A ministra do Tribunal Constitucional da Alemanha, Sibylle Kessal-Wulf, encerrou na última sexta-feira, 12, no Rio de Janeiro, o ciclo de palestras realizados no Brasil, o qual incluiu eventos no STF em Brasília e no TJ/BA.
A magistrada veio ao Brasil a convite da EMERJ - Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, presidida pela desembargadora Cristina Tereza Gaulia, para falar sobre um dos temas mais palpitantes do momento: “fatos alternativos”, fake news, discurso de ódio e liberdade de expressão.
Os eventos foram organizados por Karina Nunes Fritz, professora da EMERJ e colunista do Migalhas, com o apoio do Fórum de Democracia Alemanha-Brasil, coordenado pela Embaixada da Alemanha.
Kessal-Wulf iniciou sua fala alertando para os efeitos desestabilizantes e deslegitimadores que os fatos alternativos provocam na medida em que criam um clima de tensão na sociedade e minam a confiança dos cidadãos no Estado e nas instituições democráticas. “Essa confiança, porém, é pressuposto para a manutenção de qualquer sociedade baseada no pluralismo”, disse.
O termo "fatos alternativos" foi eleito em 2017, na Alemanha, como a antipalavra do ano, pois visa legitimar falsas afirmações no debate público, tornando-as socialmente aceitáveis.
A ministra afirmou que a propagação de fake news e discursos de ódio ganharam uma dimensão até então inimaginável com o surgimento da internet e das novas tecnologias de comunicação, que permitem a disseminação instantânea e descontrolada de conteúdos ilícitos. “É praticamente impossível recuperar notícias falsas atualmente”, disse.
Na Alemanha, proliferam na internet ataques a políticos, pessoas públicas, representantes da mídia e, em última instância, ataques à liberdade de expressão, à democracia e ao pluralismo social, valores centrais da Lei Fundamental alemã.
Segundo Kessal-Wulf, o grande desafio agora é como evitar que a nossa década entre para a história como a “década desregrada”, na qual perdeu-se os limites e o respeito. “Combater os fatos alternativos e o ódio na internet é tarefa de todos os poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário”, disse.
Atento a isso, o legislador alemão tem imposto deveres e responsabilidades mais rígidos às grandes plataformas, que filtram e decidem atualmente quais informações mostrar a seus usuários, influenciando decisivamente a formação da opinião pública. A questão central hoje não é mais como o cidadão forma sua opinião, mas quem a forma, afirmou a ministra.
O Judiciário também tem sido firme no combate aos conteúdos ilícitos, embora considere a liberdade de expressão como um dos bens jurídicos mais importantes da ordem jurídico-constitucional.
Segundo o Tribunal Constitucional alemão, a liberdade de expressão é não apenas pressuposto inafastável da democracia liberal, mas também manifestação da personalidade humana e, portanto, direito humano e fundamental.
A liberdade de expressão compreende, por um lado, a liberdade de externar e divulgar opiniões e, por outro, a liberdade de se informar e de tomar conhecimento das opiniões de terceiros. Ela inclui até o direito dizer bobagem e de acreditar em asneiras, salientou a magistrada.
A democracia deve suportar não apenas as opiniões contrárias, mas também as opiniões incomodas, errôneas e absurdas. “Nisso se manifesta a força da democracia”, acentuou a ministra alemã.
Porém, a liberdade de expressão pode e deve ter limites. A Lei Fundamental alemã optou expressamente pela democracia defensiva e, por isso, ela não permite que os inimigos da Constituição, sob o escudo da liberdade de expressão, destruam ou ameacem a ordem constitucional e a existência do Estado Democrático de Direito, concluiu Kessal-Wulf.
A professora Karina Nunes Fritz explicou que o tema da liberdade de expressão mostra como o direito brasileiro debate-se entre a influência do direito norte-americano, onde predomina uma liberdade quase absoluta, e a influência do direito continental europeu, sobretudo do direito alemão, que impõe limites à liberdade de expressão sempre que ela ameaça valores estruturantes da ordem constitucional, como a dignidade humana, o pluralismo e a democracia.
Segundo ela, a liberdade de expressão deixou de ser um problema de tutela da honra do ofendido, para se tornar um problema de Estado na medida em que põe em risco o Estado Democrático de Direito, daí a importância da ideia de democracia defensiva desenvolvida no direito alemão.
O evento mostra a necessidade de intensificar o diálogo entre Brasil e Alemanha, que possuem um mesmo tronco comum e um sistema jurídico muito semelhante.