Por unanimidade, a 1ª turma do STF entendeu que juízos de 1ª e 2ª instância podem impor etapa prévia à desocupação forçada em casos de esbulho ocorridos após a pandemia de Covid-19. Os ministros consideraram que, em razão do poder geral de cautela do magistrado, é possível admitir sistema de transição similar ao estabelecido durante o período pandêmico.
No caso, em dezembro de 2022, um terreno no qual a Ambev possui uma fábrica foi parcialmente invadido. Em 1ª instância foi indeferida liminar para que as pessoas desocupassem o local.
Os moradores da comunidade "Ouro Verde" apresentaram contestação, afirmando que a Ambev nunca teve posse do imóvel e que ali residem pessoas vulneráveis, como estrangeiros, mulheres e crianças.
A empresa agravou da decisão. A desembargadora do TJ/AM, ao analisar o agravo, determinou que o juízo de 1º grau aplicasse o entendimento do STF na ADPF 828, para que se observasse o regime de transição e fossem adotadas medidas de solução para desocupação do terreno.
Nesta ação, o STF determinou um regime de transição a ser adotado após a proibição de desocupações durante a pandemia de Covid-19. O Supremo entendeu que Tribunais de Justiça e TRFs deveriam instalar comissões de conflitos fundiários para servir como apoio aos juízes e elaborar estratégias para retomar decisões de reintegração de posse suspensas.
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Além disso, as comissões deveriam realizar inspeções judiciais e audiências de mediação, com participação do MP e da Defensoria Pública, antes da decisão de desocupação, mesmo em locais nos quais já haja determinação de despejos.
Aplicando a decisão monocrática do TJ/AM, o juízo de 1º grau determinou que oficiais de justiça buscassem nomes de interessados para audiência de conciliação, dando seguimento ao processo.
A Ambev, então, apresentou reclamação ao STF.
Defesa da Ambev
Em sustentação oral, a advogada Alice Bernardo Voronoff, sócia do escritório de advocacia Gustavo Binenbojm & Advogados Associados, representando a Ambev, indicou que a decisão do STF foi aplicada de forma equivocada pela desembargadora.
Isso porque a ocupação foi iniciada após a pandemia de Covid-19, sendo possível que agentes estatais atuassem para evitar novas ocupações irregulares.
Ademais, ressaltou que a situação de vulnerabilidade não foi utilizada como fundamento da decisão da desembargadora, sendo o único fundamento a aplicação do regime de transição estabelecido na ADPF 828. Ressaltou que, ainda que vulnerabilidade fosse razão, não afastaria o evidente desrespeito à autoridade da decisão do STF, mal aplicada.
A advogada afirmou que o art. 565 do CPC é expresso ao dizer que soluções de conciliação se aplicam aos conflitos possessórios de posse velha, ajuizados há mais de ano e dia das ocupações. Mas que a ação da Ambev foi ajuizada concomitantemente à ocupação irregular, ou seja, em janeiro de 2023.
Assim, pediu acolhimento da reclamação para a reintegração da posse do terreno, garantindo os direitos dos colaboradores e funcionários da empresa.
Voto do relator
O relator, ministro Cristiano Zanin, entendeu que a demanda é parcialmente procedente, pois houve a aplicação equivocada do paradigma do STF.
S. Exa. lembrou que a Corte entendeu que haveria regime de transição, mas que seria aplicável durante a pandemia, o que não é o caso dos autos. Ademais, afirmou que a jurisprudência do STF vem limitando a aplicação desse regime às ocupações ocorridas até o final da pandemia ou até 31/3/21, em obediência à lei 14.216/21.
Porém, o caso concreto, segundo o ministro, tem peculiaridades que justificam outro olhar.
Na contestação, os moradores afirmam que a área do litígio é ocupada há vários anos por famílias e que, a partir de 2016, foi expandida, e a Ambev não se manifestou como prejudicada, sendo que o único muro existente na área é o de uma igreja. Por outro lado, o juízo de 1ª instância fundamentou a decisão em posse nova, afirmando que a data do esbulho ocorrera em dezembro de 2022.
Com base na divergência quanto à data da ocupação, Zanin considerou que não há informação segura de quando ela efetivamente ocorreu.
Ademais, ressaltou que a desembargadora proferiu decisão levando em consideração complexidades, como a população vulnerável de indígenas e estrangeiros.
Por isso, apesar de o caso não guardar aderência estrita às hipóteses da ADPF 828, nada obstaria que as instâncias ordinárias determinem etapas prévias de conciliação, mediação ou que exijam participação de órgãos públicos antes da reintegração de posse.
Ainda, afirmou que o CNJ editou a resolução 510/23 com algumas orientações nessa direção. Ou seja, para o Conselho, mesmo em reintegrações de posse nova, é facultada a realização de audiência de conciliação e mediação.
Ao final, votou por reconhecer que determinações do STF proferidas na ADPF 828 não são impositivas por precedente vinculante ao caso concreto, todavia, tal reconhecimento não implica cassar a decisão do TJ/AM, pois nada impede que as instâncias ordinárias imponham como etapa prévia à desocupação forçada regime de transição semelhante, em razão do poder geral de cautela do magistrado.
Assim, validou o rito adotado pelo TJ/AM, apenas excluindo a incidência do referido precedente vinculante do STF no caso concreto.
- Processo: RCL 67.652