Em um esforço para combater as desigualdades de gênero historicamente presentes no Brasil, o Poder Judiciário brasileiro tem assumido uma postura proativa na luta contra a discriminação e a violência enfrentadas pelas mulheres ao longo dos anos.
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, publicado pelo CNJ e adotado por todo o Judiciário, completa três anos neste mês de outubro. Resultados e ações demonstram um caminho promissor de transformação na Justiça brasileira.
Em abril de 2024, durante um julgamento em Goiás, a juíza presidente do Tribunal do Júri, Isabella Luiza Alonso Bittencourt, condenou um réu por feminicídio e destacou a importância do protocolo nesse tipo de caso. A magistrada enfatizou que a orientação é de combate aos “estereótipos de gêneros, perpetuados pela sociedade patriarcal”.
Na sentença, a juíza reforçou que, além da condição feminina da vítima e do crime ter ocorrido no âmbito familiar, era fundamental considerar “a condição de mulher negra, camponesa e integrante de movimento social, o qual, amiúde, é estigmatizado por diversos setores da sociedade”.
O réu foi condenado a 18 anos de reclusão em regime fechado, sem direito de recorrer em liberdade. A juíza ainda ressaltou o fato de o réu ser pai dos filhos da vítima e, mesmo ciente do sofrimento que causaria, decidiu cometer o crime.
“Temos um modelo a ser seguido. Avançamos e conseguimos aplicar o protocolo de norte a sul do país e internamente nas decisões do CNJ”, afirmou a conselheira Renata Gil, supervisora da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Segundo ela, a política é paradigmática, o protocolo evoluiu e seu uso está consolidado.
O Protocolo é dividido em três partes: informações teóricas sobre questões de gênero; um guia para a magistratura, com instruções processuais; e questões de gênero específicas dos ramos da Justiça, com foco em temas transversais. O Grupo de Trabalho responsável pela elaboração do documento, em 2021, era composto por representantes de todos os segmentos da Justiça e da Academia. Até então, o Brasil não possuía um protocolo para auxiliar na implementação de políticas nacionais de combate à violência contra a mulher e de incentivo à participação feminina no Judiciário, como ocorre em outros países.
“A própria lei Maria da Penha já abordava a perspectiva de gênero, mas o protocolo ofereceu um guia para que o julgamento de casos concretos fosse realizado sob essa ótica, representando um avanço nas políticas de equidade”, explicou a ex-conselheira do CNJ Ivana Farina, que coordenou o GT na época.
Em dezembro de 2021, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Brasil no caso do feminicídio de Márcia Barbosa de Souza, morta em 1998. Uma das exigências da Corte era a adoção de um protocolo de gênero para orientar os julgamentos. O documento aprovado pelo CNJ foi então apresentado à Corte IDH. “Nosso documento ia além do que foi determinado pela Corte, pois não se limitava ao julgamento de feminicídio, mas podia ser utilizado por todos os ramos da Justiça, em todas as esferas, desde o cível, previdenciário, trabalhista até o militar e eleitoral”, lembrou Farina.
As dimensões estrutural, institucional e coletiva do racismo, sexismo e classismo no mundo do trabalho, por exemplo, foram citadas em um acórdão do TST, assinado pelo ministro Alberto Bastos Balazeiro, em junho de 2023. O caso, que envolveu a morte de um menino de apenas 5 anos, filho de uma empregada doméstica, durante a pandemia de covid-19, expôs as “desigualdades estruturais e seus efeitos sobre os jurisdicionados e jurisdicionadas e, por conseguinte, na prestação jurisdicional”.
O filho e o neto de empregadas domésticas, ambas com vínculo formal com a Prefeitura de Tamandaré/PE, mas que, na realidade, prestavam serviços domésticos na residência dos acusados, acompanhava a mãe no dia do ocorrido. O magistrado destacou que o caso deveria ser analisado a partir da adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, pois a medida “concretiza-se como um dos caminhos para a justiça social”.
O relator do caso ressaltou que o patriarcado, o racismo e outras formas de opressão influenciam a atuação jurisdicional. Ao manter as penas impostas aos réus, incluindo o pagamento de indenização às vítimas, Balazeiro argumentou que “o documento elaborado pelo CNJ é um importante instrumento para romper com a manutenção dos privilégios das estruturas dominantes, em detrimento de uma justiça substantiva”.
Em consonância com os tratados internacionais, normas, políticas judiciárias e a Constituição Federal, o protocolo também se configura como um instrumento para a conquista da igualdade de gênero, em atendimento ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS 5) da Agenda 2030 da ONU.
Para Ivana Farina, o Judiciário tem feito progressos nessas questões. “Esse é um trabalho coletivo, incluído na Política Judiciária e na Agenda 2030. A participação de todos construiu uma ferramenta de transformação para uma justiça igualitária e emancipatória, que não reproduza estereótipos e preconceitos”, concluiu.
Em outro caso, em agosto deste ano, a desembargadora federal Cibele Benevides Guedes da Fonseca, da 4ª Vara Federal do Rio Grande do Norte, utilizou o protocolo para garantir a permanência de uma servidora pública, professora e coordenadora em uma instituição federal de ensino na capital da Paraíba.
Apesar de estar vinculada a outro campus, a trabalhadora solicitava permanecer em seu local de trabalho, alegando que a mudança, prestes a acontecer, a impediria de acompanhar as terapias do filho autista. Além disso, a mudança criaria um “ambiente de instabilidade, estresse para toda a família, sobrecarga mental e impacto em sua saúde psicológica”.
O pedido da docente havia sido negado em primeira instância. A desembargadora, no entanto, deferiu a solicitação, com base no protocolo, “haja vista que se trata de servidora pública, mulher e mãe, na busca do cuidado com seu dependente, em especial se tratando de criança no espectro autista que exige tratativas diferenciadas”.
Em 2022, o CNJ aprovou a Recomendação 128, que tratava da adoção do Protocolo pelo Poder Judiciário. Posteriormente, a Resolução CNJ 429/23 tornou obrigatória a aplicação das diretrizes da norma em todo o país. Com isso, os tribunais brasileiros passaram a considerar, em seus julgamentos, as especificidades das partes envolvidas, a fim de evitar preconceito e discriminação por gênero e outras características. A norma também tornou obrigatória a capacitação de magistrados e magistradas em temas como direitos humanos, gênero, raça e etnia, sob uma perspectiva interseccional.
“O protocolo extrapola os limites do Judiciário. Diversas instituições de outras esferas nos procuram solicitando treinamento, como é o caso da Justiça Desportiva e da Defensoria Pública, por exemplo”, destacou a conselheira Renata Gil. “Essa ação afirmativa, que surgiu no Judiciário, tem sido utilizada por toda a sociedade. Ela consolida a igualdade constitucional e promove um mecanismo de mudança”, afirmou.
Informações: Agência CNJ de Notícias.