Há exatamente 41 anos, no dia 20/5/1972, foi publicada, no jornal O Estado de S. Paulo, uma reportagem do advogado Ivo de Lima sobre sua experiência de participar da tradicional e secular romaria à cidade de Tréguier, na Bretanha, região da França, onde nasceu e está sepultado Santo Ivo, o padroeiro dos advogados que teve seu dia celebrado ontem.
Confira abaixo a íntegra do artigo.
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O perdão de Santo Ivo, padroeiro dos advogados
Ivo de Lima
Na manhã de primavera, cortando o ar ainda frio do mês de maio, o carro avança velozmente pela Rodovia Nacional 786, em direção a Tréguier – a lendária Trecorum – pequena cidade episcopal do norte da Bretanha, quase às bordas do Canal da Mancha.
Um sol pálido filtra-se com dificuldade através de neblina tênue, que encobre a paisagem, lançando tímido reflexos sobre os campos orvalhados, plantados de trigo e de aveia, e produzem reverberações coloridas nas flores das macieiras numerosas, dos pomares à beira da estrada. O perfume dos primeiros frutos da estação – morangos, cerejas e abricós invadem-nos sucessivamente os sentidos, numa delicada fuga cromática de odores.
Aqui e ali erguem-se moradias típicas dos camponeses da região, feitas de granito ou de xisto, cobertas de fumarentas, em meio aos vergais divididos por cercas de pedras empilhadas, pontilhados de carvalhos seculares.
Nos cruzamentos da Rodovia, deparamo-nos, de vez em quando, com Calvários de pedra esculpida, pequenos monumentos de arte popular religiosa, onde se agrupam, em terno do Cristo – crucificado, as cenas da Paixão, erigidos no século XVI, para conjurar a peste, ou em ação de graças por seu desaparecimento.
Consultando o mapa, verifica-se que a Bretanha constitui um planalto ondulado, de altitude média, em forma de cunha, recortado de penínsulas, que avançam corajosamente contra o mar sombrio, eriçado de rochas, num rendilhado de profundas águas tempestuosas do oceano, constituindo a porção mais ocidental da França, nos confins do mundo antigo, por isso denominada Finisterra.
Apesar do remoto isolamento que a manteve a margem dos grandes movimentos migratórios e invasões bárbaras, os primitivos e misteriosos habitantes da Bretanha foram primeiramente substituídos pelos gauleses, que, por sua vez sofreram a dominação romana, até que o território, finalmente, veio a ser conquistado pelos celtas, que aqui se fixaram nos séculos V e VI, depois de deslocados da Grã-Bretanha pelos anglo-saxões. Dessa época para cá, a população local conservou suas características étnicas e lingüísticas, sendo os costumes regionais – cultivados com fervor e até fanatismo. O povo é bilíngüe, em regra, os bretões ainda fazem manifestações separatistas em Paris!
Na língua bretã, esta região se chama “Armor”, que significa “país vizinho do mar”. A costa Armórica, recortada de franjas pelo Atlântico e o Canal, que os ingleses insistem de chamar de inglês, possui perto de mil duzentos quilômetros de extensão; e constitui o teatro de intensa atividade marítima, calculando-se que metade das tripulações da frota mercante e de guerra da França, seja constituída de bretões.
Povo inquieto, raça de marinheiros, em que as gerações se sucedem de pai a filho, dos portos famosos de Brest, Saint Malo, Lorient, Saint Nazaire, Douarnenez, Concarneau, Camaret e outros, saíram capitães intrépidos, para desfraldar nos sete mares a orgulhosa divisa: “aonde vai o sol, vai o bretão”. Ninho de corsários, destes pagos partiu Dugay-Trouin, com dezessete navios e quatro mil homens, para, em 1711, arrebatar o Rio de Janeiro aos portugueses.
Em meio a esta reminiscência, após uma curva do caminho, descortinamos a cidade de Tréguier, que se estende no flanco da colina dominando um largo estuário, formado pelos rios Jaudy e Guindy, com seu porto, que abre passagem através de um canal fluvial até o mar próximo.
E nesta cidade, onde nasceu Renan, que se realiza uma das maiores festas religiosas da França, um dos chamados “Perdões da Bretanha” - o “Perdão dos Pobres” – celebrado no dia da morte de Santo Ivo em sua homenagem.
Misticismo:
O misticismo religioso acha-se profundamente enraizado nas próprias origens da Bretanha. Berço de um povo obscuro, desaparecido na aurora da história, por aqui ainda subsistem estranhos monumentos megalíticos – os “menhirs” e os “dolmens” – associados a remotos ritos sagrados dos druidas, posteriormente incorporados aos cultos romanos, mais tarde santificados pelo cristianismo, e até hoje venerados pelos povos.
A alma bretã, sempre inclinada ao sonho e à fantasia, ao sobrenatural e ao fantástico, revela-se nesta terra marcada pela persistência das lendas. Aqui desapareceu misteriosamente o Santo Graal – a taça contendo o sangue do Cristo, recolhido na Palestina por José de Arimatéia – e que somente poderia ser descoberta por um guerreiro de coração puro. Em torno de sua busca, a Idade Média produziu inesgotáveis histórias de aventuras, que constituem o ciclo da Távola Redonda e dos cavaleiros do Rei Artur. Aqui, ainda, para além do horizonte, nas bandas do poente, na floresta de Brocelandia, é que o Mago Merlin, companheiro do Rei Arthur, viveu em meio ao vai e vem dos peregrinos, num circulo mágico de paixão, em voluntário cativeiro, sob o encantamento da fada Viviane. Da Cornualha, mais ao sul, foi que partiu Tristão, a caminho da Irlanda, enviado pelo Rei Mark, para trazer-lhe a noiva, Isolda, de quem perdidamente se apaixonou.
