Migalhas Quentes

Luna van Brussel Barroso faz resenha da nova obra do ministro Barroso

"Sem data venia" é um apanhado didático de reflexões e ensinamentos sobre a vida, o mundo e o Brasil do passado e do futuro.

3/2/2021

Recém lançada, "Sem Data Venia: Um Olhar Sobre o Brasil e o Mundo", nova obra do ministro Luís Roberto Barroso, trata dos problemas mais candentes do Brasil: a desigualdade, a polarização político-ideológica, a perda de representatividade dos partidos, os desafios na preservação do meio ambiente e na educação, o racismo estrutural e as ameaças à liberdade de expressão. 

(Imagem: Arte Migalhas)

Com sua elegante escrita, Barroso aborda a realidade atual sem escamotear a gravidade dos problemas ou a urgência de enfrentá-los. Em tom otimista - marca registrada do ministro - diz que o Brasil vive um momento de refundação.

"Há uma velha ordem sendo empurrada para a margem da história e uma nova ordem chegando como luz ao final da madrugada."

Aos céticos, ele adianta que a claridade não é imediata.

"A elevação da ética pública e da ética privada no Brasil é trabalho para mais de uma geração."

E falando em mais de uma geração, é bom lobrigarmos o que vem pela frente. E, nesse sentido, não podemos deixar de ser, como o ministro, otimistas. Um bom sinal, provando o dito popular de que quem sai aos seus não degenera, é a resenha que hoje temos a ventura de divulgar. 

Trata-se de trabalho elaborado pela advogada Luna van Brussel Barroso, cujo patronímico já deixa claro se tratar da filha do autor. Em texto também muito elegante, com ótimas e ideias e erudição na medida adequada, ela apresenta a obra do pai. E a apresenta até com excesso de autocontenção, talvez para não correr o risco de cair no cabotinismo (que seria até aceitável, mas que de fato não existe no texto). 

Deixando de lado essa resenha da resenha, coisa inoportuna, ouçamos a advogada Luna. Ela nos apresenta a obra de forma primorosa. Ao final, fica um convite à leitura do livro, que merece ser amplamente divulgado. 

Vejamos:

I. Sobretudo, um professor

Algumas pessoas têm a sorte de encontrar a sua vocação na vida. No caso de Luís Roberto Barroso, essa vocação grita. Ele gosta de dizer que está Ministro, mas é Professor. Sobretudo, um Professor. O livro Sem data venia: um olhar sobre o Brasil e o mundo narra o início da sua experiência em sala de aula ensinando direito constitucional, em 1981, suspensa até 1987 pelos "órgãos de informação" do regime militar. Com a ditatura para trás, começava, enfim, uma trajetória que perdura até hoje, com aulas, palestras, artigos e publicações acadêmicas.

Mas o livro é também – e principalmente – um atestado de que essa vocação transcende as salas de aula de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde o autor leciona até hoje. Escrito em linguagem coloquial e acessível, Sem data venia é um apanhado didático de reflexões e ensinamentos sobre a vida, o mundo e o Brasil do passado e do futuro.

Na primeira parte do livro, o autor lança um olhar sobre a sua vida, narrando episódios pessoais e históricos que marcaram a sua trajetória e culminaram na sua chegada ao Supremo Tribunal Federal. É nessa primeira parte que os leitores têm a oportunidade de conhecer o lado humano do Professor que falará sobre o mundo e o Brasil nas duas partes seguintes. Dizem que um bom professor ensina pelo exemplo e, no relato de sua vida, o autor oferece, de partida, três grandes lições.

Um aviso fundamental antes de prosseguir: o leitor atento, a esta altura, já terá percebido a coincidência de sobrenomes. Há uma frase feliz do poeta Ramón de Campoamor que diz: "nada es verdad ni mentira: / todo es según el color / del cristal con que se mira". É importante o registro de que o meu cristal tem a cor de quem conhece o autor como muito mais do que um Professor ou um Ministro. Mas que também é testemunha de seu compromisso em estudar e pensar o Brasil, as nossas instituições e de fazer daqui um país melhor e maior.

Feito o alerta, e compreendendo a posição de quem achar melhor dar meia volta desde já, é hora de seguir adiante para as três lições da primeira parte do livro.

