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Ministro Barroso disserta sobre combate à corrupção e refundação do Brasil

Artigo é um prefácio escrito para o livro "Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas", organizado pela professora Maria Cristina Pinotti.

1/4/2019

O combate à corrupção, mudança de paradigmas e a refundação do Brasil. São estes os motes tratados pelo ministro Luís Roberto Barroso em prefácio escrito para o livro "Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas", organizado pela professora Maria Cristina Pinotti, que fala do impacto da corrupção sobre a economia e traz esclarecedora comparação com processo ocorrido na Itália, com a operação Mãos Limpas.

O livro tem artigos da professora, de dois magistrados italianos da Operação Mãos Limpas - Gherardo Colombo e Piercamillo Davigo -, do ministro da Justiça Sergio Moro, e do procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol.

Em seu texto, o ministro Barroso observa que o Brasil tem vivido uma tempestade política, econômica e ética que mudou a percepção da sociedade em relação a muitas questões, notadamente aquelas associadas ao cumprimento da lei e ao combate à corrupção. Para ele, por outro lado, podemos estar vivendo um recomeço.

"Minha crença num momento de refundação do país não guarda relação com as recentes eleições ou este ou aquele governo — é independente de ideologias. Baseia-se, ao contrário, nas mudanças ocorridas na sociedade civil, que deixou de aceitar o inaceitável e desenvolveu uma imensa demanda por integridade, idealismo e patriotismo."

Assista ao vídeo do ministro em evento ocorrido na sede do jornal O Estado de S. Paulo:

Leia, na íntegra:

PREFÁCIO

Empurrando a história: combate à corrupção, mudança de paradigmas e refundação do Brasil

INTRODUÇÃO

A professora Maria Cristina Pinotti presta, com a organização deste livro, valiosa contribuição à compreensão do fenômeno da corrupção no Brasil. Os textos preciosos aqui reunidos expõem os avanços e recuos no seu enfrentamento judicial e revelam o impacto da corrupção sobre as instituições políticas e sobre o desempenho da economia, além de trazerem uma esclarecedora comparação com processo análogo ocorrido na Itália, com a operação Mãos Limpas. A narrativa é conduzida por textos dos principais protagonistas do processo histórico de enfrentamento da corrupção no Brasil e na Itália, antecedidos de uma rica análise econômica do tema.

Nos últimos tempos, o Brasil tem vivido uma tempestade política, econômica e ética que mudou a percepção da sociedade em relação a muitas questões, inclusive — e notadamente — aquelas associadas ao cumprimento da lei e ao combate à corrupção. De acordo com a Transparência Internacional, o Brasil ficou na 96a posição no Índice de Percepção da Corrupção em 2017, num ranking incluindo 180 países. Para uma das dez maiores economias do mundo, trata-se de uma posição constrangedora. Pior: nas últimas pontuações, o Brasil vem caindo vertiginosamente. De fato, em 2006 ocupava a 79a posição; em 2015, a 69a. É possível, porém, que o aumento da percepção da corrupção não signifique, necessariamente, um aumento no volume dos comportamentos desviantes. Pode ser um sinal de que o país deixou de varrer a sujeira para baixo do tapete e passou a enfrentar com coragem o problema.

Honrado com o convite para prefaciar esta obra, faço algumas reflexões a seguir.

ORIGENS E CAUSAS DA CORRUPÇÃO NO BRASIL

Origens remotas

A corrupção no Brasil tem origens e causas remotas. Aponto sumariamente três. A primeira é o patrimonialismo, decorrente da colonização ibérica, marcada pela má separação entre a esfera pública e a esfera privada. Não havia distinção entre a Fazenda do rei e a Fazenda do reino — o rei era sócio dos colonizadores —, e as obrigações privadas e os deveres públicos se sobrepunham. A segunda causa é a onipresença do Estado, que exerce o controle da política e das atividades econômicas, pela exploração direta ou por mecanismos de financiamento a empresas privadas e de concessão de benefícios. A sociedade torna-se dependente do Estado para quase tudo o que é importante, sejam projetos pessoais, sociais ou empresariais. Cria-se uma cultura de paternalismo e compadrio, acima do mérito e da virtude. O Estado e seus representantes vendem favores e cobram lealdades. A terceira causa é a cultura da desigualdade. As origens aristocráticas e escravocratas formaram uma sociedade na qual existem superiores e inferiores, os que estão sujeitos à lei e os que se consideram acima dela. A elite dos superiores se protege contra o alcance das leis, circunstância que incentiva condutas erradas.

