Migalhas Quentes

Município pode legislar sobre gratuidade de transporte

Celso de Mello julgou improcedente ADIn do Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros no Estado de SP.

14/5/2013

O ministro Celso de Mello, do STF, deu provimento a RExt julgando improcedente ADIn ajuizada pelo Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros no Estado de São Paulo.

O sindicato argumentou serem inconstitucionais os artigos 11, 14 e 15 da Emenda 26, de 27 de maio de 2010, à lei orgânica de Barretos, que excluem da competência privativa do Chefe do Executivo legislar sobre ‘serviços públicos’, e estendem a gratuidade no transporte público municipal para os idosos desde os seus 60 anos.

Não vislumbro, no texto da Carta Política, a existência de obstáculo constitucional que possa inibir o exercício, pelo Município, da típica atribuição institucional que lhe pertence, fundada em título jurídico específico (CF, art. 30, I), para legislar, por autoridade própria, sobre a extensão da gratuidade do transporte público coletivo urbano às pessoas compreendidas na faixa etária entre 60 (sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos”, decidiu o ministro Celso de Mello.

Ainda, o decano da Corte ponderou que sob a perspectiva do art. 30, I, da CF, o diploma legislativo editado pelo município de Barretos/SP "encontra suporte legitimador no postulado da autonomia municipal, que representa, no contexto de nossa organização político-jurídica, como já enfatizado, umas das pedras angulares sobre as quais se estrutura o próprio edifício institucional da Federação brasileira."

______________

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 702.848 SÃO PAULO

RELATOR :MIN. CELSO DE MELLO

RECTE.(S) :PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

RECDO.(A/S) :SINDICATO DAS EMPRESAS DE TRANSPORTES DE PASSAGEIROS DO ESTADO DE SÃO PAULO - SETPESP

ADV.(A/S) :MÁRIO ALVARES LOBO E OUTRO(A/S)

RECDO.(A/S) :CÂMARA MUNICIPAL DE BARRETOS

ADV.(A/S) :LUIZ MANOEL GOMES JUNIOR

DECISÃO: O presente recurso extraordinário foi interposto contra decisão, que, proferida em sede de fiscalização abstrata de constitucionalidade (CF, art. 125, § 2º), pelo Órgão Especial do E. Tribunal de Justiça local, acha-se consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 417):

Ação direta de inconstitucionalidade – Artigos 11, 14 e 15 da Emenda nº 26, de 27 de maio de 2010, à Lei Orgânica do Município de Barretos, que excluem da competência privativa do Chefe do Executivo legislar sobre ‘serviços públicos’, e estendem a gratuidade no transporte público municipal para os idosos desde os seus 60 (sessenta anos) – Falta de interesse do requerente para postular a inconstitucionalidade do artigo 11 da referida Emenda à Lei Orgânica do Município – Alteração legislativa que apenas adequa a redação do inciso III do artigo 61 da Lei Orgânica local ao decidido em precedente ação direta de inconstitucionalidade julgada por este mesmo C. Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Artigos 14 e 15 da referida Emenda que estendem aos idosos, desde os seus 60 (sessenta anos), a gratuidade do transporte público municipal – Inadmissibilidade – Criação de despesa pública sem indicação dos recursos disponíveis – Benesse que, a despeito de incentivada pelo Estatuto do Idoso (Lei Federal nº 10.741/03), deve ser implementada de forma planejada e responsável, de molde a não transferir à empresa concessionária de serviço público e, em última análise, ao próprio poder público municipal concedente, os custos de implementação do benefício – Violação do disposto no artigo 25 da Constituição do Estado de São Paulo – Precedentes jurisprudenciais do C. Órgão Especial deste Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Ação procedente em parte – Inconstitucionalidade dos artigos 14 e 15 da Emenda nº 26, de 27 de maio de 2010, à Lei Orgânica do Município de Barretos, deste Estado de São Paulo, reconhecida.” (grifei)

O eminente Chefe do Ministério Público paulista, ao deduzir o presente apelo extremo, sustentou que o Tribunal “a quo” teria transgredido preceitos inscritos na Constituição da República.

Entendo revelar-se processualmente viável a pretensão recursal ora deduzida, considerada não só a autonomia constitucional inerente aos Municípios (CF, art. 30, I), mas, também, o que prescreve o art. 39, § 3º, da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso):

“Art. 39. Aos maiores de 65 (sessenta e cinco) anos fica assegurada a gratuidade dos transportes coletivos públicos urbanos e semi-urbanos, exceto nos serviços seletivos e especiais, quando prestados paralelamente aos serviços regulares.

…...................................................................................................

§ 3º No caso das pessoas compreendidas na faixa etária entre 60 (sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos, ficará a critério da legislação local dispor sobre as condições para exercício da gratuidade nos meios de transporte previstos no ‘caput’ deste artigo.” (grifei)

Não vislumbro, no texto da Carta Política, a existência de obstáculo constitucional que possa inibir o exercício, pelo Município, da típica atribuição institucional que lhe pertence, fundada em título jurídico específico (CF, art. 30, I), para legislar, por autoridade própria, sobre a extensão da gratuidade do transporte público coletivo urbano às pessoas compreendidas na faixa etária entre 60 (sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos.

