Nesta quinta-feira, 8, STF começou a analisar se pessoas que usam trajes religiosos que cubram a cabeça ou parte do rosto têm o direito de aparecerem em fotografias de documentos oficiais de identificação com essa vestimenta.
Nesta tarde, o relator do caso, ministro Luís Roberto Barroso, fez a leitura do relatório e, posteriormente, as partes interessadas realizaram as sustentações orais.
O julgamento será retomado em data posterior com o voto do relator e dos demais ministros.
O caso
A União, autora do recurso, questiona decisão do TRF 4ª região que reconheceu o direito ao uso de hábito religioso em foto para a CNH, afastando aplicação de dispositivo da resolução 192/06 do Contran, que proíbe a utilização de óculos, bonés, gorros, chapéus ou qualquer outro item de vestuário ou acessório que cubra a cabeça ou parte da face.
No recurso ao STF, a União defende o abrandamento do dispositivo constitucional em face da norma infralegal para impedir a utilização de vestuário religioso na foto para cadastro ou renovação da CNH. Sustenta que a liberdade de consciência e de crença, assegurada pelo inciso VI do art. 5º da Constituição, foi limitada pelo inciso VIII, segundo o qual “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”. Para a União, isso significa que a liberdade religiosa não pode se sobrepor a uma obrigação comum a todos os cidadãos.
No caso concreto, a ação civil pública foi ajuizada na instância de origem pelo MPF a partir de representação de uma freira da Congregação das Irmãs de Santa Marcelina que foi impedida de utilizar o hábito religioso na foto que fez para renovar sua CNH. A foto da carteira anterior e de sua identidade foram feitas com o traje.
Na ação, o MPF qualificou como não razoável a vedação imposta pelo Detran do Paraná, tendo em vista que a utilização do hábito é parte integrante da identidade das Irmãs de Santa Marcelina, não se tratando de “acessório estético”. Também argumentou que impor a uma freira a retirada do véu equivaleria a exigir que um indivíduo retire a barba ou o bigode, afrontando a capacidade de autodeterminação das pessoas. Por fim, alegou que o impedimento ao uso do traje mitiga o reconhecimento pelo Estado à liberdade de culto.
Sustentações orais
Durante as sustentações orais, representantes de diferentes entidades trouxeram argumentos relevantes para o julgamento em questão.
Representando a UNI - União Nacional das Entidades Islâmicas, Quezia Barreto dos Santos, enfatizou a relevância do julgamento para a dignidade humana, especialmente no contexto do impacto na vida das mulheres. Ela ressaltou que o véu não é apenas uma peça de vestuário, mas sim uma prática religiosa fundamental no Islã, protegida pelo art. 5º da Constituição Federal.
“A retirada do véu em público por uma mulher muçulmana, por analogia, equivale a você solicitar que uma mulher não muçulmana retire a sua camisa para poder tirar uma foto no documento oficial”, acrescentou
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Por sua vez, Stefani Amorim Hortelã, falando em nome da ANAJURE - Associação Nacional de Juristas Evangélicos, “o equívoco no caso foi interpretar o hábito religioso como um acessório decorativo”.
Girrad Mahmoud Sammour, representando a ANAJI - Associação Nacional de Juristas Islâmicos, afirmou que o caso em discussão trata-se de intolerância religiosa e desrespeito. Posteriormente, fazendo uma analogia, ele comparou o uso do véu pelas mulheres muçulmanas com a toga usada pelos. “A própria toga que vossas excelências utilizam, que representa a imparcialidade, a justiça, a coragem, o respeito, é a mesma situação para essas mulheres muçulmanas, que o uso traz as mesmas. Essa identidade que não pode ser tolhida.”
Último a sustentar, o procurador-Geral da República, Paulo Gonet Branco, também se manifestou contra a exigência de retirada do véu para a identificação. Em seu entendimento, o uso do traje religioso não impede o propósito de identificação.
Intolerância
Após sustentações orais, o ministro Luís Roberto Barroso se manifestou, em nome do Poder Judiciário, contra a violência religiosa. “A intolerância religiosa não é característica do povo brasileiro. Nunca foi e não pode passar a ser. Portanto, o Poder Judiciário brasileiro rejeita todo tipo de animosidade de natureza religiosa”, disse.
O ministro afirmou que católicos, evangélicos, judeus, pessoas que professam religiões africanas, budistas, todos têm o seu lugar e são tratados com respeito e consideração. Ele lembrou que a islamofobia que se manifestou depois do 11 de setembro, atentados terroristas contra os Estados Unidos, e do 7 de outubro, dia do ataque do Hamas em Israel, não se justifica. “Toda generalização é injusta”.
Barroso também repudiou a onda de antissemitismo que se espalhou pelo mundo e que teve manifestações no Brasil após a reação de Israel ao ataque do Hamas. O episódio, disse, “revive no povo judeu os horrores de tempos passados”.
“Não há sentido em importarmos para o Brasil uma guerra que não é nossa, e afetar e contaminar um povo que sempre viveu em paz”, afirmou. Para o ministro é preciso praticar o que está no coração de muitas religiões: não fazer aos outros o que não se gostaria que fizessem a nós mesmos. “Isso está na Torat, está nos Evangelhos, está nos mandamentos de Maomé, e não há nenhuma razão para no Brasil e no mundo, se possível, deixar de ser assim”.
- Processo: RE 859.376