O governo Federal editou, na última segunda-feira, 24, a MP 1.182/23, regulamentando as apostas, ou "bets", realizadas por meio de plataformas de apostas online e tecnicamente denominadas "apostas de quota fixa". A MP tem força de lei imediata, mas perde a validade caso não seja aprovada pelo Congresso Nacional em um prazo de até 120 dias.
Na avaliação de especialistas das áreas financeira, regulatória, tributária, de tecnologia/propriedade intelectual e desportiva, o objetivo foi tornar mais seguro e transparente o relacionamento estabelecido entre as plataformas de jogos e o público em geral, mas também contribuir para o aumento da arrecadação.
O ministério da Fazenda avalia que a previsão é arrecadar cerca de R$ 2 bilhões por ano, com a regulamentação imediata do setor. Com a formalização total desse mercado, a estimativa de arrecadação anual passa a ser entre R$ 6 e R$ 12 bilhões.
Impactos no setor financeiro
Fabio Braga, sócio da área de Bancário e Financeiro do Demarest Advogados, avalia que a medida provisória tem normas que geram impacto sobre o mercado de meios de pagamento, além de efeitos fiscais. “Isso porque a MP traz regras que se aplicam aos canais de pagamento destinados tanto à realização das apostas quanto ao recebimento dos valores de premiações.”
De acordo com Braga, somente as instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central – como bancos e instituições de pagamento reguladas – poderão oferecer aos apostadores contas transacionais por meio das quais terão condições de realizar operações de pagamento de apostas, assim como receber eventuais premiações.
“Com a nova regra, as instituições de pagamento que ainda não atingiram as condições regulatórias mínimas que lhes permitam pleitear a autorização de funcionamento perante o BC estarão impedidas de atuar como canais de liquidação financeira no âmbito do mercado de apostas.”
Ainda segundo o sócio do Demarest, o ponto central da nova legislação, a outorga onerosa de concessão, permissão ou autorização para que agentes operadores explorem as apostas de quota fixa, também deverá gerar impactos no mercado de meios de pagamento.
“O ministério da Fazenda deve editar normas complementares para reger tais processos de outorga iniciados por pessoas jurídicas nacionais ou estrangeiras com estabelecimento no país.”
Esse critério para o funcionamento regular dos agentes operadores do mercado deve causar repercussões importantes sobre o sistema de pagamentos brasileiro, porque novas regras deverão ser editadas pelo BC para fazer ajustes no funcionamento dos arranjos de pagamento, segundo avalia o especialista em Bancário e Financeiro do Demarest.
“Essa medida tem por finalidade impedir a realização de pagamentos destinados a apostas por operadores não autorizados. Nesse ponto, a intenção das autoridades, por um lado, é evitar o acesso do público a operadores cujo funcionamento não esteja regularizado, e, por outro, utilizar os mecanismos próprios das estruturas obrigatórias que as instituições mantêm visando à prevenção da utilização do sistema financeiro para a prática dos crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores.”
O descumprimento das regras que o BC vier a editar, disciplinando o funcionamento dos arranjos, deverá acarretar a exposição das instituições financeiras e de pagamento comprovadamente infratoras a sanções administrativas, cuja modulação deverá estar alinhada às previsões da lei 13.506/17 e regulamentação infralegal, levando-se em conta a possibilidade não só de aplicação de penas pecuniárias, mas igualmente aquelas consistentes no impedimento de continuidade de operação das instituições, explica o sócio do Demarest.
Impactos regulatórios
Temas importantes de regulação e Direito Público ficaram de fora da MP ou continuam pendentes de regulação, de acordo com a avaliação de Monique Guzzo, advogada da área de Regulatório do Demarest.
“Isso porque, a MP estabelece que o ministério da Fazenda vai regulamentar a forma e o processo pelo qual serão concedidas as autorizações para que todos os agentes operadores da modalidade lotérica de apostas de quota fixa façam uso:
I - da imagem, do nome ou do apelido desportivo e dos demais direitos de propriedade intelectual dos atletas; e
II - das denominações, das marcas, dos emblemas, dos hinos, dos símbolos e dos similares das organizações esportivas.”
