Há poucos dias, Migalhas noticiou que o pleno do STF, por maioria de votos, decidiu que processos versando sobre previdência complementar privada são de competência da Justiça comum. A fim de modular os efeitos da decisão e evitar maiores tumultos, o mesmo Tribunal determinou que os processos que já haviam recebido sentença de mérito até a data do julgamento (20/2/13) deveriam permanecer na JT. A todos os demais, o destino será a Justiça comum.
O tema é relevante e a decisão suscita reflexões.
As teses contrapostas no RExt 586.453
De acordo com a razão esposada pela ministra Ellen Gracie, hoje aposentada, relatora do processo em 2009, a relação entre a entidade de previdência complementar e os beneficiários vislumbrada no caso não poderia ser trabalhista, pois trata-se de contrato de trabalho já extinto – o reclamante já estava aposentado no momento da propositura da ação.
Acompanhada pelo ministro Dias Toffoli, que discorreu mais detidamente sobre a questão, a tese aberta por Gracie apoia-se sobretudo no texto do §2° do art. 202 da CF/88, com a redação trazida pela EC 20/98, segundo o qual
"As contribuições do empregador, os benefícios e as condições contratuais previstas nos estatutos, regulamentos e planos de benefícios das entidades de previdência privada não integram o contrato de trabalho dos participantes, assim como, à exceção dos benefícios concedidos, não integram a remuneração dos participantes, nos termos da lei".
É esse o entendimento do renomado constitucionalista Luís Roberto Barroso, autor de minucioso parecer sobre o tema, para quem a redação do art. 202 da CF/88 trazida pela EC 20/98 é verdadeira matriz da autonomia da previdência privada no Brasil, característica que aliada à facultatividade, atrai para o instituto os princípios norteadores do Direito Privado. Para o jurista, além da literalidade do texto os elementos histórico, sistemático e teleológico vão mostrar que segregar a previdência privada do contrato de trabalho foi a real intenção do constituinte derivado, que em um contexto de crise financeira da previdência pública, buscou preservar a previdência privada complementar da rigidez do regime jurídico trabalhista
"que impede quaisquer alterações no contrato de trabalho, ainda que consensuais, que possam ser de alguma forma consideradas prejudiciais aos empregados. Em segundo lugar, a segregação impede a incidência, sobre a previdência privada complementar, dos altos custos associados às relações trabalhistas".
O ministro Joaquim Barbosa, relator do acórdão, ao apresentar seu voto-vista na sessão do último dia 20 de fevereiro, acompanhou o posicionamento do ministro Cezar Peluso (aposentado) em voto apresentado em março de 2010, no qual defendeu um exame caso a caso. De acordo com esse entendimento, a competência é da JT sempre que a filiação à previdência privada decorrer do contrato de trabalho – previdência privada complementar fechada, caso dos chamados fundos de pensão –, entendimento vencido que contou também com o voto da ministra Cármen Lúcia.
"Refuto a tese de que o artigo 202, parágrafo 2º, poderia amparar a conclusão de que a JT não seria mais competente para decidir as ações que envolvem o pleito de complementação da aposentaria", afirmou o presidente da Corte em fundamentação ao seu voto.
De fato, para boa parte da doutrina o estabelecimento de que os valores pagos a título de previdência privada não integram as verbas remuneratórias para fins de cálculos trabalhistas não equivale a impedir que suas controvérsias sejam examinadas pela JT, especializada e estruturada para exame das relações de trabalho. Para a JT, aliás, a matéria já estava de há muito pacificada, conforme entendimento jurisprudencial consolidado na OJ 26, da SDI 1 do TST.
Para o advogado Mauro de Azevedo Menezes, que concedeu entrevista exclusiva à TV Migalhas (veja abaixo), a decisão proferida no RExt 586.453 representa mudança de posicionamento do próprio STF, que ao longo de décadas reservou à justiça comum a apreciação das demandas oriundas de contratos de previdência privada complementar aberta e à JT os casos de demandas nascidas de contrato de previdência privada complementar fechada, em que o contrato de trabalho é conditio sine qua non para a filiação ao sistema.
É com pesar que o causídico constata que com essa mudança de entendimento um STF dividido (a decisão foi por maioria) deita fora toda uma tradição jurisprudencial construída lentamente, um saber especializado nascido de uma Justiça "vocacionada para temas atinentes ao contrato de trabalho", em verdadeira "incongruência institucional" e retrocesso para o jurisdicionado. Completa seu lamento lembrando ainda a celeridade da JT e o "movimento do constituinte derivado" expresso na EC 45/04.
A celeridade processual na JT
Criada para atender com especialidade as controvérsias surgidas em razão do contrato laboral, a JT ergue-se sobre pilares procedimentais e até mesmo sobre alguns princípios diversos da chamada Justiça comum: deve pautar-se pela oralidade, pela informalidade, pela economia, pelo reconhecimento da preponderância dos fins dos atos processuais em detrimento de suas formas. Tudo isso, é claro, para melhor atender o trabalhador, que por reclamar verbas de natureza alimentar, merece atenção e sobretudo celeridade no exame de sua causa.
De fato, os números mostram que a JT é mais célere e dinâmica do que a Justiça comum, que no entanto passará a receber, pela decisão, as demandas oriundas de contratos de previdência privada complementar fechada, que hoje perfazem cerca de 20% dos processos em tramitação no TST.
A EC 45/04 e a decisão do STF
A decisão segue em direção contrária à EC 45/04, que buscou, por meio da alteração no art. 114 da CF/88, alargar a competência da JT. Ao trocar a expressão "dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregados" (grifo nosso) simplesmente por "relação de trabalho", o constituinte derivado buscou ajustar a competência dessa Justiça a fim de que todas as relações em que haja desequilíbrio econômico entre as partes capaz de reduzir ou limitar a capacidade postulatória possam ser apreciadas pelo olhar diferenciado da justiça especializada, cuja razão de ser repousa exatamente na capacidade de lidar com essas distorções.