Migalhas Quentes

Íntegra do acórdão proferido pelo TJ/RJ ao apreciar a apelação de Henrique Pizzolato contra a Editora Abril (Revista Veja) e Diogo Mainardi

X

3/8/2007


Mensalão x Imprensa

 

Após os escabrosos fatos que vieram a público dando conta da existência do Mensalão, todos os envolvidos, num movimento coordenado, foram acionando o Judiciário contra os veículos de imprensa que divulgaram as informações à população. Ainda não se sabe o motivo (talvez estratégia de defesa na esfera penal), o fato que, um a um, os envolvidos – tanto do PT, como do governo - foram impetrando ações de indenização por terem visto seus nomes no meio do lodaçal. Cada caso é um caso, e não cabe a este informativo julgar. O fato é que um destes casos foi a julgamento por um tribunal, o TJ/RJ. É, dessa forma, a primeira decisão de tribunal acerca do caso Mensalão.

 

Como foi

O ex-bancário Henrique Pizzolato, diretor de marketing do Banco do Brasil (conhecido por ter permitido que o banco comprasse R$ 70 mil em ingressos de um show da dupla sertaneja Zezé di Camargo e Luciano para arrecadar dinheiro para o PT), ajuizou ação contra a revista Veja e o jornalista Diogo Mainardi. Em acórdão lapidar, o desembargador fluminense Renato Ricardo Barbosa observa a diferença entre o indivíduo que escolheu sponte propria ter vida pública. Para ele, sua vida "deve ter ampla publicidade, quer pelo interesse público, quer porque assim decidiu o próprio indivíduo titular do direito ao resguardo". No caso, a revista Veja e o jornalista Mainardi foram representados pelo advogados do escritório Lourival J. Santos – Advogados, Alexandre Fidalgo e Thaís Fortes Matos.

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Íntegra do acórdão:

APELAÇÃO CÍVEL Nº 200700121494

Apelante: EDITORA ABRIL S/A REVISTA VEJA E HENRIQUE PIZOLATO

Apelado: OS MESMOS

RELATOR: Jds Desembargador RENATO RICARDO BARBOSA

EMENTA

LEI DE IMPRENSA.PUBLICAÇÃO EM REVISTA DE NOTICIA RELATIVA A DENUNCIA DA PGR. INDENIZAÇÃO. DESCABIMENTO. PUBLICAÇÃO DE CUNHO POLITICO. AUSENCIA DE ANIMUS INJURIANDI OU DIFAMANDI

A vida pública do indivíduo é aquela, que deve ter ampla publicidade, quer pelo interesse público, quer porque assim decidiu o próprio indivíduo titular do direito ao resguardo. Honorários sucumbenciais fixados em observância ao parágrafo §4º do artigo 20 do CPC, mantidos. Desprovidos ambos os recursos. Mantida na integra a sentença recorrida.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº APELAÇÃO CÍVEL Nº 200700121494 em que é Apelante EDITORA ABRIL S/A, REVISTA VEJA, DIOGO MAINARDI e HENRIQUE PISSOLATO e apelados os mesmos.

ACORDAM os Desembargadores que integram a Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça, por unanimidade, em negar provimento ao Recursos, nos termos do voto do Relator.

Rio de Janeiro, de 2007.

PRESIDENTE

Jds. Desembargador RENATO RICARDO BARBOSA

Relator

VOTO

Integra-se ao presente o relatório constante dos autos, fls. 466/469.

Trata-se de Ação entre as partes epigrafadas, objetivando o Autor Indenização por danos morais que alega ter suportado em razão de publicações jornalísticas escritas pelo segundo réu e publicadas pelo primeiro.

O pedido foi julgado improcedente conforme sentença de fls. 466/469.

Inconformado, com o decisum, apelaram Autor e Réus.

Através de razões de fls. 471/481, apela a EDITORA ABRIL S/A e outros, pretendendo a reforma do julgado no que tange a verba sucumbencial de honorários advocatícios para que seja alterados para 20% sobre o valor atribuído a causa, devidamente corrigido.

O Autor, Henrique Pizzolato, recorre às fls.483/497, manifestando seu inconformismo com a sentença e pretendendo a reforma alegando, error in iudicando; conduta ilícita das Rés que publicaram matérias difamatórias e distorcidas da realidade, bem como fatos diversos dos constantes da denuncias do Procurador Geral da Republica.

Contra-razões, às fls. 502/520 e 521/529.

Conheço e admito o recurso, tendo em vista a presença dos pressupostos de admissibilidade.

Pretende o apelante HENRIQUE PIZZOLATO, indenização pelos danos morais que alega ter suportado em razão das matérias levadas a público pelos Réus.

Diz a Constituição no artigo 5º: “X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”

Da leitura do preceito constitucional exsurge a diferença conceitual entre vida íntima (ou intimidade) e vida privada.