Causas imediatas

A essas origens remotas somam-se duas causas mais imediatas.

A primeira é o sistema político, que produz eleições excessivamente caras, com baixa representatividade dos eleitos em razão do sistema eleitoral proporcional em lista aberta, o que dificulta a governabilidade. Os custos altíssimos das eleições fazem com que seu financiamento esteja por trás de boa parte dos escândalos de corrupção; a baixa representatividade gera uma classe política descolada da sociedade civil; e a governabilidade é comprometida por mais de duas dezenas de partidos políticos que tornam a Presidência da República refém de práticas fisiológicas — quando não desonestas — do Congresso.

Uma segunda causa é a impunidade. O sistema criminal brasileiro, até muito pouco tempo atrás, mantinha uma postura de leniência em relação à criminalidade de colarinho-branco, tanto por deficiência das leis como pela pouca disposição dos juízes em condenar por tais crimes, considerados não violentos e não muito graves. O sistema punitivo brasileiro, historicamente, só foi capaz de punir gente pobre, por delitos violentos ou envolvendo drogas ilícitas. Esse quadro começou a mudar nos últimos tempos, ainda que lentamente. Como assinalado no artigo dos procuradores Deltan Dallagnol e Roberson Pozzobon, “casos criminais contra poderosos dificilmente têm seu mérito analisado. Em geral são anulados por tribunais ou prescrevem”.

O QUADRO ATUAL DA CORRUPÇÃO NO BRASIL

Corrupção estrutural e sistêmica: o pacto oligárquico

É impossível não identificar as dificuldades em superar a corrupção sistêmica como um dos pontos baixos desses últimos trinta anos de democracia no Brasil. O fenômeno vem em processo acumulativo de longa data e se disseminou, nos últimos tempos, em níveis espantosos e endêmicos. Não foram falhas pontuais, individuais. Foi um fenômeno generalizado, sistêmico e plural, que envolveu empresas estatais e privadas, agentes públicos e privados, partidos políticos, membros do Executivo e do Legislativo. Havia esquemas profissionais de arrecadação e distribuição de quantias desviadas mediante superfaturamento e outros métodos. Esse tornou-se o modo natural de fazer negócios e política no país. A corrupção é fruto de um pacto oligárquico celebrado entre boa parte da classe política, do empresariado e da burocracia governamental para saquear o Estado brasileiro.

Um instantâneo do nosso momento atual revela a existência de ações penais em curso ou condenações por corrupção envolvendo: o atual presidente da República, dois de seus antecessores e um ex-candidato ao cargo; dois ex-chefes da Casa Civil; (iii) três ex-presidentes da Câmara dos Deputados; um ex-presidente do Senado Federal; um ex-secretário de Governo da Presidência da República; e diversos ex-governadores de estados. Alguém poderia supor que haja uma conspiração geral contra tudo e contra todos. O problema com essa versão são os fatos: os áudios, os vídeos, as malas de dinheiro, assim como as provas que saltam de cada compartimento que se abra.

A reação da sociedade: mudanças de atitude, na legislação e na jurisprudência

Se há uma novidade no Brasil, é uma sociedade civil que deixou de aceitar o inaceitável. A reação da cidadania impulsionou mudanças importantes de atitude que alcançaram as instituições, a legislação e a jurisprudência. A primeira delas foi o julgamento da Ação Penal 470, conhecida como o caso do “mensalão”, marco emblemático da rejeição social a práticas promíscuas entre o setor privado e o poder público, historicamente presentes na vida nacional. O Supremo Tribunal Federal foi capaz de interpretar esse sentimento e, num ponto fora da curva — e que veio a mudar a curva —, decretou a condenação de mais de duas dezenas de pessoas, entre empresários, políticos e servidores públicos, por delitos como corrupção ativa e passiva, peculato, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e gestão fraudulenta de instituição financeira.

Na sequência, a magistratura, o Ministério Público e a Polícia Federal conduziram a chamada operação Lava Jato, o mais extenso e profundo processo de enfrentamento da corrupção na história do país — e talvez do mundo. Utilizando técnicas de investigação modernas, processamento de big data e colaborações premiadas, a operação desvendou um imenso esquema de propinas, superfaturamento e desvio de recursos da Petrobras. Em seu artigo para esta obra, o ex-juiz Sergio Moro registra que até junho de 2018 haviam sido propostas 76 ações penais contra 319 pessoas, com 134 condenados por crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e associação criminosa. Em meados de 2017, já havia em torno de 140 condenações em primeiro grau de jurisdição. A verdade é que poucos países no mundo tiveram a capacidade de abrir suas entranhas e expor desmandos atávicos como o Brasil.

