Migalhas Quentes

Para STF, liberdade de informar contribui para cidadania

A reunião de alguns compositores da MPB em torno da ideia de "proibir" a publicação ou comercialização de biografias não autorizadas tem ocupado os jornais nas últimas semanas.

22/10/2013

"É, meu Deus! os abusos? E do que não se abusa neste mundo? Forte raciocínio! E por que se abusa de uma qualquer coisa, já, já suprima-se? E onde iríamos com estas supressões? Um mau juiz abusa de seu ministério: suprima-se a magistratura; um mau sacerdote abusa da religião: suprima-se a religião; um mau marido abusa do matrimônio: suprima-se o matrimônio! Forte raciocínio! Forte raciocínio, dizemos outra vez! Suprimam-se os abusos que será melhor." (Líbero Badaró)

A reunião de alguns compositores da MPB em torno da ideia de "proibir" a publicação – ou a comercialização, conforme retificaram depois, por meio de sua porta-voz – de biografias não autorizadas e a reação de jornalistas e escritores a esse posicionamento têm ocupado os jornais nas últimas semanas. Muito já foi dito, redito. A palavra final ficará com o STF, que por meio do julgamento da ADIn 4.815, apreciará a conformidade dos arts. 20 e 21 do CC com a CF.

A fim de reunir contributos para tal julgamento, a ministra Cármen Lúcia, relatora da ação, anunciou a realização de audiências públicas para debater o assunto. É tempo, pois, de semear argumentos, suscitar reflexões.

Há algumas semanas este informativo trouxe matéria destacando alguns pontos do PL do Senado destinado a regulamentar o direito de resposta na imprensa. Conferindo corpo à matéria, viam-se trechos de primoroso acórdão da lavra do ministro aposentado do STF Ayres Britto proferido por ocasião do julgamento da ADPF 130.

Lido na íntegra e com atenção, o mesmo voto fornece parâmetros para a polêmica em torno das biografias, à medida que joga luzes sobre o equilíbrio entre o direito à informação e à privacidade, ambos protegidos pela Constituição. Do próprio teor do voto, que dedica algumas linhas ao conceito de imprensa, vê-se que onde se lê imprensa pode-se ler, analogicamente e sem prejuízo algum, mercado editorial.

Liberdade plena – O raciocínio desenvolvido pelo ministro aposentado Ayres Britto parte da ideia de liberdade plena de que fala o art. 220 da CF:

27. Mas a decisiva questão é comprovar que o nosso Magno Texto Federal levou o tema da liberdade de imprensa na devida conta. Deu a ela, imprensa, roupagem formal na medida exata da respectiva substância. Pois é definitiva lição da História que, em matéria de imprensa, não há espaço para o meio-termo ou a contemporização. Ou ela é inteiramente livre, ou dela já não se pode cogitar senão como jogo de aparência jurídica (...).

Sobretudo ideias, cuja livre circulação no mundo é tão necessária quanto o desembaraçado fluir do sangue pelas nossas veias e o desobstruído percurso do ar pelos nossos pulmões e vias aéreas.

28. Se é assim, não há opção diferente daquela que seguramente fez o nosso Magno Texto Republicano: consagrar a plenitude de uma liberdade tão intrinsecamente luminosa que sempre compensa, de muito, de sobejo, inumeravelmente, as quedas de voltagem que lhe infligem profissionais e organizações aferrados a práticas de um tempo que estrebucha, porque já deu o que tinha de dar de voluntarismo, chantagem, birra, perseguição. Esparsas nuvens escuras a se esgueirar, intrusas, por um céu que somente se compraz em hospedar o sol a pino. (...)

Autorregulação – Vista assim, a liberdade plena de informar torna-se ela mesma meio de se pôr em andamento um processo de aprimoramento social – melhoram progressivamente os leitores, os escritores, os editores à medida que essa mesma liberdade é experimentada e vivenciada. Nesse sentido os excessos encontrarão na própria sociedade a repugnância. É notório caso ocorrido na década de 1990, de capa de revista semanal que estampou o rosto do cantor e compositor Cazuza já impressionantemente debilitado pela doença e a sensação de mal-estar e até mesmo de rejeição que tal postura editorial/jornalística encontrou na sociedade. Casos como esse indicam haver no corpo social certa noção latente de que algumas fronteiras éticas não devem ser ultrapassadas, sob pena de prejuízo à própria coletividade. E esse autoequilíbrio é proporcional ao estágio de civilização de um povo, que no exercício da liberdade pode ir progressivamente conquistando-o. Para os pontos fora da curva, a responsabilização:

26. Convém insistir na afirmativa: por efeito dessa relação de mútua e benfazeja influência entre a imprensa e seus massivos destinatários, o caminho consequente ou como que natural a seguir só pode ser o da responsabilidade de jornalistas e órgãos de comunicação social. .