Além disso, o ministério da Fazenda e o Conar - Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária - devem atuar em conjunto para regular as ações de comunicação, publicidade e marketing desse mercado.
Entretanto, a MP já definiu (de maneira genérica) quem pode solicitar autorização para exploração das loterias de apostas de quota fixa, diz a especialista. Poderão solicitar autorização para exploração das loterias de apostas de quota fixa as pessoas jurídicas nacionais ou estrangeiras, devidamente estabelecidas no território nacional e que atenderem às exigências constantes da regulamentação do Ministério da Fazenda. Quem não tiver autorização, não poderá fazer propaganda e publicidade no Brasil.
“Considerando que atualmente quase todos os sites apostas estão sediados no exterior, tais empresas deverão abrir sede no Brasil e cumprir com as regras e as condições que serão estabelecidas pelo ministério da Fazenda.”
Ademais, a MP determina que as operadoras de internet (empresas provedoras de conexão à internet e de aplicações de internet) façam o bloqueio ou a exclusão de casas de apostas que não estão autorizadas. E, ainda de acordo com Monique Guzzo, as entidades de administração do esporte proibirão, nos regulamentos de suas competições, que organizações de prática desportiva e atletas veiculem nomes e marcas de empresas que ofertem ou explorem loteria de apostas de quota fixa sem outorga.
“Essa medida visa dificultar a operação das empresas de apostas não autorizadas e sabemos que é um mecanismo já utilizado em outros países. Muito embora, tal medida gere grande impacto no modelo atual, ela não é uma ‘novidade’. O governo já anunciava que pretendia estabelecer nas novas regras.”
O sócio ou acionista controlador de empresa operadora de loteria de apostas de quota fixa, individual ou integrante de acordo de controle não poderá deter participação, direta ou indireta em times de futebol ou qualquer outra organização esportiva profissional, nem atuar como dirigente de equipe desportiva brasileira, diz Monique Guzzo.
Ela ainda aponta que o alto valor das multas em casos de infrações chama a atenção. No caso de pessoa jurídica, a multa é no valor de 0,1% a 20% sobre o produto da arrecadação após a dedução das importâncias de que tratam os incisos III a VI do caput do art. 30, relativo ao último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo sancionador, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação, nem superior a R$ 2 bilhões, por infração, observado o disposto no art. 35-B desta lei.
Ainda, de acordo com Monique Guzzo, a medida deve causar efeitos no setor jurídico sobre: a compreensão e interpretação das novas normas; a constituição de empresas no Brasil (atualmente todas as empresas que exploram esse mercado estão sediadas no exterior); e a redação de novos termos e condições dos sites de apostas, os quais deverão atender às novas regras.
Impactos tributários
A MP também trouxe alterações em matéria de tributação das operações envolvendo apostas de quota fixa. As empresas conhecidas como bets passarão a pagar uma alíquota de 18% sobre a receita obtida com os jogos (chamada de GGR – Gross Gaming Revenue), descontados os prêmios pagos aos jogadores. Haverá também tributação de 30% referente ao IR (Imposto de Renda) sobre prêmios recebidos pelos apostadores que ficarem acima da faixa de isenção de R$ 2.112,00.
A nova redação do art. 30 da lei 13.756/18 passa a estabelecer que, sobre o produto da arrecadação das loterias de apostas de quota fixa, subtraído do prêmio pago e do imposto de renda de 30% retido sobre o valor do prêmio, incidirá 18% de contribuições, distribuídos da seguinte forma:
- 10% a título de contribuição para a seguridade social;
- 0,82% destinado à educação básica;
- 2,55% destinado ao FNSP - Fundo Nacional de Segurança Pública;
- 1,63% destinado às entidades do Sistema Nacional do Esporte e atletas que tiverem seus nomes e símbolos ligados às apostas; e
- 3% destinado ao ministério do Esporte até 2028 e, após essa data, ao Tesouro Nacional.
