Migalhas Quentes

O Direito em tempos de incertezas, por Marco Aurélio Mello

Confira íntegra da palestra proferida pelo ministro esta semana na Universidade de Coimbra.

10/7/2015

"O Direito, ao fazer prevalecer a segurança jurídica, pode minimizar os riscos modernos das incertezas. Se a Era das Incertezas é um fato, o Direito deve, em proveito dos cidadãos, atuar contra suas consequências indesejadas."


Nesta semana, em seminário na Universidade de Coimbra, o ministro Marco Aurélio Mello, do STF, abordou o Direito em tempos de incertezas, na memorável palestra: “O Direito nos oferece segurança?”. Para ele, o Direito há de oferecer segurança, minimizar os riscos das incertezas, mas disso não se extrai a conclusão de o Direito efetivamente oferecer segurança. "Sem a intermediação dos intérpretes, em especial, das cortes constitucionais, o Direito não consegue alcançar os fins próprios de preservar a liberdade, a justiça e a segurança. Atentem para o papel dos juristas, o efeito das decisões proferidas pelas cortes no que hão de efetivar a segurança jurídica". Confira.

O DIREITO NOS OFERECE SEGURANÇA?

Cumprimentos.


A Universidade de Coimbra é uma das maiores de Portugal. Foi criada em 1º de março de 1.290, pelo Rei Dinis I, conhecido como o “rei poeta”, vindo a ser reconhecida pelo Papa Nicolau IV. Surgiu no século seguinte ao próprio nascimento do Reino de Portugal, em 1.139. Foi fixada definitivamente, em Coimbra, em 1537. É uma das mais antigas do mundo, tendo sido, em 22 de junho de 2013, declarada Patrimônio Mundial pela Unesco.

Sendo pública, organiza-se em oito diferentes faculdades, oferecendo todos os níveis acadêmicos em arquitetura, educação, engenharia, humanas, direito, matemática, medicina, ciências naturais, psicologia, ciências sociais e desporto. Possui, aproximadamente, 20 mil estudantes, muitos estrangeiros.

Com mais de sete séculos de existência, é uma instituição de referência dentro da Europa. Ao longo de toda a história, teve alunos notáveis – poetas, literários, políticos e presidentes da República, como Luís de Camões, José de Anchieta, Manuel da Nóbrega, Bernadino Machado, Antônio José de Almeida, Manuel Teixeira Gomes, Eça de Queirós, Antônio Luís Gomes, Antônio de Oliveira Salazar. E brasileiros inesquecíveis como José Bonifácio, Gregório de Matos, Gonçalves Dias, Cláudio Manuel da Costa.

Particularmente, a Faculdade de Direito, dirigida pelo ilustre Professor Doutor Rui Manuel de Figueiredo Marcos, é constantemente considerada como possuidora do melhor ensino jurídico do país. Celeiro de grandes juristas como Manuel de Andrade, Luís Cabral de Moncada, Antônio Castanheira Neves, Carlos Alberto da Mota Pinto, Jorge de Figueiredo Dias, Antônio de Almeida Santos e o estimado Professor José Joaquim Gomes Canotilho, Professor Jubilado da Instituição, o Mestre de tantos mestres, a quem presto homenagem.

Muitos brasileiros estudaram e estudam na Universidade de Coimbra, particularmente, nos cursos de mestrado, doutorado e pós-doutorado. O prestígio da Universidade, junto aos brasileiros, é decorrência do perfil inexcedível do Professor Catedrático de Direito Constitucional Canotilho, no que influenciou o pensamento constitucional brasileiro.

Duas das principais obras do Mestre, "Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador" e "Direito Constitucional e Teoria da Constituição", estão entre as mais consultadas e citadas por estudiosos, juristas e juízes brasileiros, inclusive, ministros do Supremo Tribunal Federal. A “Constituição Dirigente”, escrita há mais de trinta anos, é um dos livros de maior prestígio entre os constitucionalistas brasileiros. Despertou o interesse de discutir a aplicabilidade e a efetividade das normas constitucionais, notadamente quanto aos direitos sociais, e a vinculação do legislador a essas normas. Depois da difusão da obra, nunca mais se questionou a possibilidade e a necessidade de haver o controle judicial da omissão legislativa. Nunca mais se recusou articulação sobre a existência de omissões legislativas inconstitucionais. Sem exagero, pode-se dizer que "Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador" ajudou os juristas brasileiros a compreenderem melhor a Constituição de 1988, inspirada, em grande parte, na portuguesa, e as promessas emancipatórias, de liberdade e igualdade, do constituinte.

