Em 1989, Michel Temer escreveu um artigo para O Estado de S. Paulo (veja abaixo artigo na íntegra) no qual discorreu sobre a importância da produção de provas sólidas na fase de investigação criminal para o combate ao crime organizado. No texto, Temer ressaltou a problemática da impunidade no país e lamentou o fato de que os envolvidos em escândalos muitas vezes são absolvidos em virtude das provas mal construídas quando se chega ao Judiciário.
À época, o então deputado Federal e professor de Direito Constitucional da PUC/SP elucidou no artigo muitas maneiras de se fortalecer a construção de provas durante a investigação, enfatizando, dentre elas, a interceptação telefônica mediante ordem judicial.
Coisas da vida
Anos mais tarde, em 2017, como presidente da República, Temer passou a usar telefone protegido por criptografia após ter conversa interceptada por ordem judicial da PF com o ex-deputado Rocha Loures. Nesta ocasião o presidente foi interceptado indiretamente, já que o alvo da ação era Loures e não Temer.
Em julho do mesmo ano, um dispositivo chamado "misturador de voz" foi instalado no gabinete presidencial. A ordem veio pouco tempo depois do escândalo da gravação feita pelo empresário Joesley Batista, na qual o presidente deu aval a uma operação que visava "comprar o silêncio", com mesadas, do deputado cassado Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara, preso no âmbito da Lava Jato. O misturador de voz dificulta a compreensão de áudios captados por aparelhos eletrônicos.
As medidas adotadas pelo presidente não dificultam apenas a compreensão de conversas telefônicas e áudios captados por aparelhos eletrônicos. Dificultam, na verdade, o que outrora Temer defendeu há 29 anos: a construção de provas sólidas para o combate à impunidade. Fica a dúvida: o que se passa no gabinete do Excelentíssimo Senhor Presidente da República?
(Fonte: Folha de S. Paulo)
Leia abaixo o artigo completo.
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A RESPEITO DO CRIME ORGANIZADO
Michel Temer
Impunidade. Eis a palavra que tem atormentado os brasileiros probos e trabalhadores. A impunidade leva à inversão do ditado popular segundo o qual o crime não compensa. Já começa a compensar dado que os responsáveis por ele, nos mais variáveis escalões delituosos, não sofrem a adequada punição.
O Congresso Nacional tem se preocupado com este fato. A Comissão de Constituição, Justiça e Redação decidiu, há três meses, criar grupo de trabalho destinado a aperfeiçoar a legislação penal de combate ao crime organizado. Reunimos juízes, promotores, delegados da Polícia Federal e da Polícia Civil, advogados e procuradores de Estado. Da discussão resultou uma primeira conclusão: a de que o bom combate ao crime organizado começa pela produção de prova sólida na fase da investigação criminal. De fato. Quantas e quantas vezes estouram grandes escândalos financeiros, quadrilhas são desbaratadas. Mas, ao final, os envolvidos são absolvidos na fase judicial. Isto porque a prova mal construída durante inquérito policial é destruída, com facilidade, no Judiciário.
Deve-se, portanto, fortalecer a prova na investigação policial. Para tanto, impõe-se conferir à policia meios eficazes de atuação. Evitar sequestros, impedir ou reduzir o tráfico de entorpecentes, dificultar a ação dos que usam “colarinho branco” exige se saiba que tais crimes serão punidos. E tudo se inicia com investigação.
Em que a nova Constituição facilita essa atividade? Num ponto fundamental: a possibilidade da interceptação telefônica mediante ordem judicial. Grifo esse ponto: por autorização judicial. Isto porque é tão grave a violação da intimidade das pessoas que só o controle judicial, em casos especiais, pode autorizá-la. A Constituição determinou que a regulamentação se desse por lei para, só então, passar-se a utilizá-las. É o que faz um dos projetos de lei apresentados pelo Grupo de Trabalho, registrando ser admissíveis a interceptação telefônica durante a investigação policial nos casos de crimes de terrorismo, tráfico de entorpecentes, tráfico de mulheres, crimes contra a ordem econômica e financeira, sequestro, roubo seguido de morte. Preservou-se, tendo em vista o direito de defesa, a comunicação entre o suspeito ou acusado e seu defensor/advogado, proibindo-se expressamente tais operações interceptadoras. Por outro lado, o juiz deverá receber relatórios referentes às gravações efetuadas tendo, portanto, o controle delas. Essa matéria, embora polêmica, foi tratada com cautela para preservar o direito à privacidade, compatibilizando-a, porém, com a necessidade urgente e ingente de combater a crimes intoleráveis.
Outros meios operacionais hão de ser fixados para a prevenção e repressão ao crime organizado. Assim, por exemplo, a infiltração policial, as ações controladas e o acesso a documentos e informações discais, bancárias, financeiras e eleitorais. Sempre mediante prévia autorização da autoteorização da autoridade judiciária.
Em que consistem? A infiltração policial significa o ingresso de agente em organização criminosa para investigação do crime organizado em quadrilhas ou bandos.
A ação controlada significa a não interdição policial do transporte, guarda, remessa e entrega de mercadorias, objetos, documentos, valores, substâncias, materiais e equipamentos relacionados com a infração penal. Ou seja: autoriza-se o livre curso daquelas espécies conduzidas por um policial infiltrado até que se consigam todas as informações necessárias para o desbarate de uma quadrilha.
Por fim, o acesso a documentos e informações bancárias, financeiras, eleitorais é o que é. A novidade está em que se poderá, a partir da aprovação do projeto de lei, realiza-la durante a investigação policial.
Convenhamos que tudo isto já vem sendo feito pelos setores policiais sem o adequado respaldo legal, o que tem dificultado essas ações e criado, muitas vezes, seríssimos embaraços para os agentes que assim procedem. Além do que, provas assim obtidas não têm valor judicial.
Todas as hipóteses mencionadas dependem de prévia autorização judicial com a participação do Ministério Público. Evidentemente, autorizações guardadas pelo sigilo, tal como cuidado no projeto. Isto significa entrosamento permanente entre o Judiciário, o Ministério Público e os órgãos policiais encarregados da investigação.
Tudo isto, se aprovados os projetos de lei, deverá resultar na construção segura da prova feita na investigação policial, o que dificulta a sua destruição na fase judicial.
O tema é polêmico e comporta discussões que estarão abertas durante a tramitação dos projetos mencionados. E é importante que a sociedade delas participe. Fazendo-o estarão todos tentando impedir que o crime organizado, no Brasil, assuma as proporções assustadoras conhecidas em outros países da América Latina.
Michel Temer foi secretário de Segurança Pública, é professor de Direito Constitucional na PUC/SP e deputado federal.