Vida íntima (ou intimidade) assenta na idéia de “reclusão espacial” do indivíduo e das pessoas a ele intimamente relacionadas, notadamente o seu grupo familiar, conglobando fatos estabelecidos tanto do ponto de vista absoluto, i. é., do homem individualmente considerado, quanto do relativo, i. é, dos fatos estabelecidos entre ele e outras pessoas a si intimamente ligadas. Baseia-se, principalmente no aspecto negativo do comportamento humano, no sentido de que, por sua própria natureza, o homem tem falhas, condutas moralmente incorretas, mas que, por não afetarem a vida social, devem permanecer em segredo.

Vida privada tem sentido mais amplo. Daí a lição de Alexandre Moraes, no sentido de que a intimidade se encontra no âmbito de incidência da vida privada (Direito Constitucional, Ed. Atlas, 10a Edição, 2001, pág. 77). Constitui-se de fatos em que predomina o caráter privado, apesar de sua publicidade. Como sói acontecer com os da vida íntima, inexiste relativamente a eles interesse social na respectiva divulgação. “A esfera privada é também aquela parte da vida própria que em si é pública, acessível a todos”, ensina Hans Heinrich Maass, proclamando que a expressão vida privada extrapolava a “intimidade”, na acepção que se dava à regra “La vie privée doit être murée” (apud Aparecida Amarante, Responsabilidade Civil por Dano à Honra, Ed. Del Rey, 5a ed., 2001, pág. 108).

Tanto a intimidade do indivíduo, quanto a sua vida privada em sentido lato, só interessa a ele e às pessoas de seu círculo afetivo, dada a inexistência de lídimo interesse social em conhecê-las. A respectiva divulgação, sem qualquer proveito à sociedade, serviria unicamente à maledicência, com graves e deletérias conseqüências à vida comunitária, cuja estabilidade, como um todo, ver-se-ia a todo instante ameaçada, não fosse à proteção do Direito. A revelação de fatos que tais trariam somente desarmonia e inquietação, em franca potencialidade de ensejar o “desastre social”, decorrente do denominado “efeito borboleta” da Teoria do Caos.

Na conformidade desse ideário, a Conferência Nórdica sobre o Direito à Intimidade, de maio de 1967, assim conceituou o direito subjetivo à intimidade:

“é o direito do homem de viver em forma independente a sua vida, com um mínimo de ingerência alheia”.

Reconhece (a Conferência de Estocolmo), no entanto, como afirma Othon Sidou que “esse tal como, qualquer outro direito, não pode ser ilimitado, uma vez que a vida é uma coexistência”. (RT n.º 421, pág09).

Verdadeiro pilar do salutar convívio entre os seres sociais, eis aí a ratio essendi da norma em questão ter sido erigida em sede constitucional. A Constituição da República protege, pois, a vida privada lato sensu do indivíduo.

Vida pública do indivíduo é aquela, a contrario sensu, que deve ter ampla publicidade, quer pelo interesse público, quer porque assim decidiu o próprio indivíduo titular do direito ao resguardo. A publicidade irrestrita encontra óbice, entretanto, no abuso de direito, que enseja sanções civis e penais. “A esfera pública é caracterizada pela liberdade de notícia e informação”. (Aparecida Amarante, op. cit., pág. 108).

Como se disse alhures, nem mesmo o direito à intimidade é absoluto, conforme o reconhecido pela Conferência de Estocolmo, segundo afirma Othon Sidou (op. cit). Assim, v.g., se alguém, na esfera de sua intimidade perpetra delito, o fato ingressa no campo público em razão do preponderante interesse social. Desenvolvendo-se originariamente em terreno íntimo, o processo factual não fica imune ao público conhecimento, passando a constituir vida pública do indivíduo, respeitadas as lindes estabelecidas pelo ordenamento legislativo.

Em apertada e grosseira síntese, sem pretensões doutrinárias, trazidos aqui a lume apenas para nortear a análise críticas das questões postas sub-examine, esses são os principais contornos traçados pela teoria alemã das esferas, já que, nesses princípios, cuido assentarem a harmonização proporcional ente as normas constitucionais correlatas que regulam a matéria (artigo 220 e seguintes do Capítulo V do Título VIII da CRFB c/c 5º, IV, V, IX, X, XIII, XIV e LX da CRFB); e, sob a ótica sistemática, o regramento da legislação infraconstitucional (v.g., a exceptio veritatis e a inadmissibilidade dessa exceção no crime de difamação, salvo se o ofendido é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício das suas funções, porque, nessa exceção legal, aí o fato é de interesse público e, logo, é fato da vida pública).

Os direitos subjetivos à imagem e à honra estão, pois, intima, sistemática e indissociavelmente, jungidos à proteção da vida privada individual.

Com efeito, ensina Álvaro Antonio do Cabo:

A limitação ao direito à própria imagem decorrente da inserção do fotografado em acontecimento de caráter público, tem fundamento na tese que junge o direito à imagem ao direito à intimidade. Desta forma, em última análise, o que se entende é que aquele que se encontra em acontecimento de caráter público, renuncia a essa intimidade.” (in Direito à Própria Imagem, Aspectos Fundamentais, Ed. Saraiva, 1989).