(...)

29. O que se tem como expressão da realidade, portanto, é, de uma banda, um corpo social progressivamente esclarecido por uma imprensa livre e, ela mesma, plural (visto que são proibidas a oligopolização e a monopolização do setor). Corpo social também progressivamente robustecido nos seus padrões de exigência enquanto destinatário e consequentemente parte das relações de imprensa. De outra banda, uma imprensa que faz de sua liberdade de atuação um necessário compromisso com a responsabilidade quanto à completude e fidedignidade das informações comunicadas ao público. Do que decorre a permanente conciliação entre liberdade e responsabilidade, até porque, sob o prisma do conjunto da sociedade, quanto mais se afirma a igualdade como característica central de um povo, mais a liberdade ganha o tônus de responsabilidade. É que os iguais dispõem de reais condições de reagir altivamente às injustiças, desafios e provocações do cotidiano, de modo a refrear os excessos ou abusos, (...).

Sob o prisma específico das biografias, a marcação de Ayres Britto de que a instituição a que chamamos imprensa corresponde “ao mais eloquente atestado de evolução político-cultural de todo um povo” permitiria argumentar que o interesse excessivo pela vida de celebridades é retrato de um estágio cultural que ainda há de caminhar para frente, que impende melhorar – biografias no sentido de fofocas, especulações sobre a vida de famosos. E nesse sentido ganhariam eco os argumentos dos compositores que volta e meia citam o mesmo caso da dor enfrentada pela novelista Glória Perez diante de tentativa de publicação de livro de autoria do condenado pela morte de sua filha.

Mais uma vez, a casuística perde forças diante do princípio geral: tirados de lado os casos extremos, patológicos – passíveis de serem amparados pelo judiciário, já se disse – não há como negar a contribuição de tantos outros inumeráveis perfis para a composição do vasto painel a que chamamos História. Conforme defendido pelo professor Francisco Alambert no Caderno Aliás do Estadão do último domingo, “o que define a figura pública não é sua ‘visibilidade’ ou ‘fama’, mas o fato de que ao longo de sua trajetória essa figura deixa rastros, documentos, que por causa da significância dessa trajetória dentro da trajetória histórica de uma comunidade ganha sentido e pode ser narrada, estudada, explicada e interpretada. Neste caso, o sujeito é ‘sintoma’ de seu tempo, tanto quanto é ‘sintoma’ desse tempo o desejo de saber sobre esse sujeito”.

E aqui mesmo neste informativo, artigo de autoria de advogado leitor arrolou outras interessantes benesses advindas para uma sociedade a partir do retrato de seus artistas, pessoas por ela queridas: “Há uma curiosidade natural em relação à vida dessas personalidades, que fazem parte do nosso dia-a-dia e estão tão perto de nós, quanto estão distantes. Quanta esperança nos dão aqueles artistas de origem simples, que venceram pelo talento! Seus exemplos de mobilidade social e de igualdade de oportunidades nos fazem acreditar na democracia e na liberdade mais do que o resultado de qualquer eleição absolutamente transparente e democrática.”

A liberdade de pesquisar e de publicar os resultados das pesquisas, então, liga-se diretamente ao aprimoramento da cidadania:

33. Daqui já se vai desprendendo a intelecção do quanto a imprensa livre contribui para a concretização dos mais excelsos princípios constitucionais. A começar pelos mencionados princípios da "soberania" (inciso I do art. 1º) e da "cidadania" (inciso II do mesmo art. 1º), entendida a soberania como exclusiva qualidade do eleitor-soberano, e a cidadania como apanágio do cidadão, claro, mas do cidadão no velho e sempre atual sentido grego: aquele habitante da cidade que se interessa por tudo que é de todos; isto é, cidadania como o direito de conhecer e acompanhar de perto as coisas do Poder, os assuntos da pólis. Organicamente. Militantemente. Saltando aos olhos que tais direitos serão tanto melhor exercidos quanto mais denso e atualizado for o acervo de informações que se possa obter por conduto da imprensa (contribuição que a INTERNET em muito robustece, faça-se o registro). (...)

Aqui parece sensato ponderar que se tudo o que se publica termina por contribuir à formação do que se convencionou chamar de opinião pública, também é inquestionável que essa não se forma automaticamente por uma publicação em si – muito menos considerando o estágio de profusão de títulos que compõem o mercado editorial – mas como vetor resultante de uma série de publicações, que não vão apenas somando resultados, mas organizando-os de modo dialético, em sistema de contraditório, de diálogo. A uma publicação seguem-se críticas, comentários e análises, além de outras obras que lhe contrapõem informações e argumentos, para que enfim sedimentem-se. Cada livro publicado livremente dá forças ao necessário contraponto à narrativa oficial, à escrita dos "cronistas do Reino". A ninguém é dado o monopólio da História, é bom lembrar.