Na avaliação da área tributária do Demarest, com a instituição da contribuição de 10% para a seguridade social e de 3% para o ministério do Esporte até 2028 e depois para o Tesouro, entendemos que haverá um aumento da carga tributária aplicável aos operadores de apostas esportivas.
“É importante ter em mente que este é um mercado que está sendo regulado agora e que possuía pouquíssimos players. Assim, na prática, apesar de haver um aumento nas contribuições devidas pelos operadores, somente agora eles poderão atuar no setor, de modo que se trata mais da ‘definição’ da carga tributária aplicável do que ‘aumento’ da carga tributária”, avaliam os advogados Arthur Gerlinger e Dora Pimentel, e André Novaski, sócio da área Tributária do escritório.
A MP estabelece ainda que, do valor líquido arrecadado, até 82% do produto da arrecadação será voltado à cobertura de despesas de custeio e manutenção do agente operador da loteria de apostas de quota fixa. O limite trazido no texto até então vigente era de 95%. Esse limite pode variar durante o ano, desde que a média anual atenda ao limite estabelecido na legislação.
A partir de 2021, com a edição da lei 14.183, ficou inicialmente estabelecido que os operadores de apostas esportivas precisariam recolher 5% a título de contribuições. Desta forma, subtraindo os 5% de contribuições devidas, 95% do produto da arrecadação líquida seria utilizado pelo agente para a manutenção de sua operação (mencionamos arrecadação líquida porque as contribuições indicadas no item acima, tem como base de cálculo o produto total de arrecadação subtraído do pagamento dos prêmios e imposto de renda incidente sobre os prêmios), explicam os especialistas.
“Com a edição da MP, as referidas contribuições foram elevadas de 5% para 18%, de modo que apenas 82% do produto da arrecadação será voltado à cobertura de despesas de custeio e manutenção do agente. Em linhas gerais, esse aumento das contribuições beneficia o governo federal com um aumento da arrecadação vinculada a este setor.”
Os agentes operadores deverão apurar e recolher os repasses mensalmente na forma a ser definida pelo ministério da Fazenda e pela secretaria da Receita Federal do Brasil.
Os especialistas mencionam que a MP não definiu expressamente o que será entendido como receita do agente operador para fins de tributação corporativa (IRPJ, CSLL, PIS e COFINS) e ISS – se apenas os 82% ou 100% do valor arrecadado subtraído do prêmio e do imposto de renda.
Essa falta de definição decorre da ausência de definição na legislação quanto a se o valor que deverá ser sujeito aos tributos corporativos (IRPJ, CSLL, PIS e COFINS) e ISS é o valor total arrecadado pelos operadores ou somente o valor retido pelo operador após o pagamento de prêmios e contribuições estabelecidas em lei.
“Existem divergências quanto ao critério que deverá ser adotado, mas o STF já decidiu no Tema 700 que especificamente para o ISS a sistemática que deverá prevalecer é aquela em que apenas é tributado o valor retido pelo operador, o chamado GGR. Esta indefinição pode, de fato, gerar insegurança jurídica, mas especificamente do ponto de vista fiscal não vislumbramos que levará ao aumento de fraudes”, explicam os advogados.
O texto preservou a sistemática de tributação do GGR - Gross Gaming Revenue. Em linhas gerais, o GGR representa o valor retido pelo operador e não o total arrecadado a título de apostas (turnover). Esse modelo de tributação é compatível com o julgamento do STF no Tema 700, que tratou da incidência de ISS sobre a atividade de exploração de jogos e apostas.
Impactos em PI (Propriedade Intelectual) e no mercado esportivo
A MP 1.182 regulamenta o mercado de apostas realizadas por meio de plataformas online, que são muito populares no mercado esportivo e atraem grande público, especialmente, aqueles que acompanham um time ou jogadores específicos.
As apostas esportivas abrem espaço para a realização de diversos negócios jurídicos que envolvem, entre outras oportunidades relacionadas aos direitos de propriedade intelectual, contratos de licença de uso de marca e autorização de uso de imagem. Nesse sentido, a MP cumpre o papel de regulamentar o mercado de apostas realizadas por meio de plataformas online e traz importantes mudanças no âmbito da propriedade intelectual.