Ao longo dos anos — de forma lenta, porém contínua —, também houve mudanças importantes na legislação destinada a enfrentar a criminalidade de colarinho-branco, com a aprovação do agravamento das penas pelo crime de corrupção, da lei de lavagem de dinheiro, da lei que define organização criminosa e que aperfeiçoou a colaboração premiada e da Lei Anticorrupção. Na mesma onda de combate a esse tipo de improbidade, sobreveio a Lei Complementar no 135/2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, que impede de concorrer a cargos eletivos quem foi condenado por órgão colegiado por crimes ou infrações graves  — uma medida importante em favor da moralidade administrativa e da decência política. Muita gente é contra essas inovações. Paciência. Nós não somos atrasados por acaso. Somos atrasados porque o atraso é bem defendido.

Por fim, houve alterações ou movimentos significativos trazidos pela jurisprudência do próprio Supremo. A mais importante delas, sem dúvida, foi a possibilidade de execução de decisões penais condenatórias após o julgamento em segundo grau, fechando a porta pela qual processos criminais se eternizavam até a prescrição. Também merece destaque a declaração de inconstitucionalidade do modelo de financiamento eleitoral por empresas, que produziu as práticas mafiosas desveladas pela Lava Jato. Também pode ser inserida nessa tendência de maior seriedade penal a validação das investigações conduzidas pelo Ministério Público. Cabe destacar, ainda, a decisão que reduziu drasticamente o alcance do foro privilegiado, limitando-o aos atos praticados no cargo e em razão de seu exercício.

A reação às mudanças

Há uma imensa resistência contra essas transformações por parte dos membros do pacto oligárquico e seus defensores. Na verdade, o combate à corrupção no Brasil, embora tenha avançado muito, ainda enfrenta três obstáculos poderosos: (i) parte do pensamento progressista acredita que os fins justificam os meios e que a corrupção não é mais do que uma nota de rodapé da história. Estão errados. Ela drena os recursos que deveriam contribuir para a distribuição de riqueza e bem-estar e cria uma relação pervertida entre a cidadania e o Estado, bem como gera um ambiente geral de desconfiança entre as pessoas; (ii) parte do pensamento conservador brasileiro milita no tropicalismo equívoco de que corrupção ruim é a dos adversários, dos que não servem aos seus interesses imediatos. E, assim, dão suporte a elites extrativistas que nos atrasam na história, nos retêm como um país de renda média e impedem a prosperidade para todos; e, por fim, (iii) os próprios corruptos, que se dividem em dois grupos: os que não querem ser punidos pelos muitos malfeitos perpetrados ao longo dos anos e um lote pior, que é o dos que não querem se tornar honestos daqui nem para a frente.

O PARALELO COM A ITÁLIA

Os textos de Piercamillo Davigo e Gherardo Colombo ajudam a estabelecer uma comparação com o que se passou na Itália. Lá, a reação oligárquica da corrupção contra a operação Mãos Limpas (levada a efeito entre 1992 e 1996) teve sucesso. A classe política, para preservar a si e aos corruptos, mudou a legislação a fim de proteger os acusados de corrupção, inclusive para impedir a prisão preventiva; reduziu os prazos de prescrição; aliciou uma imprensa pouco independente e procurou demonizar o Judiciário. E tudo acabou na ascensão de Silvio Berlusconi. Não foi o combate à corrupção, mas o não saneamento verdadeiro das instituições que impediu que a Itália se livrasse do problema.

Não por acaso, por não ter aprimorado suas instituições, a Itália é o país que apresenta o pior desempenho econômico e os mais elevados índices de corrupção entre as nações desenvolvidas. Como expõe em seu texto a professora Maria Cristina Pinotti, entre 2005 e o segundo trimestre de 2018 o pib da Itália caiu 1,2%, enquanto o de Portugal cresceu 4,9%, o da Espanha, 13,7%, e o da Alemanha, 22,8%. Tenho fé que isso não acontecerá no Brasil, por pelo menos três razões: uma sociedade mais consciente e mobilizada; uma imprensa livre e plural; e um Judiciário independente (apesar de ainda ser extremamente lento e ineficiente) e, sobretudo nas instâncias ordinárias, livre de laços políticos.

