Migalhas Quentes

Professora da FGV Direito SP estuda povos indígenas e seus territórios

De acordo com o estudo realizado pela especialista Flavia Scabin, da FGV Direito SP, comunidades que viviam no entorno do Rio Xingu podem passar por crise humanitária similar à que foi enfrentada pelos Yanomamis ao confrontarem situação de extrema pobreza.

19/6/2023

A FGV está com um projeto que utiliza ferramentas tecnológicas de georreferenciamento para medir a qualidade do solo, da água e de moradias. O trabalho começou no entorno do Rio Xingu, próximo à usina hidrelétrica de Belo Monte.

Os resultados da pesquisa indicam que pode haver uma grande crise de insegurança alimentar, caso os ribeirinhos não retornem aos seus territórios com as condições de vida asseguradas. Os números demonstram que a produção de frutas nessas comunidades caiu em média 70%, enquanto a produção de peixes diminuiu aproximadamente 30%, além de queda na produção de grãos, carne, verduras, entre outros.

A pesquisadora que está à frente do estudo e professora da FGV Direito SP, Flavia Scabin, explica que “A insegurança alimentar é um dos fatores que mais nos preocupa e, em relação a esse aspecto, seria possível traçar um paralelo com a situação dos Yanomamis.

Segundo um levantamento que realizamos junto a 122 famílias que foram deslocadas da região do Rio Xingu e reassentadas distante do rio, há a percepção de piora na produção de diferentes tipos de alimentos, da forma como mostra o gráfico abaixo sobre produção de alimentos das famílias que não foram realocadas ao Xingu”.

(Imagem: Divulgação)

Nota: O universo corresponde a 122 famílias não reassentadas (100%) no Xingu para cada categoria e referem-se apenas ao percentual de menção daquela determinada categoria pelos(as) respondentes. A soma dos percentuais apresentados não totaliza 100%, pois um indivíduo pode ter formulados respostas que cabem em mais de uma categoria.

Ao serem consultados sobre a produção de alimentos antes e depois do deslocamento compulsório, das 122 famílias deslocadas de forma compulsória e não reassentadas nas proximidades do rio, apenas 6% mencionou ter suficiência na produção de farinha, 13% de verduras e 59% do peixe, sendo possível identificar uma piora em relação ao que tinham antes.  

Além disso, há os desafios de lidar com a invasão de gado nas áreas destinadas ao reassentamento das famílias ribeirinhas. Esses animais, segundo alerta a pesquisadora Scabin, costumam gerar grande destruição nas comunidades.

Mas se engana quem pensa que as consequências são somente referentes a danos físicos e de infraestrutura. Flavia relembra que, no início da construção da usina de Belo Monte, ocorreram inúmeras denúncias de abuso sexual e de trabalho infantil.    

“Ao longo desse tempo houve um dano irreparável à saúde mental dessa população. E por mais evidente que seja, fica difícil de demonstrar esses fatores de forma concreta. Porém, no que diz respeito ao impacto ambiental, referente à qualidade das águas e dos peixes, os ribeirinhos passarão a contar com ferramentas tecnológicas, baseadas em Inteligência Artificial, para mensurar os impactos sofridos e viabilizar a cobrança por parte da gestão pública”, explicou a pesquisadora.

Diante desse cenário, a pesquisadora destaca que, embora a expectativa fosse que a instalação da Usina promovesse o desenvolvimento local, foi possível observar, nessa coleta de dados realizada em 2020, a diminuição da produção alimentar e o aumento da pobreza, em razão de não ter sido assegurado o direito à manutenção do modo de vida tradicional dessas famílias.

Para reverter essa situação, foi criado a plataforma de georreferenciamento chamada SAGUI - Sistema de Acompanhamento Georreferenciado e Unificado de Informações. Trata-se de uma solução tecnológica que foi construída com os ribeirinhos deslocados da região do Rio Xingu, para monitorar diversos parâmetros que compõem a qualidade de vida para aquela comunidade.    

Primeiro realizamos um diagnóstico mostrando quão emergencial era a situação, depois construímos uma agenda de monitoramento que conta com o apoio de soluções tecnológicas e Inteligência Artificial. Agora, estamos no processo de retornar à comunidade para entender por que os ribeirinhos ainda não voltaram ao seu território e também para garantirmos que, quando voltarem, eles possam contar com uma gestão adaptativa, com boas condições de vida asseguradas e com uma comunidade mais resiliente.”  

Como o projeto surgiu? 

Preocupados com a situação dos ribeirinhos, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) foi quem convidou diversos cientistas de diferentes universidades brasileiras, entre elas a FGV, para contribuírem com a construção de uma solução que pudesse assegurar os meios de vida e os direitos dos ribeirinhos deslocados compulsoriamente.  

O objetivo era oferecer diagnóstico sobre as condições de vida dos ribeirinhos nas mais diversas dimensões, em relação à sua saúde, à sua alimentação, entre outras. Os resultados dos estudos mostraram a necessidade de que os ribeirinhos pudessem retornar ao Rio Xingu como única forma de assegurar os seus direitos ao modo de vida, à alimentação, à saúde etc.”

A pesquisa demonstra que a transferência dos ribeirinhos para a região periférica de Altamira ocasionou mais vulnerabilidade e pobreza para essa população. Perante essa situação, o Ministério Público Federal (MPF), em uma ação com a SBPC e o Conselho Ribeirinho, determinou que os ribeirinhos voltassem para sua comunidade.   

A Usina está em pleno funcionamento, mas até hoje os ribeirinhos não retornaram ao seu território. Em nosso projeto, após fazer um diagnóstico da situação, construímos uma agenda de monitoramento, por meio de ferramentas tecnológicas, para averiguar se de fato os territórios deles possuem boas condições que assegurem sua qualidade de vida e se há mecanismos para realizar a gestão adaptativa do território, de forma a garantir o retorno e a permanência dessas comunidades.”  

Contexto histórico

Fora de seu território desde 2014, cerca de 200 famílias aguardam para poderem retornar aos arredores do Rio Xingu. Nos documentos realizados pelo Conselho Ribeirinho, aprovados pelo Ibama, consta todo um planejamento adaptado às suas realidades.

Na ocasião, os ribeirinhos foram transferidos, pela empresa responsável pela construção da Usina de Belo Monte, para reassentamentos urbanos nas periferias da cidade de Altamira, no norte do Pará. No entanto, os ribeirinhos não se adaptaram àquela região, visto que não havia nenhuma similaridade com seu estilo de vida e cultura, de um povo que tinha como a pesca uma das principais atividades.

É importante garantir que eles tenham condições de moradia e assistência social não somente para que melhorem em relação a sua atual situação, mas também para que os fortaleçam a ponto de evitar que passem por crises humanitárias. Este é o papel da pesquisa da FGV: averiguar essas condições e buscar soluções adequadas aos contextos locais para que os ribeirinhos tenham qualidade de vida.

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