O manual do Professor Canotilho, “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, tornou-se uma bíblia para os brasileiros, não pelo tamanho, e sim pela quantidade e qualidade das lições a respeito da teoria da constituição, separação de poderes, princípios estruturantes, direitos fundamentais, jurisdição constitucional e técnicas de decisão e métodos de interpretação como a proporcionalidade, a interpretação conforme a Constituição, inclusive quando envolvidos conflitos entre normas constitucionais.

Receba, Professor Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, o reconhecimento dos artífices do Direito, por contribuição profícua ao aprimoramento, em especial dos brasileiros que personifico nesta fala. A atualidade faz justiça a uma vida acadêmica de dedicação exemplar. Seu nome está grafado no panteão dos grandes constitucionalistas.

Passemos às pinceladas sobre o Seminário de Verão deste ano de 2015.

Profícuo mostrou-se pelos temas e participantes, de forma geral, revelando a irmandade insuplantável de portugueses e brasileiros:


DIA 6 DE JULHO

9h30 – Palavras de abertura

Prof. João Gabriel Silva, Reitor da Universidade de Coimbra
Prof. Rui Manuel de Figueiredo Marcos, Diretor da FDUC
Prof. Rubens Lopes da Cruz, Diretor do IPEJA
Dr. César Cunha Campos, Fundação Getúlio Vargas
Prof. Manuel Carlos Lopes Porto, Presidente da AEEC

10h30 - 13h – Justiça: Em nome de que Povo?

Moderador: Prof. Manuel Carlos Lopes Porto
Ministro Ricardo Lewandowski
Prof. José J. Gomes Canotilho
Prof. Joaquim Sousa Ribeiro

14h30 - 18h – Que papel para as diversas Jurisdições?

Moderador: Prof. Antônio Barbosa de Melo

14h30 - 16h
Ministro Paulo Moura Ribeiro
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino
Desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho

Moderador: Desembargador Agostinho Teixeira

16h30 - 18h
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva
Dr. Cezar Eduardo Ziliotto
Dr. Pedro Rebelo de Sousa
Conselheiro José Narciso da Cunha Rodrigues
________________________________________

DIA 7 DE JULHO

9h30 - 13h – O papel da Arbitragem

Moderador: Desembargador Elton Leme

9h30 - 11h
Ministro João Otávio Noronha
Prof. António Pinto Monteiro
Dr. José António Fichtner

Moderador: Procurador Geral Marfan Martins Vieira
11h30 - 13h
Dr. José Miguel Júdice
Ministro Luis Felipe Salomão
Prof. Márcio Guimarães
Prof. João Calvão da Silva

14h30 - 17h30 – Liberdade de circulação e os seus desafios

Moderador: Prof. José Manuel Cardoso da Costa

Prof. Adriano Moreira
Ministro Mauro Campbell
Ministro Raúl Araújo
Ministro Sebastião Reis
Dr. António Vitorino
Prof. Vital Moreira

18h – Conferência de Encerramento:
Ministra Anabela Miranda Rodrigues

Jantar-Conferência:
Ministro Marco Aurélio Mello


O título não poderia ser mais adequado e atual: o Direito em Tempos de Incerteza. Incongruência terminológica no que o Direito tem como objetivo a certeza quanto a acontecimentos e consequências?