OS CUSTOS DA CORRUPÇÃO

A corrupção tem custos financeiros, sociais e morais. Não é fácil estimar as perdas monetárias com a corrupção. Trata-se de um tipo de crime difícil de rastrear, porque subornos e propinas não vêm a público facilmente nem são lançados na contabilidade oficial. Nada obstante, noticiou-se que apenas na Petrobras e demais empresas estatais investigadas na Lava Jato — isto é, em uma única operação — os pagamentos de propinas chegaram a 20 bilhões de reais. No balanço da empresa de 2014, publicado com atraso em 2015, como assinalado no artigo de Sergio Moro, foram registradas perdas de 6 bilhões de reais, equivalentes, à época, a 2 bilhões de dólares. No início de 2018, a Petrobras fez acordo para o pagamento de cerca de 3 bilhões de dólares em Nova York em class action movida por investidores americanos, e de 853 milhões de dólares com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Os custos sociais também são elevadíssimos. A corrupção compromete a qualidade dos serviços públicos em áreas de grande relevância, como saúde, educação, segurança pública, estradas, transporte urbano etc. Da mesma forma, faz com que decisões relevantes acabem sendo tomadas com motivações e fins errados. Nos últimos anos, no rastro dos escândalos de corrupção, o pib brasileiro caiu mais de 20%.

O pior, todavia, é provavelmente o custo moral, com a criação de uma cultura de desonestidade e esperteza que contamina a sociedade e dá incentivos errados aos cidadãos. Nesse ponto há uma visão equivocada na matéria, que pretende fazer uma distinção quando o dinheiro da corrupção vai para o bolso do agente público ou para uma campanha política. O problema, no entanto, é que o mais grave nesse contexto não é para onde o dinheiro vai: é de onde ele vem, o que se faz para obtê-lo. Não é difícil ilustrar que condutas são essas: superfaturam-se contratos; cobram-se propinas em empréstimos públicos; vendem-se benefícios fiscais em medidas legislativas; cobra-se pedágio de toda e qualquer pessoa que queira fazer negócio no Brasil. Para mudar essas práticas, não há como ser condescendente com elas.

A CORRUPÇÃO É CRIME VIOLENTO, PRATICADO POR GENTE PERIGOSA

É um equívoco supor que a corrupção não seja um crime violento. Corrupção mata. Mata na fila do atendimento pelo Sistema Único de Saúde, na falta de leitos, na escassez de medicamentos. Mata nas estradas sem manutenção adequada. A corrupção destrói vidas que não são educadas adequadamente, em razão da ausência de escolas e de deficiências de estruturas e equipamentos. O fato de o corrupto não ver nos olhos as vítimas que provoca não o torna menos perigoso. A crença de que a corrupção não é um crime grave e violento — e de que os corruptos não são perigosos — nos trouxe até aqui, a esse cenário sombrio em que recessão, corrupção e criminalidade elevadíssima nos atrasam e nos retêm num patamar de renda média, sem conseguirmos furar o cerco.

O que temos é um país com uma faceta feia e desonesta, no qual altos dirigentes ajustam propinas dentro dos palácios de onde deveriam governar com probidade;  governadores transformam a sede de governo em centros de arrecadação e distribuição de dinheiro desviado; parlamentares cobram vantagens indevidas para aprovar desonerações; membros de Comissões Parlamentares de Inquérito achacam pessoas e empresas para não as submeterem a constrangimentos e humilhações públicas, dirigentes de instituições financeiras públicas exigem para si percentuais dos empréstimos que liberam, dirigentes de fundos de pensão de empresas estatais fazem investimentos ruinosos para os seus beneficiários em troca de vantagens indevidas.

É bem de ver que a crítica que se faz no livro, e que é aqui endossada, não envolve punitivismo, jacobinismo ou a crença em vingadores mascarados. Nem Robespierre, nem Savonarola: estamos aqui falando de respeito pleno à Constituição e à legalidade penal. Porém, é preciso derrotar a visão equivocada e difundida de que devido processo legal é o que não termina nunca e que garantismo significa que ninguém nunca é punido por coisa nenhuma, não importa o que tenha feito.