A primeira: a amizade pode ser mais poderosa do que a ideologia 

Como mencionado, a estreia em sala de aula lecionando direito constitucional ocorreu em 1981, a convite do professor titular da época. Após algumas aulas, porém, o professor titular informou que havia sido procurado pelos "órgãos de informação" da ditadura militar, que haviam classificado a presença do autor em sala como um "inconveniente", devido à sua militância no movimento estudantil em oposição ao regime. Quando a carreira acadêmica parecia chegar ao fim antes mesmo de começar, o professor titular de direito internacional privado, Jacob Dolinger, indignou-se com o ocorrido. Segundo descreve o livro, Dolinger era "judeu ortodoxo e homem conservador em matéria de política e de costumes (embora não sempre, nem para tudo). Tínhamos visões bastante diferentes acerca de muitos temas". Apesar disso, o Professor se dispôs a ajudá-lo. Na sequência, conseguiu o apoio, dentre outros, do professor Oscar Dias Corrêa, que havia sido diretor da faculdade ao tempo em que o autor era do movimento estudantil, quando os dois tiveram discussões acaloradas. Corrêa fora político da UDN, tornara-se Ministro do STF e era bem relacionado no regime militar. Não obstante, também se dispôs a ajudar. Em tempos de polarização, o relato é um lembrete valioso de que o que faz a beleza de uma democracia é a possibilidade de convivência harmoniosa e solidária de pessoas que pensam de maneira diferente. 

A segunda: o dia começa a nascer quando a noite é mais profunda. Mas a claridade não é imediata e é preciso ter olhos (e paciência) de ver 

Era agosto de 2012 quando veio a notícia do diagnóstico de adenocarcinoma no esôfago, grau III – um tumor maligno, que lhe daria apenas mais um ano de vida, talvez menos. A informação foi dada aos familiares com a serenidade de quem tem no coração a certeza de que, se preciso fosse, começaria tudo outra vez. Mas também com a firmeza de quem enxergava na doença uma oportunidade de olhar para as portas que só abrem por dentro, dentre elas as do autoconhecimento e da fé. De repensar convicções e se reinventar espiritualmente. Em julho de 2013, – quando supostamente as cortinas se fechariam –, estávamos na posse do autor como Ministro do Supremo Tribunal Federal, com resposta completa ao tratamento, conduzido pelos brilhantes médicos Paulo Hoff e Gustavo Fernandes. Aliás, o resultado foi uma surpresa até para eles. O Dr. Paulo Hoff chegou a afirmar que "se não tivesse sido eu a fazer o diagnóstico, diria que tinha havido erro". O dia começava a nascer.

A terceira: apesar das aflições e frustrações do nosso tempo, as conquistas dessas décadas de democracia foram muito expressivas

Reconhecer que o país enfrenta um momento difícil, com polarização e ameaças políticas, recessão, desemprego e desencontros éticos, não deve equivaler a esquecer que, desde meados de 1980, o Brasil derrotou a ditadura militar, a hiperinflação e teve resultados relevantes no combate à pobreza extrema. Não é preciso ser pessimista para ser realista. É possível olhar e reconhecer todos os nossos problemas e dificuldades, sem perder a fé nas instituições democráticas e na crença de que o Brasil ainda será um país melhor e maior. Ao contrário do que creem alguns, o otimismo não é equivalente ao negacionismo. O otimismo consciente exerce um papel fundamental de fortalecimento de instituições. Se as pessoas acham que tudo está perdido, há pouco que impeça o vale tudo e o salve-se quem puder. Sem descurar do momento difícil que o país e o mundo atravessam, reconhecendo o avanço do autoritarismo, do fanatismo religioso, do tribalismo e da intolerância política, o autor ainda assim fortalece a percepção de que, com o olhar atento e o empenho da sociedade civil e de agentes públicos comprometidos, há mecanismos capazes de manter de pé a democracia brasileira.

II. O mundo

Na parte dois do livro, o autor contempla os avanços dos valores iluministas – razão, ciência, humanismo e progresso – ao longo do século XX. Narrando inovações importantes nos costumes e na cultura – desde o desenvolvimento da pílula anticoncepcional à conquista de direitos para o grupo LGBT – e na ciência e tecnologia – incluindo o desenvolvimento e difusão de computadores pessoais e da internet – o autor constata: a humanidade iniciou o século XXI em condições melhores do que jamais esteve.

Olhando para o presente, comenta também três dificuldades da vida contemporânea em todos os continentes: (i) a revolução tecnológica; (ii) a crise da democracia; e (iii) a questão ambiental. Ao fazê-lo, contextualiza os novos desafios e riscos e aponta alguns vetores para enfrentá-los. E, comparando experiências de diferentes países, analisa o papel fundamental de instituições políticas e econômicas na definição do sucesso ou fracasso de nações. Num sopro de esperança para o Brasil e o mundo, explica que autores renomados apontam que são as conjunturas críticas que colocam instituições em xeque que abrem caminho para viradas históricas. É hora de se mobilizar para que o Brasil aproveite a oportunidade.

