não deve ter sido prolatada nos moldes que pretendia (se não foi condenado, ao menos não foi absolvido com declaração de inocência, mas por insuficiência de provas). Se a sentença criminal tivesse sido prolatada com base no inciso IV do art. 385 do Código de Processo Penal certamente estaria também na inicial!”
Argumenta, ainda, que a absolvição penal por insuficiência de provas não faz coisa julgada no cível, razão pela qual não se poderia vincular o resultado da presente ação ao da ação criminal.
Por fim, alega que não se admite prova emprestada contra quem não tenha sido parte na ação onde foi produzida, sob pena de violação ao princípio do contraditório.
Nenhuma razão assiste à recorrente.
No processo trabalhista, a prova emprestada oriunda do processo criminal é perfeitamente válida, desde que em consonância com o conjunto probatório produzido nos próprios autos e aqui submetida a contraditório, como de fato ocorreu.
No que se refere à falta de participação da ora recorrente no feito criminal, é evidente que não poderia compor o pólo ativo daquela ação, porquanto promovida exclusivamente pelo Ministério Público.
Contudo, como bem salientado pelo Juízo de origem, nada impedia que a ré atuasse como assistente litisconsorcial, como terceira interessada, faculdade esta que não foi exercida pela recorrente.
No mais, as acusações da ré contra o autor, de sonegar parte da prova emprestada que não lhe seria favorável, não procedem.
O reclamante juntou a cópia da sentença criminal às fl. 201/5, de cujo procedimento a ré foi regularmente intimada a fl. 212.
Em seguida, foi novamente intimada sobre o pedido de antecipação de tutela, fundado justamente na decisão do Juízo Criminal (fl. 215/23), e a ré manifestou-se a esse respeito às fl. 224/6, no sentido de que o dispositivo daquela sentença não se coadunava com a respectiva fundamentação e, mesmo tendo sido a ação penal julgada improcedente com base no art. 386, IV, do CPC, insistiu que o resultado se dera por insuficiência de provas.
Dispõe o art. 386 do Código de Processo Penal (com destaques meus):
Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:
I - estar provada a inexistência do fato;
II - não haver prova da existência do fato;
III - não constituir o fato infração penal;
IV - não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal;
V - existir circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena (arts. 17, 18, 19, 22 e 24, § 1o, do Código Penal);
VI - não existir prova suficiente para a condenação.
A fl. 227, a ré voltou a fazer referência à sentença criminal, insistindo na sua tese de que o dispositivo estava equivocado em face da fundamentação.
Age de má-fé a recorrente, portanto, ao argüir deficiência de traslado das peças do processo criminal quando da propositura da presente ação, no que se refere à sentença ali proferida, porquanto já era de seu conhecimento que esta fora publicada somente em 10.08.2005 (fl. 205), enquanto que a ação trabalhista foi distribuída em 25.07.2005.
Configura também conduta de má-fé da recorrente apresentar razões recursais no sentido de que a sentença criminal teria sido prolatada com base no inciso VI, e não IV do art. 386 do CPP, como de fato ocorreu.
A recorrente “faz de conta” que tal prova não foi produzida nestes autos e ignora que ela própria já se manifestara a seu respeito em duas oportunidades, de forma expressa, vindo a mencioná-la, aliás, no mérito das suas razões de recurso.
O direito de defesa não é ilimitado. No caso, a ré extrapolou tal prerrogativa, ao tentar induzir o Juízo a erro, argüindo fatos inverídicos e desvirtuando a realidade.
2. O reclamante foi dispensado por justa causa, sob a acusação de ter participado de uma tentativa de furto de peças automotivas.
Não houve flagrante em relação ao autor, mas tão-somente do motorista de caminhão, Moacir dos Santos Lopes, em cujo veículo estavam sendo carregadas as peças furtadas.
