Migalhas Quentes

Fome: Preso por roubo ganha liberdade mas pede para ficar até o jantar

Promotor do caso fez duras críticas ao sistema de Justiça: "máquina de moer pobre".

15/6/2022

Um jovem de 20 anos foi preso pelo roubo de um celular. Na audiência de custódia, ganhou a liberdade, mas, em vez de comemorar, surpreendeu a juíza e o promotor ao pedir para permanecer preso até a hora do jantar. O homem, que estava há um dia no presídio de Santa Luzia, na região metropolitana de Belo Horizonte, disse que estava muito fraco e ficou com medo de passar mal na rua.

Assista:

A juíza de Direito Elâine de Campos Freitas tranquilizou o réu, afirmando que o trâmite para a soltura demoraria algumas horas e que ele poderia jantar.

Uma publicação do promotor do caso, Luciano Sotero Santiago, sobre o caso, causou comoção nas redes sociais.

Em entrevista ao Migalhas, o promotor, que atua no MP/MG, explicou o ocorrido.

Ele conta que chegou no plantão e recebeu o caso da comarca de Caeté, região metropolitana de MG. O homem foi preso no sábado, em flagrante, por roubar um celular após ameaçar a vítima com uma pequena faca. Ele foi preso e confessou o crime. O celular foi devolvido à vítima.

O promotor observou tratar-se de um rapaz que mora com o pai e faz bicos como servente de pedreiro; é réu primário, sem antecedentes. Ante a confissão e restituição do objeto do crime, o promotor considerou que não era caso de prisão. Para ele, cautelares seriam suficientes: proibição da aproximação da vítima, tornozeleira eletrônica e comparecimento em juízo.

"Eu tenho uma visão de aplicação da Constituição e do CPP. Tenho larga experiência de que levar essas pessoas à prisão fomenta maior criminalidade. Ele era fisicamente frágil. Se vai para o presídio, poderia ser vítima de abuso sexual, agressão, e havia grande chance de ser cooptado por organizações criminosas. Se for condenado, não ficará em regime fechado. Para que pedir a prisão? Adotei esse posicionamento, mas sei que é minoritário.”

Ele chegou a peticionar à juíza para que fosse feita a liberação do homem, mas, por um problema no PJE, a magistrada não recebeu o pedido. Por isso, foi feita a audiência de custódia.

Na audiência, os profissionais envolvidos perceberam que o homem poderia ter algum sofrimento psíquico. Ele disse que tinha dificuldades para dormir, crise de ansiedade, que via vultos e que fazia uso de medicamentos.

Assim, a juíza fez ofício pedindo que ele seja encaminhado para avaliação psicológica e psiquiátrica, e que receba atendimento profissional especializado.

Segundo o promotor, a juíza teve a sensibilidade de ver que ele não oferece periculosidade. Era simplório, não tinha linguajar de criminoso, foi sincero e espontâneo.

Assim, a magistrada aplicou as cautelares e comunicou que ele seria solto.

Foi então que o homem fez o pedido que surpreendeu a todos os presentes na audiência, fazendo um apelo para que pudesse jantar na unidade antes de ser liberado.

Para o promotor, o ocorrido revela um problema estrutural.

"Ver a pessoa abrir mão da liberdade, da dignidade, por comida. No presídio, ele encontra condições materiais que ele não tem: lanche, comida, cama, cobertor. Não era um ato isolado de alguém que estava com fome. A fome está repercutindo no âmbito do sistema de Justiça. Ela chegou. Está aqui."

Problema estrutural - Fome

De fato, o Brasil voltou ao mapa da fome em 2018. Nos últimos dois anos, a pandemia fez o Brasil retroceder ainda mais em termos de segurança alimentar.

Em 2022, são 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer, como mostra a atualização dos dados do Inquérito Nacional Sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), lançado na semana passada.

A pesquisa revela que mais da metade dos brasileiros (58,7%) convive hoje com algum grau de insegurança alimentar, o que leva o país para o mesmo patamar da década de 90.

Crise penitenciária

Enquanto isso, a população carcerária atinge números altíssimos: o Brasil está próximo de bater a marca de 1 milhão de pessoas presas, segundo os dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, do CNJ.

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"Máquina de moer pobre"

O promotor destacou que, no trabalho diário com o meio criminal, vê muitas pessoas sem qualquer perspectiva. Para ele, não há discussão séria de política criminal – a política é de encarceramento em massa.

"Não é que isso justifique o ato criminoso. Mas você olha para a pessoa, ela não tem perspectiva de trabalho, educação. Vive em ambiente de violência, exclusão. Não há o campo do afeto, do carinho, da solidariedade. É muito pesado.”

Para o promotor, há insensibilidade por parte do sistema de Justiça. Em duras críticas, ele afirma que o sistema é “uma máquina de moer pobre”.

"O sistema de Justiça é uma máquina de moer pobre: sistema seletivo, e estruturalmente seletivo, uma clientela que o sistema de justiça sempre busca. O sistema tem insensibilidade social. Você é chamado de doutor, excelência, fica em gabinetes com ar-condicionado, é tratado com deferência, mas não conhece a realidade da maioria da população brasileira, que não tem acesso a comida, a saúde. Falta sensibilidade."

Para ele, a repercussão do caso foi tão grande porque mostra que há um grade problema estrutural, e que está ligado ao cenário em que o país vive hoje.

“O sistema de Justiça não está isolado do contexto da sociedade brasileira. Na sociedade eles também não são ouvidos. O sistema de Justiça nada mais é do que um reflexo da sociedade.”

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