Migalhas Quentes

Justiça obriga mercado do grupo Carrefour a punir funcionário que praticar racismo

A empresa também deve instaurar uma efetiva política de combate à discriminação em suas unidades, entre outras providências.

15/12/2020

O supermercado Atacadão S.A., que pertence ao Grupo Carrefour Brasil, foi intimado a adotar medidas efetivas para combater práticas discriminatórias referentes à intolerância religiosa e ao racismo contra seus empregados em estabelecimentos comerciais de sua propriedade. 

O juiz do Trabalho José Dantas Diniz Neto, do Rio de Janeiro, deferiu parcialmente uma liminar, com alcance nacional, determinando que a empresa aplique sanções disciplinares contra atos que caracterizem preconceito e intolerância no ambiente de trabalho, além de promover uma campanha de conscientização, entre outras providências.

(Imagem: Unsplash)

Ação civil pública

A decisão foi proferida em uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro, movida com base em denúncias de empregados, como o de uma ex-auxiliar de cozinha. A profissional, que trabalhava na filial do supermercado em Santa Cruz, zona oeste do município do Rio, relatou ter sido vítima de racismo por parte de um colega, que costumava escrever no avental a frase “só branco usa”, além de ter ouvido outras expressões como “jamais casaria com uma preta”, “ainda bem que você é branca, pois se fosse negra não ia gostar” e “preto só entra na igreja para chamar branco de irmão”. Cientes de que a empregada é espírita, alguns colegas batiam panelas simulando o som de tambores, em referência às práticas de religiões de matriz africana.

A defesa do supermercado asseverou ser comprometida com os “mais elevados padrões éticos de conduta”, além de possuir uma política permanente de combate à discriminação, efetivada por meio de palestras e treinamentos ministrados a seus empregados com base no Código de Ética e Política de Diversidade. Seus representantes também afirmaram a existência de um canal de denúncias na empresa, chamado “Disk Ética”, e que sindicâncias são regularmente instauradas para apuração dos fatos denunciados.

Quanto ao caso específico dos autos, envolvendo a ex-auxiliar de cozinha, o supermercado declarou que os fatos não foram repassados à administração pelo “Disk Ética”, de modo que só tomou conhecimento quando o estabelecimento foi notificado para participar de audiência virtual no inquérito civil público. A partir daí, instaurou sindicância de apuração, que culminou com a demissão do trabalhador acusado.  Por fim, seus representantes afirmaram se tratar de um caso isolado.

Veracidade das denúncias

Ao analisar o caso, o juiz José Dantas Diniz Neto verificou que depoimentos de testemunhas colhidos em sindicância comprovaram o contrário do alegado pelo supermercado. Os relatos atestaram a veracidade das denúncias e a frequência das condutas racistas perpetradas contra a profissional, que chegou a procurar o setor de recursos humanos da empresa sem que, no entanto, fossem tomadas as providências necessárias.

O magistrado também observou que, das penalidades aplicadas pelo supermercado a seus empregados no período, nenhuma guardava relação com o caso, o que corroborou a tese de negligência da chefia do estabelecimento com os atos discriminatórios.

“E mais, considerado o período de prestação dos serviços dos depoentes, não estamos diante de um caso isolado, uma vez que as práticas perduraram no tempo e sob o beneplácito da chefia – conivente com a prática dos crimes”, declarou o magistrado, ressaltando que "o empregador detém o dever de fiscalização da prestação de serviços e responde objetivamente pelos danos extrapatrimoniais suportados pelo empregado no local de trabalho", fazendo referência ao artigo 932 do Código Civil.

Segundo o juiz, em que pese os trabalhadores serem notificados do Código de Ética da empresa no momento da admissão, os depoimentos comprovaram a ineficácia das medidas de conscientização, bem como a ausência de fiscalização por parte dos gestores. O magistrado lembrou que as liberdades econômicas e de livre iniciativa devem obediência a princípios como o da dignidade da pessoa humana e valor social do trabalho, estabelecidos nos incisos III e IV do artigo primeiro da Constituição Federal.

“A Lei Maior não apenas protegeu as pessoas negras contra atos discriminatórios, ao tipificar sua prática como crime inafiançável e imprescritível (art. 5°, XLII), como também estabeleceu que o repúdio ao racismo é um princípio que rege a República Federativa do Brasil, em suas relações internacionais (art. 4°, VIII). No mesmo sentido ventila a proteção constitucional dirigida à liberdade de crença religiosa e à não discriminação por fatores injustos e desqualificantes (art. 5°, caput e inciso XXIII, da CFRB)”, lembrou o juiz.

O magistrado ressaltou a “completa inversão de valores que orienta a política de recursos humanos da empresa”, destacando, no que tange à abrangência territorial das ilegalidades, que não apenas os prestadores de serviços do município do Rio de Janeiro foram vítimas do descaso gerencial, usando como exemplo “notícias que comprovam a ocorrência de agressões contra trabalhadores negros em diferentes regiões do Brasil”.  

Assim, convencido da prática de racismo e intolerância religiosa no interior da empresa, o juiz proferiu liminar determinando que a rede de supermercados abstenha-se de tolerar qualquer prática discriminatória contra os trabalhadores em face de cor, religião, raça, cultura ou etnia, aplicando, caso elas ocorram, as devidas sanções disciplinares.

O juiz do Trabalho também determinou que a empresa estabeleça, em 90 dias, meio efetivo para recebimento e apuração das denúncias, garantindo o sigilo dos denunciantes. A liminar determina também que, no prazo de 90 dias, a empresa deve instaurar uma efetiva política de combate à discriminação em suas unidades, entre outras providências. 

“O descumprimento das obrigações acima importará no pagamento de multa no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais) por cada obrigação descumprida, acrescida de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) por cada trabalhador vitimado”, concluiu o magistrado, decidindo ainda que, por se tratar de uma situação de dano suprarregional, a decisão produz efeitos erga omnes e em todo o território nacional.

Confira a decisão.

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