Se para nós, brasileiras letradas do século XXI, leitoras de Migalhas, donas de nossas próprias vidas, não parece fazer muito sentido, à primeira vista, falar em discriminação contra a mulher, é forçoso reconhecer o longo caminho que nos trouxe até aqui, e render homenagem às que vieram antes, pioneiras em caminhos cerrados. É com essa intenção que Migalhas traz alguns nomes de ontem à lembrança:
Bertha Lutz – filha do sanitarista Adolfo Lutz, Bertha foi educada na Europa: formou-se em ciências naturais pela Sorbonne; de volta ao Brasil, foi trabalhar no Museu Nacional, tornando-se a segunda mulher funcionária pública brasileira. Destacou-se, nas décadas de 1920 e 1930, pela participação ativa nas campanhas para o voto feminino e participação política; nessa condição, apresentou à Assembleia Constituinte de 1933 (na qualidade de deputada suplente) projeto de lei tratando dos direitos civis femininos: poder conjugal, pátrio poder, direito ao trabalho, à licença maternidade, à saúde e à assistência social;
Carlota de Queirós – médica paulista, em 1933 é eleita por SP a primeira deputada Federal do país. Em seu discurso de posse, resumiu a trajetória histórica das mulheres brasileiras:
Não há muitos anos, o lar era a unidade produtora da sociedade. Tudo se fabricava ali: o açúcar, o azeite, a farinha, o pão, o tecido. E, como única operária, a mulher nele imperava, empregando todas as suas atividades. Mas, as condições de vida mudaram. As máquinas, a eletricidade, substituindo o trabalho do homem, deram novo aspecto à vida. As condições financeiras da família exigiram da mulher nova adaptação. Através do funcionalismo e da indústria, ela passou a colaborar na esfera econômica. E, o resultado dessa mudança, foi a necessidade que ela sentiu de uma educação mais completa. As moças passaram a estudar nas mesmas escolas que os rapazes, para obter as mesmas oportunidades na vida. E assim foi que ingressaram nas carreiras liberais. Essa nova situação despertou-lhes o interesse pelas questões políticas e administrativas, pelas questões sociais. O lugar que ocupo neste momento nada mais significa, portanto, do que o fruto dessa evolução.”
Para o Senado, contudo, as primeiras parlamentares só seriam eleitas em 1990: Júnia Marise, por Minas Gerais, e Marluce Pinto, por Roraima. Atualmente, menos de 10% do Senado Federal brasileiro é composto por mulheres: elas são 8 de 81 senadores.
Em 1994, Roseana Sarney foi a primeira mulher escolhida pelo voto popular para governar um Estado, o Maranhão e em 2011, Dilma Rousseff tomou posse como a primeira mulher presidente do Brasil.
História
Criado durante a primeira Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, realizada em 1910, em Copenhague, o chamado Dia Internacional da Mulher nasceu, especula-se, inspirado por longa greve de costureiras nova-iorquinas por melhores condições de trabalho, ocorrida entre 1909 e 1910.
A origem da data está ligada, pois, à entrada das mulheres no mercado de trabalho, antes reservado apenas aos homens, inserindo-se em uma longa linha de lutas e conquistas para fazer algo a que estavam proibidas.
No Brasil, as conquistas são recentíssimas. Durante o período colonial, as únicas opções para a mulher eram o casamento ou o convento; mulheres plenamente capazes intelectualmente nada faziam a não ser trabalhos manuais; muitas nem sequer aprendiam a ler, no que perdiam para as mulheres de países protestantes, que para ler a Bíblia, conheciam as letras. Não participavam de discussões políticas, não tinham opiniões. Seguiam a vontade do pai e depois de casadas a do marido, que por sua vez seguiam as convenções pouco flexíveis da sociedade.
No Império não foi muito diferente; talvez a situação tenha se alterado para as moradoras da Corte, as mulheres retratadas por Alencar, Machado, leitoras de romances, frequentadoras do teatro, da ópera. Mas que ainda assim dependiam de um pretendente, de um dote para selar-lhes o destino. Continuavam esperando que viesse de fora de si os rumos para suas vidas.
Foi apenas com a industrialização e urbanização (o início da sociedade de massas), a partir dos anos 30, que a mulher brasileira conquistou direito ao voto e a uma maior participação na vida pública, e passou, nas décadas seguintes, conforme pertencesse a classe social mais abastada, a estudar e assim tomar parte ativamente da vida social.
Violência de gênero
Como profissionais do Direito, não podemos deixar de anotar que a violência de gênero é um fenômeno reconhecido cientificamente e estudado ao redor do globo, e que infelizmente ainda produz muitas vítimas – alguns casos emblemáticos merecem ser lembrados, como o da estudante paquistanesa Malala Yousafzai, baleada por radicais islâmicos por defender o direito de meninas estudarem, em um país que vem perdendo a batalha do Estado laico; o trágico estupro de uma jovem dentro de um ônibus, na Índia, que acabou revelando tratar-se de apenas ponta de iceberg de uma cultura violenta e preconceituosa; o longo e perverso caminho que permitiu os diversos femicídios das mulheres de Cidade Juaréz, no México, por anos seguidos, tantos outros.
No Brasil o quadro também ainda persiste. Nesse contexto, especialistas em Direito Penal e em políticas públicas de proteção às mulheres são unânimes ao marcarem a lei Maria da Penha (11.340/06), como significativo avanço no combate à violência de gênero no país.
Recentemente, nos autos da Rcl 14.620, a ministra Rosa da Rosa repisou entendimento garantindo a natureza pública incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal praticado contra a mulher no ambiente doméstico; no julgamento da ADIn 4.424, a Suprema Corte já havia entendido que deixar a mulher – autora da representação – decidir sobre o início da ação penal significaria “desconsiderar a assimetria de poder decorrente de relações histórico-culturais, o que contribuiria para reduzir sua proteção e prorrogar o quadro de violência, discriminação e ofensa à dignidade humana”.
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1 Aprovada a Lei nº 660, de 25 de outubro de 1927, diversas mulheres requereram suas inscrições e participaram das eleições de 5 de abril de 1928; seus votos, contudo, foram anulados pela Comissão de Poderes do Senado. Somente com o Código Eleitoral de 1932, Decreto 21.076/1932, é que "o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo…" poderia votar efetivamente.)