Talvez, quem sabe, porque vivenciamos, no mundo, e especialmente no Brasil, tempos estranhos, crises econômica, financeira e política, presentes a perda de parâmetros, o abandono a princípios, a inversão de valores. Em nossa pátria amada, há um elemento complicador: o crescimento demográfico desenfreado nas últimas quatro décadas. Os brasileiros, com longa trajetória percorrida, lembram-se do chavão da Copa do Mundo de 1970: “90 milhões de brasileiros em ação”. Hoje somos cerca de 205 milhões. O crescimento, ante a perda de racionalização no tocante à natalidade, foi, aproximadamente, de 140%, enquanto Portugal, no mesmo período, teve acréscimo de 22% de almas, passando de 8.680.431 para 10.592.527. Dir-se-á que o Brasil é um país continental e precisa ser habitado. A visão é míope e não justifica o desordenado crescimento. Considerem o seguinte contraponto: saúde, habitação, transporte, segurança pública, mercado de trabalho, historicamente desequilibrado, com excesso de mão de obra e escassez de empregos, cresceram nesse diapasão? A resposta é desenganadamente negativa, o que leva à incerteza, a não fechar o próprio sistema, grassando as desigualdades sociais que tanto nos envergonham, as vicissitudes de toda ordem e, então, a insegurança nas vertentes mais ameaçadoras. Após palavras de advertência, após escancarar o quadro, volto às lições do nosso homenageado da noite e de sempre.

Dentre as principais preocupações do Professor Canotilho, sempre esteve a segurança jurídica, a certeza do direito e a proteção da confiança legítima. As lições do Mestre nos fazem pensar o papel do Direito, em particular, do Constitucional e, mais ainda, das Cortes Constitucionais, voltado a oferecer segurança jurídica.

A "Era da Incerteza" é o título de um importante livro do século XX, escrito pelo economista, canadense de nascimento e norte-americano por opção, John Kenneth Galbraith. Apesar de escrito em 1977, para descrever a história das ideias econômicas e consequências políticas e sociais verificadas até então, o título da obra melhor revela o momento vivido pela humanidade neste século XXI.

Ataques terroristas jamais vistos, crises financeiras, dívidas da Zona do Euro, avanços tecnológicos muitas vezes incontroláveis, desaguando na prosperidade do vício (título de livro do francês Daniel Cohen), problemas de sustentabilidade ambiental, fracassos políticos e dificuldades dos países em enfrentar corrupções endêmicas, retrocessos democráticos em algumas partes, são fatos que nos enchem de incertezas quanto ao real progresso da humanidade. O falecido historiador Eric Hobsbawm falou da Era das Revoluções (período entre 1789 e 1848), da Era do Capital (entre 1848 e 1875), da Era do Imperialismo (1875 e 1914) e da Era dos Extremos (século XX, a partir de 1914). Será, então, o século XXI a Era das Incertezas?

Essas inquietudes são caras não só aos historiadores, filósofos, sociólogos e economistas, mas também aos juristas. Cumpre a estes refletir sobre o papel do Direito em minimizar incertezas. O Direito, em especial, o constitucional, não pode ficar indiferente aos acontecimentos políticos, sociais, econômicos e ambientais que marcam esse começo do século. O Direito deve proporcionar segurança jurídica, pilar do Estado Democrático. No Brasil, o constituinte de 1988 preocupou-se com a inteligibilidade do Direito, com a clareza das regras jurídicas; com a confiabilidade do Direito pela estabilidade das normas no tempo, a proibição de retroatividade, a proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, alfim, com a calculabilidade ou a previsibilidade, consagrando o princípio da confiança, da não surpresa, da boa-fé.

As nossas Constituições, portuguesa e brasileira, asseguram a todos o direito à liberdade e à segurança em todas as suas vertentes, cabendo, apenas, torná-las reais, efetivas, concretas, no campo da observância.

A segurança jurídica é a espinha dorsal da sociedade. Sem ela, há sobressaltos, solavancos, intranquilidade maior. O regime democrático a pressupõe. A paz social respalda-se na confiança mútua e, mais do que isso – em proveito de todos, do bem comum –, no respeito a direitos e obrigações estabelecidos, não se mostrando consentâneo com a vida gregária, com o convívio civilizado, ignorar o pacto social, fazendo-o a partir do critério de plantão. De bem-intencionados, de salvadores da pátria, o mundo está cheio.

O Direito, ao fazer prevalecer a segurança jurídica, pode minimizar os riscos modernos das incertezas. Se a Era das Incertezas é um fato, o Direito deve, em proveito dos cidadãos, atuar contra suas consequências indesejadas. Ante tal quadro, eis a pergunta que embasa esta breve exposição: O Direito ainda nos oferece segurança?

