Migalhas Quentes

Saudação do professor Celso Lafer ao professor Tercio Sampaio Ferraz Junior

Outorga do Título de Professor Emérito ao professor Tercio Sampaio Ferraz Junior foi no último dia 15.

26/6/2015

Em sessão solene de outorga do Título de Professor Emérito ao professor Tercio Sampaio Ferraz Junior, ocorrida no último dia 15, o professor Celso Lafer proferiu saudação ao amigo.

O evento foi no auditório da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto/SP. Veja a saudação na íntegra.

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Saudação – Tercio Sampaio Ferraz Jr.

Prof. Emérito – Faculdade de Direito

USP - Ribeirão Preto, 15/6/2015

- I –

“Dar a cada um o que é seu” é um dos conhecidos preceitos do Direito, formulado por Ulpiano, que também afirmava que, para os romanos, Justiça é “a vontade constante e permanente de atribuir a cada um o seu direito”.

O dar a cada um o que é seu, oriundo do Direito Romano, é um dos mais recorrentes critérios de justiça. É um valor que o Direito busca tornar realizável na dinâmica entre o ser e o dever ser das normas para atender o senso de justiça, tão necessário na tessitura da convivência coletiva. Na ars judicandi, o senso de justiça numa visão humanista, expressa, como diz Tercio, um atento cuidado com as coisas do mundo.

Faço este registro nesta cerimônia de outorga do título de professor emérito ao prof. Tercio Sampaio Ferraz Jr., porque a ars judicandi da sua concessão pela Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto é, antes de mais nada, um ato de justiça, representativa de um atento e reparador cuidado com as coisas do mundo universitário. Demonstra um reconhecimento daquilo que é muito sabido pelos alunos e colegas do prof. Tercio, mas que hoje adquire um significado próprio: o de tornar inequívoco, erga omnes, no âmbito do espaço público, a importância de uma trajetória de décadas na USP, que se caracterizou por uma empenhada dedicação ao ensino do Direito e se notabilizou pela originalidade, rigor e atualidade de uma reflexão sobre o fenômeno jurídico.

Agradeço, pois, em primeiro lugar, como amigo e colega de toda a vida de Tercio, à Congregação da Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto e ao seu diretor, o prof. Umberto Celli, o generoso ato de justiça emblematizado nesta solenidade. Agradeço, igualmente, o convite que muito me honra e alegra, de hoje poder fazer esta saudação ao Tercio, nesta nova Faculdade da USP – que cresce de importância no mundo jurídico pela seriedade e qualidade com as quais seus professores e alunos se dedicam ao Direito.

- II –

No livro Conversas com Filósofos Brasileiros, organizado por Marcos Nobre e José Marcio Rego, a primeira questão que colocaram para todos os seus entrevistados, entre eles Tercio, foi a pergunta, de inspiração goetheana, sobre as relações entre os anos de aprendizado e os subsequentes anos de peregrinação.

Vou seguir esta linha, pois creio que a chave para o entendimento do modo pelo qual Tercio tornou-se o que é no mundo universitário passa por apontar, como sua formação universitária e as etapas iniciais da sua carreira, foram o lastro da construção da originalidade da sua trajetória de grande jurista. Sigo, neste sentido, a observação de Políbio que Hannah Arendt – pensadora que tanto Tercio quanto eu muito admiramos - gostava de citar: “O começo é mais da metade e alcança o fim”.

A formação jurídica de Tercio foi na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Nela foi aluno dileto dos professores Goffredo da Silva Telles Jr. e Miguel Reale – grandes mestres da Teoria Geral e da Filosofia do Direito, que o apoiaram na sua carreira universitária e com os quais trabalhou. Na Faculdade do Largo de São Francisco foi, até a sua aposentadoria compulsória em 2011, no âmbito do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, o titular responsável de “Introdução à Ciência do Direito”, na sucessão do prof. Goffredo.

Tercio, ao mesmo tempo que estudava Direito, dedicou-se à Filosofia e como era possível na época, fez o seu curso de Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Lá adquiriu, de maneira estruturada, o domínio e o gosto da filosofia concebida como rigor na análise dos grandes textos filosóficos. Lá abriu-se para a compreensão da estética nas aulas de D. Gilda de Mello e Souza. Lá foi aluno de Oswaldo Porchat, nele identificando um mestre e um amigo, com quem aprendeu a ler Aristóteles, e que lhe fez a indicação de Les Mots et les Choses de Michel Foucault, aliás de quem ouviu, mais tarde, na PUC-RJ, o que veio a ser Vigiar e Punir.

Na dialética de mútua implicação e complementaridade, como diria o prof. Miguel Reale, das duas vertentes da sua formação inicial, foi fazer a sua pós-graduação no exterior, como era comum na nossa época, na qual a pós-graduação não tinha ainda sido completamente estruturada entre nós. Estudou e doutorou-se em 1970, em Filosofia, na Universidade de Mainz, na Alemanha, com uma tese sobre Emil Lask, jusfilósofo neokantiano do início do século XX que integra a matriz das fontes inspiradoras do culturalismo de Miguel Reale.

Em Mainz foi aluno e tornou-se amigo de um notável professor de Filosofia do Direito, Theodor Viehweg, cuja obra renovadora Tópica e Jurisprudência, traduziu para o português, tendo prefaciado a edição brasileira, que data de 1979.

Viehweg que, antes de ser professor teve a experiência de ser juiz, abriu para Tercio a perspectiva da tópica jurídica. Instigou o que veio a ser sua primeira e original elaboração da dimensão pragmática do discurso jurídico e do papel que desempenha a argumentação jurídica na vida do Direito. Aponto, neste sentido, o caráter fundacional do seu livro Direito, Retórica e Comunicação – subsídios para uma pragmática do discurso jurídico, de 1973, que foi a sua tese de livre docência. Tercio retomou e aprofundou o alcance do modelo da pragmática no igualmente pioneiro livro de 1978, Teoria da Norma Jurídica.

No seu período de estudo na Alemanha, que incluiu um pós-doutorado, Tercio adquiriu familiaridade com a bibliografia alemã que complementou, sem exclusivismos, o horizonte do seu entendimento sobre o papel do Direito na sociedade. Destaco o pioneirismo com o qual divulgou e se valeu, entre nós, da obra de Luhmann. É de Tercio o prefácio à edição brasileira, que data de 1980, de Legitimação pelo procedimento de Luhmann.

Viehweg e Luhmann vieram a ser fontes inspiradoras da reflexão de Tercio, não obstante o fato de Viehweg ter sido um pensador voltado para o problema e Luhmann um pensador voltado para o sistema. Tercio, no entanto, como ele mesmo diz no livro Conversas com Filósofos Brasileiros, fez um esforço de juntá-los no seu trabalho, no meu entender, de maneira muito bem sucedida. O tema da legitimação pelo procedimento no sistema jurídico está presente no princípio da inegabilidade dos pontos de partida, base da análise de Tercio sobre a relação entre teoria e prática, em A Função Social da Dogmática Jurídica de 1978 – na origem a tese com a qual alcançou a titularidade no Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP.

Registro que, do tema do sistema, Tercio tratou inicialmente na sua tese de doutorado em Direito, em São Paulo, no Largo de São Francisco, levando em conta a obra de Lask, da qual também se ocupou no seu acima mencionado doutorado em Filosofia em Mainz.

Em 1977 Tercio apresentou, pela primeira vez, de maneira mais abrangente sua concepção de ciência do direito – campo do conhecimento a que veio a se dedicar no seu magistério e que tem, no seu entender, como problema central a decidibilidade dos conflitos. Refiro-me ao seu livro A Ciência do Direito, no qual se propôs à análise deste problema no sistema de três conhecidos modelos contemporâneos da ciência do Direito: a ciência do Direito como teoria da norma, como teoria da interpretação e como teoria da decisão.

A reflexão amadurecida e depurada de Tercio sobre a matéria encontra-se no seu grande livro Introdução ao Estudo do Direito, Técnica, Decisão, Dominação, que data de 1988. O fio condutor desta grande empreitada retoma, com base na linguagem, a análise da dimensão sintática da Teoria da Norma e seu interesse pela coerência, a dimensão semântica da teoria da interpretação e seu interesse pela mudança e a dimensão pragmática da teoria dogmática da decisão e seu interesse pelo comportamento e convencimento dos destinatários do discurso jurídico.

A vis directiva desta reflexão, inspirada por Viehweg, é a dicotomia zetética/dogmática, que, como toda dicotomia heurística, como ensina Bobbio, permite distinguir e diferenciar para apreender. A zetética do grego zetéin – procurar, inquirir – cumpre uma função informativa – especulativa que acentua o aspecto pergunta de uma investigação. A dogmática, do grego dokéin, ensinar, doutrinar – cumpre uma função informativa, mas dá ênfase à função diretiva da linguagem, para oferecer uma resposta a uma investigação. No seu livro Tercio lida com a tensão contínua entre as respostas do ensinar e as especulações do perguntar e, deste modo, associa, no estudo do Direito, uma informação operacionalmente útil a uma investigação crítica, como destaquei no prefácio a este grande livro.

A zetética é a expressão do Tercio filósofo, a dogmática do Tercio jurista. No seu percurso elas são constitutivas e não excludentes, como diria Bobbio, e representam um contínuo que opera numa dialética de mútua implicação e polaridade, para evocar novamente o prof. Miguel Reale. A recorrente inquietação da personalidade de Tercio, ao mesmo tempo filósofo do rigor e jurista voltado para a prática do Direito, encontrou na acquiescientia in se ipso da fecunda e constante interação entre zetética/dogmática, os caminhos da identificadora peregrinação da sua trajetória de grande professor e de original pensador.

A reflexão de Tercio no âmbito da Filosofia do Direito não é a da aplicação de uma filosofia – por exemplo, no seu caso, a da linguagem, ao Direito. É, no meu entender, na linha de Bobbio uma Filosofia do Direito, proveniente de um jurista dotado da inquietação e dos instrumentos analíticos do filósofo, voltado para o constante esclarecimento das questões do Direito Positivo que, no seu âmbito estrito não encontra apropriado encaminhamento.