O reclamante foi reconhecido por Manuel Pereira de Carvalho Filho (depoimento como 1ª testemunha da ré, às fl. 256/7), no dia seguinte ao dos fatos, por uma foto trazida por um dos seguranças da ré, e novamente através de uma janela na sala de segurança. Manuel disse ter presenciado o furto, tendo visto o reclamante a uma distância de 10 metros, na Ala 14 da fábrica da reclamada, à noite, com iluminação artificial.
O delito foi objeto de ação criminal e, na sentença ali prolatada, o reclamante foi absolvido na forma do art. 386, IV, do CPP, ou seja, por não haver prova de ter o réu concorrido para a infração penal, e não por insuficiência de provas.
A MMª Juíza Criminal analisou as provas orais, no sentido de que o reclamante não tinha acesso à linha de montagem do Polo (modelo do veículo do qual foram furtadas as peças) e não poderia ter participado do ato ilícito por impossibilidade física, já que se encontrava no refeitório, inclusive como foi constatado por uma das testemunhas após verificar os registros eletrônicos de ponto. Nenhuma relação entre o reclamante e o motorista Moacir foi apurada. E a única testemunha que teria reconhecido o réu, o já citado Manuel Pereira de Carvalho Filho, afirmou que o reclamante seria “semelhante” à pessoa que viu no local dos fatos.
A decisão no Juízo Criminal, portanto, não foi proferida foi mera insuficiência de provas, mas sim por convicção decorrente do conjunto probatório ali produzido.
E, na instrução oral realizada nos presentes autos, não foi diferente.
Como salientado pelo Juízo a quo, a ré prestou depoimento pessoal totalmente evasivo (fl. 255/6) e, à maioria das questões que lhe foram postas, respondeu que não sabia.
Foi observado no julgado, ainda, que a testemunha da ré, Manuel Pereira de Carvalho Filho, única pessoa a identificar o reclamante como sendo um dos autores do delito, afirmou ter visto – na ocasião – o rosto da pessoa por apenas dez segundos, à noite, sob iluminação artificial, a uma distância de 10 metros, e de perfil, verificando que possuía traços orientais. Disse, ainda, que nunca vira o reclamante antes na empresa, embora este trabalhasse no local há mais de oito anos, e a testemunha há dezoito anos(!), fato esse inusitado, ainda que considerado o porte grandioso da ré. Posteriormente, reconheceu o reclamante através de uma foto (em que este foi retratado de frente).
Irrepreensível, pois, a conclusão do Juízo de origem no sentido de ser “patente a dificuldade enfrentada pela testemunha Manoel em observar com exatidão os detalhes envolvendo a prática do furto”.
Em declaração prestada em auto de prisão em flagrante, a mesma testemunha Manoel descreve o fato da seguinte maneira (fl. 36):
“...O INDIVÍDUO QUE ESTAVA EM PÉ CORREU E VISUALIZOU O MOTORISTA DO CAMINHÃO GUARDANDO NO INTERIOR DO VEÍCULO AS PEÇAS ENTREGUES PELO OUTRO QUE SAIU CORRENDO...”
No inquérito policial, relatou (fl. 48/9):
“...ao perceber que o depoente havia presenciado tal fato, o indivíduo de traços orientais saiu correndo, tomando rumo ignorado...”
A testemunha Adauto Alves da Silva, em depoimento prestado na ação criminal (fl. 84), disse:
“...o depoente conversou pessoalmente com um funcionário de nome Manoel, que trabalhava no setor de expedição de peças de alcunha ‘Sapão’; ele confirmou que tinha dito na polícia que o ‘Japa’, apelido do réu, tinha mesmo subtraído as coisas, mas que na verdade estava em dúvida a respeito dessa autoria e, portanto, arrependido; mas Manoel disse que não poderia se retratar daquela acusação.”
O conjunto probatório evidencia, portanto, a fragilidade da única declaração na qual se baseou a ré para dispensar o reclamante por justa causa.
No mais, a prova oral revelou a impossibilidade física de estar o reclamante no local dos fatos no horário descrito pela testemunha Manuel, porquanto foi confirmado por vários colegas de trabalho que, naquele momento, encontrava-se o autor no refeitório, ali permanecendo por bastante tempo.
A justa causa foi, pois, corretamente afastada. Mantenho.
3. Argúi a recorrente que a norma coletiva não contempla nenhuma estabilidade no emprego, insurgindo-se contra sua condenação na indenização respectiva. Alega que “referida cláusula estabelece que os empregados transferidos para outros centros de custo trabalhariam até 20/11/2006, salvo se houvesse rescisão contratual”.
Age de má-fé, novamente, a recorrente.
Dispõe a cláusula 11ª do Acordo Coletivo de Trabalho às fl. 110:
“11.1 Fica estabelecido que, durante a vigência deste Acordo, somente serão efetuados desligamentos de empregados nas seguintes condições:
a) Desligamento programado de empregados elegíveis à aposentadoria ou aposentados, e nas condições e garantias estabelecidas neste acordo;
b) Empregados inscritos no Programa de Demissões Voluntárias (PDV);
c) Empregados dispensados disciplinarmente;
d) Empregados considerados de baixo desempenho.”
É evidente, pois, que a referida norma contempla estabilidade no emprego para todos os empregados da ré, durante a sua vigência, excetuados os casos específicos declinados em suas alíneas.
Tergiversa a recorrente, portanto, tentando outra vez induzir o Juízo a erro.
Quanto à natureza dos salários do período de afastamento, embora indenizados, decorreram da resistência da ré em reintegrar o reclamante no emprego, conforme já havia sido determinado a fl. 233, e concretizado a fl. 245.
Contra tal ato do Juízo, a ré impetrou mandado de segurança (fl. 246/54), obtendo a suspensão liminar da tutela antecipada concedida, que foi posteriormente confirmada (fl. 301/2).
Houve, portanto, suspensão da ordem de reintegração, por iniciativa do empregador.
Abriu mão a ré da prestação de serviços do reclamante, correndo o risco de pagar todos os direitos daí decorrentes, em caso de ser vencida na ação, como acabou ocorrendo.
Destarte, correto o julgado quanto ao caráter salarial da remuneração devida no período estabilitário, com todos os demais títulos como se na ativa houvesse permanecido o reclamante, inclusive com o cômputo do período no tempo de serviço para fins previdenciários.
Mantenho.
4. No tocante aos danos morais, a sentença recorrida não merece, tampouco, nenhum reparo.
Os procedimentos precipitados, imprudentes, negligentes e arbitrários da ré restaram patentes, extrapolando, e muito, o seu direito potestativo de empregador.
Como foi destacado no julgado, o reclamante foi interrogado na sala de segurança sem a presença de seu encarregado, membro da comissão de fábrica ou de seu advogado.
Em seguida, foi “reconhecido” pela testemunha Manuel e, ato contínuo, foram chamados os agentes policiais, sendo o autor imediatamente preso, deixando a sala de segurança algemado.
É de se ressaltar, mais uma vez, que não houve flagrante em relação ao reclamante, demonstrando a ré uma rapidez e uma presteza inigualáveis para deter seu empregado com poder de polícia, tudo fundamentado apenas nas frágeis declarações da testemunha Manuel.
Não ouviu outros empregados que conferiam álibi ao reclamante, tampouco verificou o controle eletrônico de ponto do reclamante. Nem se apurou se, no mesmo turno e no mesmo setor, havia outros empregados de traços orientais, como posteriormente ficou comprovado, através da testemunha Márcio José Vasconcelos (fl. 259/60), que afirmou haver à época pelo menos outros 5 trabalhadores com tais características.
Isso somente foi feito após concretizada a prisão do empregado.
Uma vez detido, o reclamante passou a sofrer todos os tipos de vicissitudes, seja no seu próprio comportamento e temperamento, como na vida familiar, social e profissional, conforme atestado pela prova oral produzida nestes autos.
O reclamante era empregado de uma das maiores montadoras de veículos, internacionalmente conhecida, há mais de oito anos, em carreira promissora, contando à época da dispensa com 29 anos.