Com o pensamento e a imaginação arrebatados por estas evocações, que traduzem o caráter profundamente místico do povo bretão, aproximamo-nos das portas de Tréguier, divisando, por cima dos telhados de ardósia, a flexa da Catedral de São Tugdual.
A cidade está em festa. As casas severas de granito ostentam nas fachadas as bandeiras coloridas da Bretanha, da França e do Senhor Kemartin, a nobre família ancestral de Santo Ivo. Às ruas estreitas aflui a população em trajes típicos, destacando-se as toucas rendilhadas, características de cada comuna, que exibem as mulheres, quase sempre vestidas de preto; e nas praças vão se armando, rapidamente, as barracas da Feira tradicional, que aos poucos transbordam pelas ruas se derrama esplendido, em cintilações multicolorido, refletidas nos vidros da catedral basílica.a
Os sinos repicam vigorosamente quando adentramos com respeito à devoção, o majestoso edifício medieval, de estilo gótico, feito de pedra trabalhada com elegância e refinamento, obra-prima de ligeireza, no dizer do próprio Renan: “um louco esforço para realizar no granito, um sou no impossível”. No seu interior, das paredes pendem bandeiras e reluzentes escudos alinhados, das velhas casas senhoriais e por toda a nave já se aglomera a multidão de fiéis contritos, para assistir à missa pontífice, que deverá desenrolar-se segundo ritos fixados pela tradição.
No altar-mor divisamos um retábulo flamengo do século XV e um grande Cristo de madeira esculpido, particularmente comovedor, obra de autor desconhecido.
O Patrono dos Advogados:
Nessa atmosfera de intenso fervor espiritual, elevamos nosso pensamento a Ivo Kermatin, nascido em 1255 em Menehy – Tréguier, aldeia nas proximidades da cidade. Em 1267 foi a Paris estudar Direito e dez anos depois, a Orleans, para aprender lei canônica. Voltando à Bretanha, exerceu a profissão de advogado, e ordenando-se padre em 1283, foi nomeado juiz eclesiástico. Falecido aos 19 de maio de 1303, foi canonizado por Clemente VI, em 1347.
Numa imagem de madeira esculpida, junto ao púlpito, vê-se recusando a bolsa de ouro do rico. Foi o consolo dos pobres, o protetor das viúvas, dos órfãos e desvalidos. Como patrono dos advogados, seu culto se estendeu a toda Europa e ao mundo Cristão. Sua honradez era proverbial: “advocatus et non latro, res Miranda populo”... Por isso os fieis vem buscar em Tréguier, em piedosa romaria, no aniversário da morte de “Monsieur Saint Yves”, o perdão dos pecados, cumprir votos ou implorar graças. É o “perdão” de Santo Ivo!
Nossos pensamentos foram interrompidos pelo som de um coral, que entoa melodias e cânticos bretões, enquanto a multidão recolhida abre-se à passagem de um cortejo, constituído de curas, vigários, abades e bispos, precedidos pelo arcebispo, que solenemente oficia a missa pontificial, de acordo com os cerimoniais grandiosos.
Terminado o sacrifício, nas abobadas de vasta catedral ecoa o hino de gloria, cantado em bretão – “N’a neus ket em Briez” – cujos acordes se esparramam para além dos muros, em direção à multidão que se aglomera na praça fronteira.
Ao sinal do abade-mestre de cerimônias e do Cônego pastor da cidade episcopal, inicia-se a procissão, tendo à frente a relíquia – o crânio de Santo Ivo - onde reluz uma coroa de ouro. Acompanham cem bandeiras e cem cruzes ao som das fanfarras, das bombardas e das gaitas de fole das cidades da Bretanha, tocando árias de sabor escocês. À frente, caminham o arcebispo de Paris, revestido da “capa magna”, os bispos e outros eclesiásticos, os presidentes dos tribunais e os juizes togados, os professores das universidades e advogados, revestidos de becas solenes, seguidos da multidão de milhares de peregrinos, em direção à capela de Menehy-Tréguier, na antiga Senhoria de Kemartin, de onde saiu a procissão de encontro. Logo mais, ambos os cortejos se fundem e prosseguem entoando cânticos, nas duas línguas, para retornar aos respectivos pontos de partida, depois de prestar reverência no tumulo de Santo Ivo, no cemitério paroquial.
Os peregrinos, numa demonstração de fé e humildade, prosternam-se diante de tumba de granito cinzento, para transpor de joelhos uma passagem baixa, que a atravessa de lado a lado, com uma abertura no centro da lápide, invocando a especial proteção do Santo. Antes de partir, submetemo-nos ao ritual tradicional.
Em Tréguier as celebrações prosseguem com danças folclóricas e festejos populares. E quando nos afastamos pela estrada ensolarada, os carrilhões da catedral de São Tugdual repicam alegremente, espalhando pelos céus místicos da Bretanha, com suas vozes sonoras de bronze, a mensagem de amor e de fraternidade, consoladora e imperecível, do protetor dos pobres, do patrono dos advogados!