- III –

Os anos de peregrinação de Tercio no mundo do Direito deram sequência ao lastro haurido nos seus anos de formação. Em relação ao seu magistério, invoco o testemunho de Rodrigo Suzuki Cintra: “Em sala de aula: lembranças de um aluno de Tercio Sampaio Ferraz“. Neste texto Rodrigo aponta, na perspectiva de um antigo aluno, o que singulariza Tercio como pensador, tornando-o um professor inesquecível e um autor incontornável. Destaca que cada aula sobre um tema específico era uma análise dos pressupostos e dos limites do jurídico. Encorajava os alunos, em suas aulas, a refletir zeteticamente sobre os conceitos da dogmática e, desta forma, cuidava do magistério de Introdução ao Estudo do Direito, de uma maneira que era crítica, mas propiciava, ao mesmo tempo, a informação circunstanciada sobre a importância dos institutos jurídicos com os quais os operadores do Direito lidam no seu dia a dia.

Na peregrinação de Tercio há obras mais zetéticas. É o caso dos Estudos de Filosofia do Direito, publicado em 2002 e revisto na 3ª edição de 2009. Nestes estudos enfrenta temas centrais da Filosofia do Direito: direito e poder, direito e liberdade, direito e justiça, que são um desdobramento de cursos de pós-graduação de Filosofia do Direito, muitos dos quais ministramos juntos, na Faculdade de Direito da USP.

Há, também, obras de cunho mais dogmático, como cabe a um jurista. É o caso dos estudos reunidos no livro de 2007, Direito Constitucional, Liberdade de pensar, privacidade. Estado, direitos Humanos e outros temas.A maioria destes, como diz na nota introdutória, “conheceu uma abordagem dogmática em que a norma vigente é um ponto de partida indispensável na busca da condição para tornar decidíveis, de forma vinculante, conflitos sociais”. Mesmo nestes, em maior ou menor grau, as soluções dogmáticas são iluminadas nas suas palavras “por meio de recursos zetéticos, capazes de abrir novas perspectivas”. É esta capacidade de abrir novas perspectivas por meio da zetética no trato do Direito Positivo que transformaram Tercio num dos grandes pareceristas no meio jurídico brasileiro.

Gostaria de concluir com uma rápida referência a dois livros de Tercio, publicados em 2014, que exemplificam de maneira paradigmática a contínua importância e atualidade da ilustrada maturidade dos seus anos de peregrinação no mundo do Direito. Refiro-me aos livros Argumentação Jurídica e O Direito entre o Futuro e o Passado.

O livro sobre Argumentação Jurídica retoma, num novo patamar, suas prévias reflexões sobre a pragmática jurídica que adquiriu crescente atualidade em função do neoconstitucionalismo e da constitucionalização de todo o Direito que dele provém. Com efeito, a teoria da interpretação vem sendo substituída pela teoria da argumentação na medida em que a subsunção se vê sobrepujada pela ponderação dos princípios na aplicação do Direito o que, por sua vez, requer cada vez mais a justificada argumentação da decisão judicial, justificação que vai além dos dados preceptivos contidos de maneira mais circunscrita na lei, na linha do proposto pelo positivismo jurídico. Esta é uma vertente contemporânea do modus operandi da decidibilidade dos conflitos, problema central da ciência do Direito, tal como Tercio foi formulando na sua trajetória acadêmica desde a Ciência do Direito de 1977.

O Direito entre o Futuro e o Passado – título de inspiração arendtiana – é um livro de alto voo, revelador de como é fecunda, na reflexão de Tércio o modus operandi, da dicotomia zetética/dogmática. Realço brevitatis causa entre os estudos reunidos neste denso livro a discussão de como, no mundo virtual da era do dígito a propriedade material não se amolda mais a sedimentados conceitos como o do direito subjetivo que “não é mais capaz de lidar com uma desintegração em pedaços (bits) da estrutura íntegra das coisas”. Este estudo é um excelente exemplo da tarefa que entendo ser a da Filosofia do Direito: a de pensar os problemas que não encontram adequado encaminhamento no âmbito estrito do Direito Positivo, no caso, como lidar com o direito subjetivo do autor no mundo da informática, com a descoisificação das criações intelectuais.

Destaco, também, o estudo “Tempo e Tempo Jurídico em tempos de Direito Positivo”, admirável reflexão sobre como o zetético problema filosófico do tempo, com o fenômeno da positivação, exigiu a construção dogmática de um tempo conceptualizado pelo próprio Direito como condição de decidibilidade de conflitos. É neste contexto que examina o tempo da validade das normas, normas irretroativas e retroativas, coisa julgada, princípio de anterioridade, o tempo da imputação, e como isto tudo se relaciona com a segurança jurídica.

Creio que mais não precisaria ser dito, para afirmar que Tercio é um professor emérito no seu magistério e na sua reflexão, que dignifica a Universidade de São Paulo e esta sua Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, que hoje, nesta solenidade, a ele concede este honroso título.

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