O livro "Doutor Machado – o Direito na vida e na obra de Machado de Assis" mostra ao leitor o quanto o Direito invade a vida e a obra do Bruxo do Cosme Velho.
Confira a passagem da obra que trata na novela "O Alienista".
O Alienista
Aqui, para muitos, a obra prima de Machado de Assis.
Personagens bem desenhados, história envolvente, crítica, humor, tudo genialmente engendrado.
O título do primeiro capítulo é a síntese da história: “De como Itaguaí ganhou uma casa de Orates1.”
O médico Simão Bacamarte monta na cidade seu hospício. Inúmeras considerações poderiam ser feitas sobre o conto, e encheriam bem mais que um livro. Infelizmente para nós, é o momento de deixá-las de lado, sob pena de Bacamarte nos meter também na Casa Verde, que era o nome do lugar, pois estaríamos fugindo de nosso objetivo.
Para evitar isso, vejamos diretamente o que há de Direito.
Machado de Assis, melhor dizendo, Simão Bacamarte passou a colocar todos da cidade no hospício. Em cada um ele notava um desvio de comportamento a justificar a classificação como louco.
Itaguaí se revoltou. Passados alguns dias, e como foram escasseando os moradores, já que todos eram internados (quatro quintos da população), o alienista muda totalmente seu pensamento.
Libera todos os internos, e diz ter reformulado os “fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais”.
De fato, se antes achava que os que tivessem algum desequilíbrio deveriam ser internados, agora a convicção era oposta. Ou seja, quem não tivesse nenhum desvio moral, de caráter, enfim, quem não possuísse nenhum desequilíbrio, era louco, e, portanto, deveria ser internado.
Ao saber da novidade, os vereadores do município votaram uma postura2 autorizando Bacamarte a continuar com suas experiências, mas com uma ressalva: nenhum edil poderia ser internado. Era uma lei em causa própria, tão comum naqueles, como nestes tempos.Simão Bacamarte aceita a postura, até mesmo com a restrição. Na lógica do médico, aquela imoralidade era a melhor prova de que a vereança não padecia do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Ou melhor, na lógica do médico machadiano, o desvio ético era a prova de um desequilíbrio, de modo que nem precisam ser internados. Com já se disse, agora os loucos eram os que não tivessem nenhuma falha comportamental.
E, de fato, com os novos fundamentos da insanidade, para pôr alguém na Casa Verde era preciso “um longo exame, um vasto inquérito do passado e do presente”.
“Um dia, conseguiu meter na Casa Verde o juiz de fora; mas procedia com tanto escrúpulo, que o não fez senão depois de estudar minuciosamente todos os seus atos, e interrogar os principais da vila.”
Todavia, migalheiroo mais incrível foi o que aconteceu com um advogado.
Achando-o o mais probo dos homens, o alienista quase o meteu na Casa. Com efeito, reconhecendo no causídico “um tal conjunto de qualidades morais e mentais”, viu que “era perigoso deixá-lo na rua”.
Mas há algo estranho aí, e o leitor certamente não reconhece aqui o típico advogado machadiano. A propósito, em geral Machado de Assis é mordaz com a advocacia.E quem também não achou isso muito certo foi o agente que iria pegar o doutor advogado. De fato, antes de cumprir a ordem para internar o causídico, pediu para fazer uma experiência.
Vejamos como foram testadas as virtudes até então inquebrantáveis de nosso advogado de Itaguaí.
O agente foi ter com um compadre, processado por ter feito um testamento falso, e deu-lhe de conselho que tomasse por advogado o Salustiano; era o nome do então virtuoso advogado, que sem saber estava prestes a trocar a beca pela camisa de força.
O agente ainda aconselha o compadre a confessar tudo ao advogado, “a verdade inteira, seja qual for, e confie-lhe a causa”.
“O homem foi ter com o advogado, confessou ter falsificado o testamento, e acabou pedindo que lhe tomasse a causa. Não se negou o advogado; estudou os papéis, arrazoou longamente, e provou a todas as luzes que o testamento era mais que verdadeiro. A inocência do réu foi solenemente proclamada pelo juiz, e a herança passou-lhe às mãos.”
E finaliza nosso Machado, que “o distinto jurisconsulto deveu a esta experiência a liberdade”. De fato, não poderia ser internado como louco, pois era um advogado normal. Machadianamente normal.
A mesma sorte não teve o agente, que de tão diligente com o caso, não querendo ver injustamente alguém internado, só podia – com tal zelo e dedicação – ser um louco. Completamente louco. E por isso foi prontamente recolhido. Mas, é preciso dizer, Simão lhe deu, “todavia, um dos melhores cubículos”.
Vê-se que é bem o momento de parar por aqui, sob pena de daqui a pouco Bacamarte querer levar você, migalheiro.De fato, ele reconhecerá em você virtudes inimagináveis, pois só um possuidor de uma benevolência digna da Casa Verde é capaz de ter chegado lendo até aqui.
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1 Doidos, loucos, malucos.
2 Preceito municipal escrito, que obriga os munícipes a cumprirem certos deveres de ordem pública.