A primeira mudança se refere ao art. 17, incisos I e II, item “i”, assim como arts. 20, 22 e 30, §1º- A, inciso III, que passam a trazer como beneficiários as organizações de prática esportiva da modalidade futebol em vez de as entidades desportivas da modalidade futebol, para o uso de suas denominações, marcas, emblemas, hinos, símbolos e similares em contrapartida para divulgação e execução da Lotex.
A MP acrescentou ainda o §6º do art. 30 que estipula que o ministério da Fazenda regulamentará a forma e o processo pelo qual serão concedidas autorizações para que todos os agentes operadores da modalidade lotérica de apostas de quota fixa façam uso:
- da imagem, do nome ou do apelido desportivo e dos demais direitos de propriedade intelectual dos atletas; e
- das denominações, das marcas, dos emblemas, dos hinos, dos símbolos e dos similares das organizações esportivas.
O §7º do mesmo artigo determina ainda que a destinação do produto da arrecadação será revertida, na forma estabelecida em regulamento do ministério da Fazenda em conjunto com o ministério do Esporte:
- às entidades do Sistema Nacional do Esporte e aos atletas brasileiros ou vinculados a organizações de prática desportiva sediadas no país, nas hipóteses em que seu nome, apelido, imagem e demais direitos de propriedade intelectual forem expressamente objeto de aposta; ou
- à organização nacional de administração da modalidade de que tratar o evento, quando os participantes não integrarem o Sistema Nacional do Esporte.
Somado a isso, a MP acrescentou o art. 33 que determina que as ações de comunicação, de publicidade e de marketing da loteria de apostas de quota fixa observarão a regulamentação do ministério da Fazenda, incentivada a autorregulação. E com isso, estabelece nos parágrafos seguintes que o Conar poderá estabelecer restrições e diretrizes adicionais a tais recomendações.
A MP traz no §3º do art. 33-B que as entidades de administração do esporte proibirão, nos regulamentos de suas competições, que organizações de prática desportiva e atletas veiculem nomes e marcas de empresas que ofertem ou explorem loteria de apostas de quota fixa, em todas as suas propriedades de marketing que possam ser objeto de acordo sobre veiculação de marcas, sem a outorga prevista em lei.
A medida determina ainda que as empresas prestadoras das atividades de loteria de apostas não poderão adquirir, licenciar ou financiar a aquisição de direitos de eventos desportivos realizados no país para emissão, difusão, transmissão, retransmissão, reprodução, distribuição, disponibilidade ou qualquer forma de exibição de seus sons e imagens, por qualquer meio ou processo.
Por fim, a MP indica que a publicidade e a propaganda de sites ou loterias sem a outorga de que trata o art. 29 são proibidas, cabendo às empresas provedoras de conexão à internet e de aplicações de internet (definição dada pelo Marco Civil da Internet) realizar o bloqueio ou exclusão de tais sites/aplicativos, após notificação administrativa do ministério da Fazenda.
“Como se pode notar, alguns pontos envolvendo direitos relacionados à Propriedade Intelectual serão objeto de discussão que depende de direcionamentos ainda pendentes, entretanto, as mudanças trazidas na MP já têm importantes elementos direcionadores para as práticas que serão adotadas e dos possíveis conflitos de interesse e discussões que serão enfrentados”, avalia Tatiana Campello, sócia das áreas de Propriedade Intelectual, Tecnologia & Inovação e Privacidade, Tecnologia & Cibersegurança.
Saiba mais
Demarest Advogados preparou, em janeiro deste ano, um manual com informações sobre as diversas modalidades de jogos e apostas – permitidas ou proibidas por leis esparsas que abordam diferentes temas – e os diferentes projetos de leis em tramitação, que buscam criar regras e viabilizar a exploração de alguns tipos de jogos e apostas no Brasil.
O trabalho reúne, em um único documento, as principais regulamentações e os projetos do setor, além de facilitar a compreensão das modalidades que podem ou não ser oferecidas no Brasil, para evitar riscos a investidores nacionais e estrangeiros.
O manual pode ser baixado de forma gratuita nestes links: