Migalhas Quentes

Quarenta anos da ocupação das Arcadas

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23/6/2008


Memórias

Quarenta anos da ocupação das Arcadas

Há oito lustros, em SP, um grupo de estudantes do Largo de S. Francisco decidiu ocupar o chão de pedra das Arcadas. Vejamos como descreve aquele dia Belisário dos Santos Júnior e José Ignácio Botelho de Mesquita, em texto extraído da obra "Arcadas no Tempo da Ditadura", organizada por Henrique d'Aragona Buzzoni.

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Belisário dos Santos Júnior

Revisitando a tomada da Faculdade

Belisário dos Santos Júnior1
Turma de 1970

"1º Juiz: Por conselho de quem tomaste vestes de homem?

Joana: Passai adiante!

2º Juiz: (veemente) Por conselho de quem tomaste vestes de homem?

Joana: Passai adiante!

3º Juiz: Por que te recusas a dizer-nos a verdade?

Joana: Tudo o que vos digo é verdade!

1º Juiz: Abjura!

2º Juiz: Abjura!

3º Juiz: Abjura!

Joana: Deixai-me em paz!"

Lembrar de 23 de junho de 1968 não é difícil. Completei 20 anos nesse dia. Estava no 3º ano da Faculdade. Bem na linha do Equador, como se diz hoje em dia. Pertencia à Nova Dimensão, união de partidos de esquerda, que iria fundir-se com os demais partidos acadêmicos de oposição à ditadura, para fundar o Movimento 23 de Junho.

À noite daquele 23 de junho, preparativos diversos em vários locais da cidade. Num desses cantos, no bairro da Aclimação, os Segréis das Arcadas, grupo de jograis da Faculdade, interpretavam textos de Joana D’Arc. Era uma das senhas da ocupação.

O texto lembrava a França da Inquisição, mas também a França dos ideais de liberdade, igualdade, fraternidade, do movimento estudantil nas ruas, da revolta contra tudo que se impunha, sem discussão, como certo, estabelecido, definitivo.

"1º Juiz: Abjura teus erros, Joana, e ficarás em paz.

2º Juiz: Terás a vida salva.

3º Juiz: Serás livre.

1º Juiz: O que te pedimos é tão fácil. Algumas palavras de uma fórmula ... Uma assinatura, uma cruz no papel e o processo estará encerrado.

Joana: Dos pecados que pude cometer, eu me arrependo. Mas das revelações que tive e do que fiz para servir meu rei e expulsar o inimigo da França, não me arrependo."

Pouco antes da meia-noite, começaram a chegar à Faculdade os primeiros estudantes já devidamente desengravatados. A ocupação se deu do XI para a Faculdade, sem dano, apenas com escalada e destreza ... Durante o mês seguinte, até a desocupação policial, os estudantes organizaram como seu aquele espaço de reflexão. Filósofos, juristas, professores ilustres, alunos sóbrios, e outros não tão sóbrios, tiveram tempo e modo de dizer como queriam a nova Universidade. Grande dano foi causado à estrutura tradicional da Universidade. Nenhum dano ao patrimônio material e histórico da Faculdade que uma boa limpeza não pudesse apagar.

O processo administrativo que se seguiu lembrou muito os tempos liberais da inquisição. Todas as testemunhas de defesa passaram a réus pelo fato do testemunho.

"Joana (aos Juízes): No que concerne à fé reporto-me à Igreja. Mas quanto ao que fiz jamais renegarei.

1º Juiz: Meus irmãos, compreendeis agora quem estais julgando. Pensei haver um demônio atrás dessa mulher. Desejaria fosse verdade. O demônio é nosso aliado. Afinal é um anjo antigo... Mas, não. O homem tranqüilo e transparente me causa mais medo. Olhai-a acorrentada, torturada ...Tomba ela suplicando a Deus que a retome? Não, enfrenta a humilhação, a tortura, levantando os olhos para a imagem invencível de si mesma."