Mas, renúncia à intimidade (rectius: renúncia à vida privada) existe para o caso daquele indivíduo comum, presente ao evento público, anonimamente na assistência. Assim também a celebridade, que não sendo “dona” do evento, ali está na mesma condição. A imagem de alguém, tomada em meio à massa, jamais poderá ser considerada violação da vida privada, senão legítimo exercício de perpetuação da memória do acontecimento, globalmente considerado. Mas, se perceptível a intenção manifesta de fazer de alguém o tema principal da imagem, prevalecerá à restrição à tomada não consentida da imagem.

Evidenciam-se as nuances, objetivando a dedução de que o campo de incidência do direito à imagem é delimitado exclusivamente pela proteção constitucional da vida privada. Às mais das vezes, portanto, é aparente a antinomia entre as regras da liberdade de informação e de proteção da imagem. Sob o critério da proporcionalidade, cede o direito à imagem ao direito de informar, quando este se reveste de interesse público, como acima se procurou demonstrar.

E quando se fala em liberdade de informação, a imprensa tem-se revelado o meio de comunicação social mais bem equipado e eficaz na divulgação da notícia. Ao jornalismo sério incumbe, na maior escala, a atividade de informação. No repórter, no sentido genérico do termo, mais que em qualquer outro, recai o compromisso de bem informar, correspondendo ao dever contraposto de liberdade individual de acesso à informação. De priscas eras, nascida antes mesmo da proteção à vida privada, a notícia encontra somente nesta última o seu limite; e assim mesmo, quando o fato não se revista de relevante interesse público.

Fato de interesse público, segundo Mario Are, é todo aquele que reflete apreciável interesse da coletividade, como o comportamento de personalidade política, a procura dos autores do crime, a verificação dos acontecimentos particularmente significativos... (in Interesse alla qualificazione e tutela della personalità, apud Aparecida Amarante, op. cit., pág. 119).

Nem mesmo o intuito do lucro descaracteriza a liberdade de informação, como acentua Álvaro Antonio da Costa, se o propósito informativo o sobreleva (op. cit., pág. 83):

Esta ressalva é importante, uma vez que nos dias atuais, com a chamada indústria cultural de nosso sistema econômico, todas as manifestações culturais perseguem, em maior ou menor medida, propósitos culturais e fins de lucro. O exposto é válido também para a limitação exposta anteriormente, uma vez que hoje em dia quase todos os meios de comunicação de massa visam o lucro. Desta forma, e como já visto anteriormente, informação é mercadoria e portanto a difusão da imagem de alguma pessoa famosa em jornal, revista ou televisão é feita visando não só informar; mas também almejando o lucro por parte do meio de comunicação.

Nos presentes autos a questão deve ser resolvida em desfavor do autor, eis que não há na conduta dos Réus animus de injuriar ou difamar, mas tão somente de divulgar fato de interesse público.

As publicações referem-se a denuncia do Procurador Geral da Republica, para apurar a responsabilidade do Apelante na administração dos recursos públicos.

De fato, conforme bem observa a sentença recorrida, de lavra da i. magistrada Luciana de Oliveira Leal, cuida-se de publicação de conteúdo político, e “constitui fato público e notório que o autor foi, de fato, investigado pelas nossas autoridades, sendo relevante e necessária a divulgação destes fatos pela mídia, de modo a permitir a população conhecimento dos acontecimentos que envolvem pessoas que desempenham funções públicas ou de interesse público, assim com a gestão dada aos recursos públicos

Trata-se de matéria de interesse público.

Destarte, se a informação se destina ao fim perseguido pelo interesse público, inexiste dano a ser reparado; antes se trata do livre e constitucional exercício da plena liberdade de informação (art. 220, § 1º da CRFB).

É nesse sentido, sistemáticamente interpretado, que o artigo 49 § 1º da Lei 5.250/67 (Lei de Imprensa), prevê a exceptio veritatis, reputando-a inadmissível somente se a divulgação do fato imputado concerne à vida privada do indivíduo e assim mesmo se não foi motivada em razão de interesse público, excluindo a responsabilidade civil.

Assim é que o § 2º do artigo 20 da LI, acrescentando elemento especializante à disposição genérica do artigo 139 do Código Penal, dispõe:

Constitui crime de difamação a publicação ou transmissão, salvo se motivada por interesse público, de fato delituoso, se o ofendido já tiver cumprido pena a que tenha sido condenado em virtude dele.

Em relação ao Recurso interposto pela Editora Abril e outros, também deve ser mantida a sentença eis que os honorários observaram o disposto no § 4º do artigo 20 do Código de Processo Civil.

Por tais razões conheço, dos recursos, face à presença dos seus pressupostos de admissibilidade, para negar-lhes provimento, mantendo na integra a sentença recorrida.

É como voto.

Rio de Janeiro, / /

Jds. Desembargador RENATO RICARDO BARBOSA

Relator

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