Embora tenha escrito suas peças há mais de 400 anos, William Shakespeare ainda está na moda. Neste sábado, 21, no terceiro dia da Pauliceia Literária, festival organizado pela AASP para comemorar os seus 70 anos, a mesa “Shakespeare e a Lei” conduzida por Rodrigo Lacerda, escritor carioca, e José Garcez Ghirardi, professor do curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas-GV Law, foi um sucesso. Programada para ter duração de 1h30 como todas as demais, a conversa avançou sobre o intervalo sem que ninguém da plateia houvesse sequer percebido. Pelo contrário: ao aviso de que o bate-papo teria que se encerrar, sob pena de tomar o horário do painel seguinte, o que se ouviu foi um retumbante “ah!”.
De fato, muito ainda poderia ter sido dito. Como apontou Garcez, Shakespeare escreveu em um momento de transição social e política, em um momento em que as leis formalmente perfeitas não agradavam mais aos valores da nova ordem social que se ia estabelecendo. As razões de ser das limitações impostas ao desejo individual que faziam sentido no feudalismo não serviam mais a uma população que agora vivia nas cidades, e que sobretudo precisava do comércio para viver. Quando a apaixonada Julieta pergunta de seu balcão para um extasiado Romeu “O que há em um nome?” e essa indagação encontra eco na plateia elisabetana, está inaugurada a Modernidade. Nasce ali a possibilidade do indivíduo viver conforme as suas escolhas, a chance de se sobrepor à heteronomia até então reinante. Outras razões que não as de Estado, as da coletividade, passam a ser legítimas para guiar os destinos individuais.
Mas esse simples reconhecimento não basta, responde o próprio dramaturgo em outro texto célebre. Quando Edmund, o filho bastardo do Rei Lear, consegue viver plenamente as suas vontades, exercer a sua autonomia em detrimento da tradição social que lhe era imposta, a ordem desaba, predomina o mal. Conforme aponta o professor Garcez, surge o Estado preconizado por Hobbes, o homem lobo do homem, o que a plateia também reconhece como não conveniente. A lei, o Direito, tem então uma virtù, um propósito que vai além da simples instrumentalização pelas classes poderosas, conforme havia denunciado o bardo em outro de seus sucessos, O Mercador de Veneza.
Nas palavras de Garcez, o que Shakespeare percebeu é que a sociedade elisabetana pré-revolução Puritana buscava “um novo estatuto para o desejo individual” – que não sofresse a asfixia medieval, mas que tampouco fosse a única lei a governar a sociedade. Em suma, é uma sociedade que reconhece a distância entre o homem em estado natural e o homem político, tensão registrada por Shakespeare em seus personagens.
Algo muito próximo, talvez, do que vive a sociedade brasileira hoje: uma elite governante corrupta precisa enfrentar protestos por parte da população, mas esses protestos, contudo, não devem ultrapassar alguns limites. Qual o parâmetro apto a regulá-los?
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