III. O Brasil

Por fim, e talvez mais importante, na terceira parte do livro o autor percorre as questões mais relevantes do Brasil atual, enfrentando alguns itens dentro de quatro "macro" temas: política, costumes, direito e economia.

No capítulo dedicado à política, o autor identifica na corrupção a raiz do atraso brasileiro, narrando as suas origens remotas e as suas causas imediatas. Narra, também, o avanço das tentativas de combate à corrupção e a resposta dos envolvidos, que ele chama de "pacto oligárquico". E conclui, com a didática que lhe é característica: corrupção é crime violento e mata. Na fila do SUS, na falta de leitos, na falta de medicamentos. Se me permitem acrescentar: em plena pandemia, no desvio de recursos de hospitais de campanha e no desrespeito à fila de vacinação. Mata em estradas esburacadas, que causam acidentes. E destrói vidas que não são educadas por falta de escola e de recursos.

Aliás, quanto a esse último ponto, o autor também analisa a crise da educação básica no Brasil, identificando os três principais problemas – não alfabetização na idade certa, evasão escolar no ensino médio e déficit de aprendizado – e apresentando algumas propostas de solução. Ao concluir, denuncia: "quem acha que o problema da educacão no Brasil é Escola sem Partido, identidade de gênero ou saber se 1964 foi golpe ou não, está assustado com a assombração errada". Na epígrafe desse capítulo consta frase de Darcy Ribeiro, que diz: "A crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto". Tentar desvirtuar os verdadeiros fantasmas faz parte desse projeto. É preciso retirar a pauta da educação da disputa ideológica e devolvê-la ao campo da ciência.

No capítulo dedicado aos costumes, o autor analisa as discussões sobre a legalização do aborto e das uniões homoafetivas, o fracasso da política de drogas brasileira e a existência de um racismo estrutural no país, que justifica a adoção de ações afirmativas para pagar a dívida de um passado (e um presente) desigual. É nessa parte do livro que está uma de suas passagens mais memoráveis:

"Há uma frase feliz de Eleanor Roosevelt, em que ela diz: Ninguém pode fazer você se sentir inferior sem a sua ajuda." Porém, se as pessoas, por circunstâncias da vida, frequentam os piores colégios, desempenham as piores tarefas e moram em locais contaminados pelo crime, a autoestima baixa e a capacidade de resisteência diminui. Por isso estamos tratando aqui do empoderamento de pessoas para que, independentemente do que outros, pervertidamente, pensem ou façam, elas não aceitem o preconceito. E levem a vida entrando pela porta da frente".

No capítulo dedicado ao direito, o autor discute o papel do direito penal, o lugar da religião no mundo contemporâneo, o papel do Supremo Tribunal Federal entre o direito e a política, as causas da judicialização da vida no Brasil e quinze decisões históricas do Supremo Tribunal Federal. No capítulo dedicado à economia, discute as múltiplas dimensões da crise da COVID-19, indica mudanças urgentes no mundo pós-pandemia e discute a necessidade de que o país promova justiça social e desenvolvimento sustentável, passando obrigatoriamente por uma agenda que inclui reforma tributária, habitação popular e saneamento básico.

IV. Conclusão

Ninguém é unanimidade nessa vida. Como mencionado no começo dessa resenha, cada pessoa enxerga o mundo pelo seu próprio cristal. Em tempos de campanhas de desinformação e negacionismo, é importante relembrar que cristais não distorcem fatos. Mas eles acrescentam alguma dose de subjetividade na identificação de problemas e na elaboração de soluções. Justamente por isso, é possível discordar de muitas ideias apresentadas no livro. Essa é a beleza da democracia: cada um tem direito à sua própria opinião. Mas não aos seus próprios fatos.

O livro é um ótimo ponto de partida para entender o cristal pelo qual a pessoa por trás dos votos transmitidos na TV Justiça enxerga o Brasil e o mundo. E, assim, aprofundar e aprimorar o diálogo inclusive – e principalmente – com aqueles que tenham visões de mundo diferentes.

Luna van Brussel Barroso é advogada no escritório Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça & Associados. Concluiu a graduação em Direito na FGV, no Rio de Janeiro e, atualmente, é mestranda na linha de Direito Público na UERJ (2019-2021). Realizou intercâmbio para a faculdade de Harvard, nos Estados Unidos, onde cursou as matérias de Direito Constitucional, Contratos e Análise Econômica do Direito.

 

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