Foi injustamente acusado de furto e sumariamente preso por conduta culposa do empregador, como acima constatado, configurando-se o ato ilícito e a culpa, bem como o nexo de causalidade.
Tais elementos autorizam a reparação civil, na forma decretada a quo.
Entendo que bem ponderou o Juízo de origem, ao fixar a indenização por danos morais de R$525.000,00 (correspondente a 1.500 salários mínimos) e a indenização por danos patrimoniais de R$5.000,00 (despesas com advogados na ação criminal, dentre outras), considerando-se a gravidade do ato ilícito patronal e as repercussões daí decorrentes, a situação econômica das partes, bem como o caráter pedagógico e punitivo que deve conter a reparação.
Causa espécie a conduta da ré em insistir, após a prolação da sentença criminal, na acusação do reclamante, como se manifestou em suas razões recursais (fl. 320, 4º e 5º parágrafos):
“Resumidamente falando, portanto, é líquido e certo que a Recorrente, apesar do resultado da ação criminal, provou a CULPA do Recorrido (ou melhor, sua participação) no ato ilícito que configurou, à ocasião do distrato, falta suficientemente grave para o despedimento motivado... E, de fato, o Recorrido cometeu, sim, a falta grave que motivou o seu despedimento. Se o Juízo criminal não considerou provada a sua participação no mesmo fato sob o enfoque da legislação criminal, tanto melhor para o Recorrido. Mas a Recorrente agiu conforme os elementos eu se apresentaram na ocasião, que indicavam claramente que o Recorrido participou da tentativa de furto em detrimento da ex-empregadora.”
Como já foi acima advertido, o direito de defesa não é ilimitado, sendo certo que tal conduta da ré não encontra amparo na lei, conforme dispõe o art. 138, § 3º, III, do Código Penal (meus destaques):
Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:
Pena - detenção, de seis (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
§ 1º - Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga.
§ 2º - É punível a calúnia contra os mortos.
§ 3º - Admite-se a prova da verdade, salvo:
I - se, constituindo o fato imputado crime de ação privada, o ofendido não foi condenado por sentença irrecorrível;
II - se o fato é imputado a qualquer das pessoas indicadas no nº I do art. 141;
III - se do crime imputado, embora de ação pública, o ofendido foi absolvido por sentença irrecorrível.
Mantenho.
5. Configuradas, nos itens supra, as hipóteses previstas no art. 17 do CPC, declaro a ré litigante de má-fé, para condená-la a pagar ao autor, por perdas e danos, com base nos art. 16 e art. 18 e seu § 2º, do CPC, o valor ora arbitrado de R$120.000,00 (20% da condenação), mais a multa de 1% sobre o valor da causa reversível aos cofres públicos da União Federal.
RECURSO DO AUTOR
6. Em decisão de embargos declaratórios às fl. 306/7, o Juízo de origem declarou como indenitários somente o aviso prévio indenizado, férias integrais e proporcionais + 1/3, e FGTS + 40%, e as demais parcelas salariais.
Reformo o julgado, tão-somente para considerar indenizatórias, além dos títulos já acima nominados, as indenizações por danos morais e patrimoniais, inclusive referente ao convênio médico.
Quanto ao período estabilitário, reporto-me ao decidido no item 3 supra (parte final).
ISTO POSTO, conheço dos recursos interpostos. NEGO PROVIMENTO ao da ré, e DOU PARCIAL PROVIMENTO ao do autor, para declarar de natureza indenizatória, além dos títulos nominados na decisão de embargos declaratórios de fl. 306/7, as indenizações por danos morais e patrimoniais, inclusive em relação ao convênio médico, sobre as quais não haverá incidência previdenciária ou fiscal.
Declaro a ré litigante de má-fé, para condená-la a pagar ao autor a indenização, por perdas e danos, de R$120.000,00, bem como a multa de R$6.000,00 em favor dos Cofres Públicos da União Federal, acrescidas de atualização monetária e juros de mora, contados a partir da data da prolação da sentença recorrida.
Kyong Mi Lee
Juíza Relatora
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