Mas, se não há bem que sempre dure, não há mal que nunca se acabe. Tudo veio com a dose certa de tragédia e de farsa. A iniqüidade era tanta que o processo administrativo foi arquivado. A Faculdade desistiu da ação de indenização que movia contra os alunos. Numa das sessões anteriores da Congregação faltou um voto para a extinção da ação judicial (o de um representante dos alunos que tinha audiência no mesmo horário ...).

Interessante lembrar o respaldo maciço dos alunos à ocupação. No mês de agosto, nas eleições para o Diretório Acadêmico, e no mês de outubro, para o XI de Agosto, o Movimento 23 de Junho teve vitórias consagradoras. Esse movimento governaria a vida acadêmica por quase dez anos ou pouco mais.

Embora a imagem fotográfica da desocupação policial seja a dos companheiros de mão para cima, constrangidos pela polícia da ditadura (na foto famosa: Leonel Itaussú, Pablo Teruel, Oswaldo de Mello e o “Calouro Doido”), da ocupação da faculdade saiu um movimento estudantil forte, unido, integrado às lutas da Universidade, que exercia papel protagonista na superação do regime militar e na volta do estado de direito. Estava superada a ideologia mecanicista do "trabalhador, trabalha, estudante, estuda, professor ensina". A realidade era mais complexa. Os estudantes denunciaram isso. O preço foi alto. Foi pago em liberdade, em vidas, em sonhos.

Hoje, dezenas de anos, muitos cabelos brancos e algumas lutas depois, percebo a estranha ironia da comparação da ficção com a realidade.

"3º Juiz: Por mais poderosos que nos tornemos, haverá sempre um homem a caçar em alguma parte que será pego, que será morto e humilhado, porque dirá não sem baixar os olhos. Pois bem, é preciso que ensinemos de uma forma ou de outra ao homem dizer sim ..."

Revisitando os estudantes da Faculdade daquela e de outras épocas, ainda quero perceber e ainda quero sentir a mesma indignação contra a injustiça e a mesma capacidade de dizer não. Como Joana D’Arc a seus Juízes, na montagem genial de Álvaro Pires, como Regis Debray ao General boliviano, no teatro da realidade, ou como Pedro ao Capitão, no teatro de Mário Benedetti.

Talvez o que nos mova para a frente seja essa companhia, essa ira sagrada que nos incorpora, sempre que entramos nas Arcadas, ocupada agora de fato e de direito e para sempre pela democracia.

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1 Ex-secretário da Justiça de São Paulo

José Ignácio Botelho de Mesquita

23 de junho de 1968 – A tomada da Faculdade

José Ignácio Botelho de Mesquita1
Turma de 1958

Há muitos anos cruzei com CANUTO MENDES DE ALMEIDA na Rua Senador Paulo Egídio, em frente ao número 72, onde tinha meu escritório. Paramos para conversar e, indagado sobre algum fato passado, disse que não lembrava, pois tinha uma péssima memória, ao que CANUTO objetou: “As pessoas pensam que ter boa memória é lembrar de tudo, mas não é nada disto. A memória tem duas propriedades: o ‘esquecedor’ e o ‘lembrador’. Boa memória tem quem se lembra do que tem que lembrar e esquece do que tem que esquecer. Má memória tem quem esquece do que tem de lembrar e lembra do que tem que esquecer”.

Instado a narrar episódios da tomada da Faculdade, deparei com grandes vazios na história do fato, em boa parte preenchidos pelos artigos que já foram escritos, mas mesmo assim ainda em quantidade suficiente para me impedir uma reconstituição mais segura do que aconteceu do lado dos professores. Ao que parece, lembrador e esquecedor fizeram seu trabalho e o resultado é que, daquela ocupação, ficaram presentes na memória, muito mais que os fatos, as emoções, os sentimentos, e toda aquela gama enorme de sensações de que, imagino, ninguém terá esquecido.