O PAPEL DO DIREITO PENAL E AS CONSEQUÊNCIAS DA IMPUNIDADE

O sistema punitivo está longe de figurar no topo da lista dos instrumentos mais importantes para realizar o ideário constitucional. Não se muda o mundo com a exacerbação do direito penal. A construção de um país fundado em justiça, segurança e igualdade entre todos é mais bem servida por categorias como educação de qualidade desde a pré-escola, para permitir que as pessoas tenham igualdade de oportunidades e possam fazer escolhas esclarecidas na vida; distribuição adequada de riquezas, poder e bem-estar, para que os cidadãos possam ser verdadeiramente livres e iguais, e se sentirem integrantes de uma comunidade política que as trata com respeito e consideração; e debate público democrático e de qualidade, no qual a livre circulação de ideias e de opiniões permita a busca das melhores soluções para as necessidades e angústias da coletividade.

A verdade, porém, é que no atual estágio da condição humana o bem nem sempre consegue se impor por si próprio. A ética e o ideal de vida boa precisam também de um impulso externo. Entre nós, no entanto, um direito penal seletivo e absolutamente ineficiente em relação à criminalidade de colarinho-branco criou um país de ricos delinquentes. O país da fraude em licitações, da corrupção ativa, da corrupção passiva, do peculato, da lavagem de dinheiro sujo. O sistema punitivo deixou de cumprir o seu papel principal: o de funcionar como prevenção geral, com o temor da punição servindo para inibir os comportamentos criminosos. As pessoas tomam decisões na vida com base em incentivos e riscos. Se há incentivos para a conduta ilícita — como o ganho fácil e farto — e não há grandes riscos de punição, a sociedade experimenta índices elevados de criminalidade. Conforme escreveu a professora Maria Cristina Pinotti em seu texto, por ser a corrupção um crime racional, “é indispensável alterar a relação entre custo e benefício dessa prática, tanto para o corruptor como para o corrupto”.

CONCLUSÃO: UM NOVO PARADIGMA

A corrupção favorece os piores. É a prevalência dos desonestos sobre os íntegros. Esse modelo não se sustenta indefinidamente. Só se o mal pudesse mais do que o bem. Mas, se fosse assim, nada valeria a pena. A maneira desassombrada como a sociedade brasileira — e parte das suas instituições — vem enfrentando a corrupção e a impunidade, dentro do estado de direito, produzirá, logo ali na esquina do tempo, uma transformação cultural importante: a revalorização dos bons em lugar dos espertos. Quem tiver talento para produzir uma inovação relevante, ou for capaz de baixar custos de uma obra pública, será mais importante do que quem conhece a autoridade administrativa que paga qualquer preço, desde que receba uma vantagem por fora.* Essa talvez seja uma das maiores conquistas que poderá vir de um novo padrão de decência e seriedade.

No seu aclamado livro Por que as nações fracassam, Daron Acemoglu e James A. Robinson procuram identificar as razões que levam países à prosperidade ou à pobreza. De acordo com os autores, essas razões não se encontram — ao menos em sua parcela mais relevante — na geografia, na cultura ou na ignorância de qual é a coisa certa a fazer. Elas residem, acima de tudo, na existência ou não de instituições econômicas e políticas verdadeiramente inclusivas. É possível — apenas possível — que a tempestade ética, política e econômica que atingiu o Brasil nos últimos anos represente uma dessas conjunturas críticas que permitirão a reconstrução de muitas instituições e que ajudarão a empurrar para a margem da história as elites extrativistas e autorreferentes que se apropriaram do Estado brasileiro.

Este livro, coordenado com dedicação e talento pela professora Maria Cristina Pinotti, congrega personalidades emblemáticas que lutaram o bom combate e não perderam a fé. Gente que foi capaz de inspirar e mobilizar a cidadania para o advento de um novo tempo. E, de fato, penso que podemos estar vivendo um recomeço, alicerçado sobre outras bases, tanto na ética pública como na esfera privada. Minha crença num momento de refundação do país não guarda relação com as recentes eleições ou este ou aquele governo — é independente de ideologias. Baseia-se, ao contrário, nas mudanças ocorridas na sociedade civil, que deixou de aceitar o inaceitável e desenvolveu uma imensa demanda por integridade, idealismo e patriotismo. E essa é a energia que muda paradigmas e empurra a história. Assim seja.

Brasília, 12 de dezembro de 2018

LUÍS ROBERTO BARROSO

  Ministro do Supremo Tribunal Federal. É professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (uerj), mestre pela Universidade de Yale e Senior Fellow na Harvard Kennedy School



* Sobre esse ponto, denunciando o círculo vicioso que premia os piores, ver Míriam Leitão, História do Futuro: O horizonte do Brasil no século XXI (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015), pp. 177-8.

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