Na realidade, o Município, ao assim legislar, apoia-se em competência material – que lhe reservou a própria Constituição da República – cuja prática autoriza essa mesma pessoa política a dispor, em sede legal, sobre tema que reflete assunto de interesse eminentemente local.

Cabe assinalar, neste ponto, que a autonomia municipal erige-se à condição de princípio estruturante da organização institucional do Estado brasileiro, qualificando-se como prerrogativa política, que, outorgada ao Município pela própria Constituição da República, somente por esta pode ser validamente limitada, consoante observa HELY LOPES MEIRELLES, em obra clássica de nossa literatura jurídica (“Direito Municipal Brasileiro”, p. 92/93, item n. 2, 17ª ed., atualizada por Adilson Abreu Dallari, 2013, Malheiros):

“A autonomia não é poder originário. É prerrogativa política concedida e limitada pela Constituição Federal. Tanto os Estados-membros, o Distrito Federal como os Municípios têm a sua autonomia garantida constitucionalmente, não como um poder de autogoverno decorrente da Soberania Nacional, mas como um direito público subjetivo de organizar o seu governo e prover a sua Administração, nos limites que a Lei Maior lhes traça. No regime constitucional vigente, não nos parece que a autonomia municipal seja delegação do Estado-membro ao Município para prover a sua Administração. É mais que delegação; é faculdade política, reconhecida na própria Constituição da República. Há, pois, um ‘minimum’ de autonomia constitucional assegurado ao Município, e para cuja utilização não depende a Comuna de qualquer delegação do Estado-membro.

…...................................................................................................

No que concerne às atribuições mínimas do Município, erigidas em princípios constitucionais garantidores de sua autonomia (arts. 29 e 30), constituem ‘um verdadeiro direito público subjetivo, oponível ao próprio Estado (União), sendo inconstitucionais as leis que, de qualquer modo, o atingirem em sua essência’. (…).” (grifei)

Essa mesma percepção do tema já era perfilhada por SAMPAIO DORIA (“Autonomia dos Municípios”, “in” Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, vol. XXIV/419-432, 1928), cujo magistério – exposto sob a égide de nossa primeira Constituição republicana (1891) – bem ressaltava a extração constitucional dessa insuprimível prerrogativa político-jurídica que a Carta Federal, ela própria, atribuiu aos Municípios. Sob tal perspectiva, e como projeção concretizadora desse expressivo postulado constitucional, ganha relevo, a meu juízo, no exame da controvérsia suscitada nesta sede recursal extraordinária, a prerrogativa da autonomia fundada no próprio texto da Constituição da República, que confere ao Município plena competência para dispor – com apoio em sua vontade político-jurídica e em razão de um juízo próprio de conveniência – sobre as condições viabilizadoras do exercício, por pessoas compreendidas na faixa etária entre 60 (sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos, do benefício da gratuidade nos transportes coletivos públicos urbanos.

Vale rememorar, por oportuno, que os Municípios, podendo legislar sobre assuntos de interesse local, dispõem de competência normativa para validamente estabelecer regras sobre o transporte coletivo de passageiros no âmbito intramunicipal, como tem sido reiteradamente proclamado por esta Corte Suprema (ADI 845/AP, Rel. Min. EROS GRAU – RE 107.337-EDv/RJ, Red. p/ o acórdão Min. ILMAR GALVÃO, v.g.).

Cumpre acentuar, a propósito do tema, a orientação de MARCO ANTONIO VILAS BOAS (“Estatuto do Idoso Comentado”, p. 77, 3ª ed., 2011, Forense), cujo magistério, a respeito da matéria em exame, é bastante expressivo:

A legislação local (município) poderá dispor sobre a gratuidade de transportes urbanos previstos no ‘caput’ do artigo para as pessoas com idade acima de 60 (sessenta) anos. Diante dessa hipótese que concede mais direitos e vantagens aos idosos, como Ordem Social, não há, consequentemente, choque com a Norma Maior. Se a lei ordinária não pode limitar direitos sociais conferidos pela Carta Constitucional (a não ser quando haja previsão nela mesma), pode, contudo, em inúmeros casos, dar-lhe um sentido mais avançado.” (grifei)

Vê-se, desse modo, que a abrangência da autonomia política municipal – que possui base eminentemente constitucional (só podendo, por isso mesmo, sofrer as restrições emanadas da própria Constituição da República) – estende-se à prerrogativa, que assiste ao Município, de “legislar sobre assuntos de interesse local” (CF, art. 30, I), tal como o fez, validamente, o Município de Barretos/SP, em benefício de seus cidadãos idosos.

Tenho para mim – ao reconhecer que existe, em favor da autonomia municipal, uma “garantia institucional do mínimo intangível” (PAULO BONAVIDES, “Curso de Direito Constitucional”, p. 320/322, item n. 7, 12ª ed., 2002, Malheiros) – que o art. 30, inciso I, da Carta Política não autoriza a utilização de recursos hermenêuticos cujo emprego possa importar em grave vulneração à autonomia constitucional dos Municípios, especialmente se se considerar que a Constituição da República criou, em benefício das pessoas municipais, um espaço mínimo de liberdade decisória que não pode ser afetado, nem comprometido, em seu concreto exercício, por interpretações que culminem, tal como o fez o E. Tribunal de Justiça local, por lesar o mínimo essencial inerente ao conjunto (irredutível) das atribuições constitucionalmente deferidas aos Municípios.