Nos dias de hoje, em que ocupação é coisa corriqueira, tida e havida como meio mais banal e inocente do mundo para veicular reivindicações, não é possível imaginar, nem mesmo de longe, o que representou na época a ocupação da Faculdade. Para que se tenha uma pálida idéia, poderia a ocupação ser comparada a um tsunami que explodisse exatamente em cima de um dos símbolos mais venerados da história de São Paulo. Como um tsunami, se acercou devagar, sem que ninguém pudesse suspeitar de sua força subterrânea, e se abateu atordoante sobre os alunos, sobre os professores, sobre o mundo do direito nas suas mais diversas faces e facetas, sobre a comunidade dos estudiosos e dos iletrados, e até sobre o próprio prédio da Faculdade, abrigo onde se abriga o que há de mais jovem no coração dos jovens: o sentido da liberdade.

Tanto assim que, apenas tomando o prédio, convocaram os alunos alguns professores de sua confiança para definir o que fazer com a Faculdade. Os ventos soprados da França inflavam corações e mentes com slogans que deram a volta ao mundo como o “é proibido proibir”, ou “ao poder a imaginação”, e muitos outros, fincados na convicção plenamente arraigada de que os jovens “não precisam saber o que querem, basta que saibam o que não querem”. Os nossos estudantes não sabiam exatamente o que queriam mas sabiam o que não queriam. Não queriam a longa lista de defeitos do ensino jurídico, que ainda hoje é repetida nos sempre reiterados simpósios, congressos, painéis etc. sobre a reforma do ensino jurídico; não queria a ditadura militar que ainda não havia mostrado a sua face pior; não queriam a composição unitária da Congregação da Faculdade, queriam-na “paritária”, e assim por diante.

A Congregação, é óbvio, reagiu autoritariamente, como era de se esperar. Recusou-se a qualquer negociação, foi a juízo e obteve sem qualquer dificuldade o mandado de reintegração de posse, que foi cumprido sem maiores problemas. Depois disto, no entanto, a Congregação nunca mais voltou a ser a mesma, porque o corpo docente ficara dividido. Uma minoria de livres-docentes, de número variável ao sabor dos medos de cada um, e uns poucos catedráticos, uns dois ou três no máximo, viram que a reação da Congregação fora ditada em parte pela violência da tomada da Faculdade, mas em parte muito maior pelo apoio à ditadura militar, aos seus objetivos e aos seus métodos, inclusive à caça às bruxas que começou logo após a retomada do prédio da Faculdade. Experimentei isto na carne. Sou testemunha de que, então, se sobrepôs, aos interesses do ensino, o interesse da preservação dos frutos do movimento militar, do autoritarismo mais embotado e estéril.

O que veio depois foi surpreendente. Os professores favoráveis ao regime foram se aposentando e muitos dos livres-docentes contrários ao regime foram ascendendo titularidade. Isto criou, em mim pelo menos, a esperança de que novos ventos diminuíssem a feição egoisticamente autoritária da Congregação ou, quando menos, arrefecessem o medo da retaliação de que padecia grande parte dos noviços. Isto, porém, não aconteceu e não demora o dia em que, por sua vez, estarão sendo aposentados os últimos dos antes jovens e esperançosos professores, a quem deve a Faculdade ter escapado, nos últimos quarenta anos, a um destino muito pior.