Há distinção universal entre o ser e o dever-ser. O Direito há de oferecer segurança, minimizar os riscos das incertezas. Disso não se extrai a conclusão de o Direito efetivamente oferecer segurança. Sem a intermediação dos intérpretes, em especial, das cortes constitucionais, o Direito não consegue alcançar os fins próprios de preservar a liberdade, a justiça e a segurança. Atentem para o papel dos juristas, o efeito das decisões proferidas pelas cortes no que hão de efetivar a segurança jurídica. E o que as cortes constitucionais têm feito em prol dessa efetividade?

Acredito, e menciono não apenas o Supremo Tribunal Federal, que cortes constitucionais devem, podem e fazem ótimo trabalho em favor da segurança jurídica. Muitos são os exemplos. Isso não significa que sempre atuam assim. Existem posturas merecedoras de críticas. Retrato o especial momento vivenciado pelo Supremo brasileiro, considerado o instituto da modulação temporal dos efeitos das decisões de inconstitucionalidade. Tem-se observado o que chamo de "abuso da modulação". Originalmente pensado em favor da segurança jurídica, ante a generalização, transformou-se em fonte de incertezas.

No Brasil, a modulação temporal dos efeitos das decisões de inconstitucionalidade foi estabelecida, inicialmente, no artigo 27 da Lei nº 9.868, de 1999, a versar as ações direta de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade, e veio a ser repetido no artigo 11 da Lei nº 9.882, de 1999, quanto à arguição de descumprimento de preceito fundamental. Em síntese, uma lei ordinária, no bom sentido, acabou por mitigar o império das normas constitucionais. Em Portugal, ao contrário, o instituto da modulação ganhou expressão constitucional. Segundo o artigo 282, 4, da Constituição Portuguesa, "quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito" do que seria produzido pela declaração de nulidade linear do ato inconstitucional. Melhor teria sido, no Brasil, se a técnica também houvesse prevalecido. Vale dizer: a supremacia da Lei das Leis somente é passível de ser afastada pelo poder constituinte originário. De minha parte, presente, até mesmo, o vício formal, continuo convencido de que lei conflitante com a Constituição Federal é lei natimorta, ante vício congênito. A modulação é uma contradição em termos.

A prática estimula a edição de normas inconstitucionais, e esse estímulo ocorre no tocante àqueles que acreditam na morosidade da Justiça e no famoso "jeitinho". Cria algo que, do ponto de vista da "moralidade constitucional", é inaceitável: a figura da "inconstitucionalidade útil". Governantes e legisladores não temem criar "leis inconstitucionais" porque, em certa medida, delas retirarão utilidade. Acaba havendo o estímulo desses malsinados atos e o Supremo, contradizendo a missão maior – a de guardião da legitimidade constitucional. O abuso da modulação transforma o Supremo em Congresso Nacional, vindo a reescrever a Carta da República.

Em última conclusão, a flexibilização da higidez do texto constitucional é um convite ao descumprimento, mormente em um país possuidor de mais de cinco mil e quinhentas casas legislativas, abrangendo Câmaras de Vereadores, Assembleias Legislativas, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. A confiança na estabilidade das normas constitucionais pressupõe a prevalência que a elas é própria. Paga-se um preço por se viver em um Estado Democrático de Direito. É módico e está ao alcance de todos: o respeito irrestrito ao arcabouço normativo constitucional. Somente assim, é dado caminhar para o afastamento das incertezas jurídicas.

O professor Canotilho, em "Direito Constitucional e Teoria da Constituição", nos ensina que "o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideram os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito".

Digo ao Mestre que assim também entendo. Contudo, não me canso de repetir e alertar: vivemos uma quadra muito estranha, de abandono de parâmetros, de colocação de princípios inerentes ao Estado Democrático de Direito em segundo plano, quadra em que o dito passa pelo não dito, o certo por errado, e vice-versa. Não sei, com pureza d’alma, qual será o limite para esse esgarçamento das instituições pátrias! Com certeza, sem observância ao que determina a Carta Maior, aprofundamos os riscos da Era das Incertezas. Mudar é urgente!

Mãos à obra! Cabe a cada qual fazer a sua parte, presentes ciência e consciência possuídas.

Muito obrigado pela atenção que me dedicaram!

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