O exame da presente causa permite-me concluir, examinada a questão sob a perspectiva do art. 30, I, da Constituição, que o diploma legislativo editado pelo Município de Barretos/SP encontra suporte legitimador no postulado da autonomia municipal, que representa, no contexto de nossa organização político-jurídica, como já enfatizado, umas das pedras angulares sobre as quais se estrutura o próprio edifício institucional da Federação brasileira.

De outro lado, impende salientar que a concessão da gratuidade do transporte coletivo público urbano às pessoas entre 60 (sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos de idade, por iniciativa parlamentar, não configura, por si só, causa geradora de aumento de despesa pública ou situação evidenciadora da necessidade de prévia dotação orçamentária, tal como assinalaram, nestes autos, a Câmara Municipal de Barretos/SP (fls. 329/332) e o eminente Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo (fls. 455/456).

Essa afirmação torna aplicável, ao caso, a jurisprudência que esta Corte consolidou a propósito do tema referente à reserva de iniciativa, sempre excepcional, do processo de formação das leis.

Cabe observar, no ponto, por necessário, que o Plenário desta Suprema Corte, ao julgar a ADI 3.394/AM, Rel. Min. EROS GRAU, apreciando esse específico aspecto da controvérsia, firmou entendimento que torna acolhível a pretensão recursal ora em exame, como resulta evidente da seguinte passagem do voto do eminente Ministro EROS GRAU:

“Afasto, desde logo, a alegada inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa, já que, ao contrário do afirmado pelo requerente, a lei atacada não cria ou estrutura qualquer órgão da Administração Pública local. Também não procede a alegação de que qualquer projeto de lei que crie despesa só poderá ser proposto pelo Chefe do Executivo estadual. As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em ‘numerus clausus’, no artigo 61 da Constituição do Brasil, dizendo respeito às matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo. Não se pode ampliar aquele rol, para abranger toda e qualquer situação que crie despesa para o Estado-membro, em especial quando a lei prospere em benefício da coletividade.” (grifei)

Esse entendimento encontra apoio na jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou a propósito da iniciativa do processo legislativo (RTJ 133/1044 – RTJ 176/1066-1067), como o revela fragmento do julgado a seguir reproduzido:

“(...) - A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve, necessariamente, derivar de norma constitucional explícita e inequívoca. (...).” (RTJ 179/77, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Vale registrar, ainda, quanto à discussão sobre a necessidade de previsão orçamentária, a seguinte passagem do voto da eminente Ministra CÁRMEN LÚCIA, proferido por ocasião do julgamento plenário da ADI 3.768/DF, de que ela própria foi Relatora:

A constitucionalidade da garantia não ficará comprometida, em qualquer caso, pois o idoso tem, estampado na Constituição, o direito ao transporte coletivo urbano gratuito. Quem assume o ônus financeiro não é questão que se resolve pela inconstitucionalidade da norma que repete o quanto constitucionalmente garantido.” (grifei)

Cumpre ressaltar, por relevante, que esse entendimento foi reafirmado no julgamento proferido no âmbito desta Corte a propósito de questão similar à que ora se examina nesta sede recursal (RE 573.040/SP, Rel. Min. DIAS TOFFOLI).

Cabe destacar, finalmente, tratando-se da hipótese prevista no art. 125, § 2º, da Constituição da República, que o provimento e o improvimento de recursos extraordinários interpostos contra acórdãos proferidos por Tribunais de Justiça em sede de fiscalização normativa abstrata têm sido veiculados em decisões monocráticas emanadas dos Ministros Relatores da causa no Supremo Tribunal Federal, desde que, tal como sucede na espécie, o litígio constitucional já tenha sido definido pela jurisprudência prevalecente no âmbito deste Tribunal (RE 243.975/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE – RE 334.868-AgR/RJ, Rel. Min. AYRES BRITTO – RE 336.267/SP, Rel. Min. AYRES BRITTO – RE 353.350- -AgR/ES, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – RE 369.425/RS, Rel. Min. MOREIRA ALVES – RE 371.887/SP, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA – RE 396.541/RS, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – RE 415.517/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – RE 421.271-AgR/RJ, Rel. Min. GILMAR MENDES – RE 444.565/RS, Rel. Min. GILMAR MENDES – RE 461.217/SC, Rel. Min. EROS GRAU – RE 501.913/MG, Rel. Min. MENEZES DIREITO – RE 592.477/SP, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI – RE 601.206/SP, Rel. Min. EROS GRAU, v.g.).

Sendo assim, e pelas razões expostas, conheço do presente recurso extraordinário, para dar-lhe provimento (CPC, art. 557, § 1º-A), em ordem a julgar improcedente a ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros no Estado de São Paulo.

Publique-se.

Brasília, 29 de abril de 2013.

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

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