Durante a ocupação, pouco estive na Faculdade. A chamado dos alunos, fui logo na manhã do primeiro dia, por volta de umas 10 ou 11 horas. Percorri o caminho descrito por ARNALDO MALHEIROS no artigo que escreveu para esta coleção. Nessa reunião, se não me falha a memória, o que preocupava os alunos, como disse, era definir o objetivo a ser alcançado, sabendo-se que, mais dia menos dia, teriam que devolver o prédio. A gestão paritária era um objetivo que podia ser declarado, mas sabia-se que era inalcançável. Os alunos, naquela época, eram fortemente politizados, o que contrabalançava, em parte, o seu lado sonhador. Outro objetivo seria dar início a um processo de reforma do ensino jurídico com ampla participação do corpo docente. O que acabou predominando, no entanto, não naquela reunião mas nos dias seguintes e até o fim da ocupação, foi antes de tudo a realização do sonho de ter a Faculdade só para os alunos, dedicando-se eles ao que lhes parecia mais merecedor de consideração e conhecimento jurídico, filosófico, sociológico e econômico. ALBERTO DA ROCHA BARROS, professor livre-docente de Introdução à Ciência do Direito, contribuiu enormemente para isto, dando aulas durante a ocupação, o que lhe valeu represália covarde do CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Não havia opositor do regime militar que não fosse tachado de comunista, nada importando a motivação puramente democrática que o movesse.

Esta lembrança chama outra. A guerra na imprensa entre os professores que cercavam fileiras com a maioria da Congregação e os que se opunham ao tratamento autoritário do problema. Estes eram tratados como defensores de uma horda de vândalos lúbricos empenhados na destruição do patrimônio cultural da Faculdade para satisfação de seus desejos libidinosos. Num tempo de ditadura, as versões mais estapafúrdias ganham foros de verossimilhança. É um desastre, de que só tem conhecimento quem já viveu sob um regime ditatorial. A descrição desse fato, nos dias de hoje, é recebida com muitas restrições. Mas recebida com muitas restrições apenas por quem não passou por tudo o que se viveu naqueles tempos.

Aliás, neste capítulo é preciso fazer algumas distinções. Naqueles tempos, tudo se passou perante todos, mas nem todos viram o que se passou. Muitos dos que viveram naquela época se notabilizam por estar sempre do lado mais fácil nos momentos mais difíceis. São os que ficaram calados quando deveriam falar, os que aceitaram cargos só reservados a quem não combatesse o governo, os que freqüentaram a Escola Superior de Guerra para agradar o regime, os que assumiram postos de comando no partido do governo, os que jamais assumiriam algum risco de perder qualquer coisa por motivos políticos e assim por diante. Naquela época, a ocupação da Faculdade provocou uma revelação de quem era quem na vida política e cultural daquele que hoje são postos sob o mínimo denominador comum de “operadores” do direito, como se o direito fosse um instrumento mecânico. O resultado é que há poderosos interesses em que esta história seja esquecida, morta e sepultada

Ela precisa ser contada e repetida. Quem esquece os erros do passado, lembrem-se, está condenado a repeti-los.

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1 Professor titular da Faculdade de Direito da USP

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A obra "Arcadas no Tempo da Ditadura" (Editora Saraiva, 235 p.) é organizada por Henrique d'Aragona Buzzoni.

"A Faculdade de Direito do Largo de São Francisco sempre se caracterizou pela heterogeneidade dos elementos que freqüentavam seu pátio e suas salas de aula e pela pluralidade de opiniões por eles professadas.

Nessa sua composição sempre se incluíram burgueses, pequenos burgueses, proletários, gente do campo e da cidade. Havia correntes de pensamento político de direita, extrema direita, centro, esquerda e extrema esquerda. Monarquistas e republicanos. Abolicionistas e escravocratas. Alienados e ideológicos. Democratas e autoritários. Sóbrios e "etílicos". Era, e sempre foi, um pequeno retrato do Brasil, com seus defeitos e qualidades.

O organizador deste livro de memórias procurou respeitar essa diversidade, como forma de melhor traduzir o ambiente vivido e o momento retratado.

Por outro lado, considerando que todos os autores são pessoas acostumadas a lidar com a nossa língua, foram respeitados os estilos e a própria gramática por eles utilizada, e, principalmente, as opiniões expressadas." Introdução - Maio de 2006

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