É exatamente esse o temor de um grupo de professores e outros intelectuais integrantes do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que na condição de amicus curiae apresentaram memorial na ADIn 4.815 e o comentaram ao jornal Folha de S.Paulo do dia 17 de outubro: "A ciência precisa da publicação de seus resultados para serem contestados", adverte o professor de Direito da FGV, Joaquim Falcão, ao lembrar de biografia de Tiradentes que buscou desconstruir a aura de mártir conferida pela História oficial ao inconfidente: "Tal cenário [a possibilidade de veto à publicação] seria absurdo, e uma afronta à liberdade acadêmica de ensino e de informação, pois os professores só poderiam retratar o Tiradentes que a família dele escolhesse". Completando o raciocínio, o historiador e diplomata Alberto da Costa e Silva, membro da Academia Brasileira de Letras, argumenta que "Isso pode criar dificuldades grandes para os historiadores e prejudicar imensamente a historiografia nacional."

A par de Tiradentes, muitos outros exemplos poderiam ser citados. Tome-se D. Pedro II. Quanto de nossa História estaria perdido senão tivessem vindo à tona suas relações com a Condessa de Barral? Muito além de vida íntima, os interesses e afinidades do monarca muito disseram aos pesquisadores sobre o modelo de monarquia que tivemos, permitindo relacioná-lo, inclusive, ao modelo de República que se seguiu. Ainda na mesma linha, o conhecimento da vida do poeta, ouvidor do rei e mais tarde inconfidente Claudio Manuel da Costa, que viveu com uma escrava "como se casados fossem", tratando-a bem quando a sós, mas sem considerar a hipótese de apresentá-la em público, também muito revelou sobre a moral da sociedade colonial de então. E assim poder-se-ia desfiar um rosário de exemplos.

Frise que o medo da academia não é infundado: o caso mais recente envolvendo o cantor e compositor Roberto Carlos, em torno do qual ganhou corpo toda a movimentação que deu origem ao polêmico Procure Saber, trata-se, aliás, de tentativa de proibição da publicação e circulação de tese acadêmica, a obra "Jovem Guarda: Moda, Música e Juventude", dissertação de mestrado no curso de Moda, Cultura e Arte do Senac, de autoria de Maíra Zimmermann.

Limitação à liberdade de informar – só a Constituição pode fazê-lo

Em acertada explanação acerca do que se convencionou chamar de ponderação de princípios, o voto do ministro aposentado Ayres Britto não deixa dúvidas: o constituinte só admite limitação à liberdade de informar se por ofensa a outros direitos individuais igualmente protegidos pela Constituição, e unicamente por meio de responsabilização a posteriori. O texto constitucional brasileiro não suporta intervenção estatal a priori nas relações entre órgãos de informação e população em uma democracia:

38. É precisamente isto: no último dispositivo transcrito [art. 220 da CF] a Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição. (grifos do original)

É afirmar: para a nossa Constituição, o concreto uso de tais liberdades [de imprensa, de informar] implica um quando, um quê e um para quê antecipadamente excluídos da mediação do Estado, a partir da própria função legislativa. (...)

(...) porém, mais que isto, cuida-se de 'normas irregulamentáveis'. E normas irregulamentáveis porque, no caso, têm na própria interdição da interferência do Estado o seu modo cabal e ininterrupto de incidir A sua natural condição de serena, total e permanente aplicabilidade. Acabado exemplo, primeiramente, de 'normas íntegras, cheias, maciças, quando focadas sob o ângulo da matéria que veiculam, não apresentando frinchas ou brechas passíveis de colmatação, (...) pois nada se pode introduzir em algo que já é, por si, compacto' (...).

De acordo com o raciocínio esposado, o direito de informar admite, é certo, ponderação casuística e a posteriori, apenas por outro "bloco de direitos" igualmente constitucionais, todos constantes do art. 5°, e dentre os quais se encontra o direito de resposta e o direito à intimidade: vedação do anonimato (parte final do inciso IV); direito de resposta (inciso V); direito a indenização por dano material ou moral à intimidade, à vida privada, à honra e imagem das pessoas (inciso X); livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (inciso XIII); direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional (inciso XIV).

Assim, reunindo os parâmetros jurídicos encontrados na decisão acima, interpretação atual do sistema de proteção às liberdades individuais de nossa Constituição, às observações e argumentos extraídos da observação da realidade, tem-se que interditar alguns temas previamente sob medo de ofensas à intimidade não parece indicar à sociedade caminho que leve ao progresso.

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