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TJ/RS anula doação realizada com intuito de não pagar dívida futura

Ao constatar fraude com objetivo de prejudicar futuros credores, é possível a procedência de ação pauliana mesmo para doações ocorridas antes da constituição do débito. A decisão unânime, da 21ª Câmara Cível do TJ/RS, anulou doação de imóvel realizada por ex-funcionário da Câmara de Vereadores de Carazinho/RS a seus filhos.

22/3/2011

Doação

TJ/RS anula doação realizada com intuito de não pagar dívida futura

Ao constatar fraude com objetivo de prejudicar futuros credores, é possível a procedência de ação pauliana mesmo para doações ocorridas antes da constituição do débito. A decisão unânime, da 21ª câmara Cível do TJ/RS, anulou doação de imóvel realizada por ex-funcionário da Câmara de Vereadores de Carazinho/RS a seus filhos.

Segundo o MP, o réu alienou de forma gratuita o bem com o objetivo de não pagar crédito a ser apurado em ação de improbidade contra ele, ainda em andamento. O valor do dano ao erário alcançaria quase R$ 500 mil, confessado e comprovado em sentença criminal.

O desembargador Genaro José Baroni Borges, relator do recurso, afirmou que "não pode o Poder Judiciário ressalvar condutas que, prenhes de má-fé, tentem burlar o sistema legal vigente". Ressaltou ainda que, segundo o CC (clique aqui), somente os credores que já o eram ao tempo da doação podem pleitear sua anulação.

Entretanto, a doutrina e jurisprudência admitem a relativização desse pressuposto quando configurado comportamento malicioso das partes que se desfazem de seus bens diante da iminência de contraírem dívida.

Borges apontou, neste caso, algumas circunstâncias anteriores à doação que revelam fraude preordenada para atingir credor futuro: a alienação foi gratuita e dirigida aos filhos do ex-funcionário; havia notícias da imprensa local a respeito dos atos de improbidade do réu; foi instaurada sindicância para apurar os ilícitos e o funcionário já havia sido afastado do cargo na Câmara.

Assim, entendeu que deve ser confirmada a decisão de 1º grau e anulada a doação. Os desembargadores Francisco José Moesch e Marco Aurélio Heinz acompanharam o voto do relator.

Confira abaixo a decisão na íntegra.

_____________

APELAÇÃO. AÇÃO PAULIANA. FRAUDE PREORDENADA PARA ATINGIR CREDOR FUTURO. INEFICÁCIA DO NEGÓCIO JURÍDICO POSSIBILIDADE. EXEGESE DO ART. 185 DO CÓDIGO CIVIL.

Preliminar rejeitada. Apelo desprovido. Unânime.

APELAÇÃO CÍVEL

VIGÉSIMA PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL

Nº 70036795342

COMARCA DE CARAZINHO

D.J.S. E OUTROS - APELANTE

MINISTERIO PUBLICO - APELADO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Vigésima Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em rejeitar a preliminar e negar provimento ao recurso, nos termos dos votos a seguir transcritos.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores DES. FRANCISCO JOSÉ MOESCH (PRESIDENTE E REVISOR) E DES. MARCO AURÉLIO HEINZ.

Porto Alegre, 16 de março de 2011.

DES. GENARO JOSÉ BARONI BORGES,

Relator.

RELATÓRIO

DES. GENARO JOSÉ BARONI BORGES (RELATOR)

Trata-se de recurso de apelação interposto por D.J.S. E OUTROS contra sentença proferida na ação pauliana proposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO.

A d. sentença julgou procedente o pedido para declarar a nulidade da doação do imóvel matriculado sob o n.º 63.253, efetuada por D.J.S. e E.J.. Condenou os réus ao pagamento das custas. Deixou de condená-los ao pagamento de honorários advocatícios, pois tal verba não é devida ao Ministério Público.

Em suas razões, os apelantes suscitam preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério Público. No mérito, afirmam que a doação foi realizada quase um ano antes de ser ajuizada a ação civil pública, bem como a o Inquérito Civil n.º 23/05 foi aberto mais de um mês após a doação. Sustentam que a doação do imóvel em nada tem a ver com as supostas denúncias de irregularidades cometidas pelo requerido D.J.S. enquanto trabalhava na Câmara de Vereadores de Município. Afirmam que não restou comprovada a intenção de fraude a credores. Aduzem que existiam outros bens em nome do requerido D.J.S., o que não configura a insolvência do demandado. Colacionam julgados. Postulam o provimento do recurso.

Foram apresentadas contrarrazões.

Neste grau de jurisdição, o Ministério Público manifesta-se pelo desprovimento do recurso.

É o relatório.

VOTOS

DES. GENARO JOSÉ BARONI BORGES (RELATOR)

Em 06 de junho de 2006 o Ministério Público propôs AÇÃO PAULIANA com vistas a anular doação graciosa de imóvel feita aos Apelantes por seus pais D.J.S. e sua mulher E.J.A.S..

Para o Autor, D.J.S. teria procedido fraudulentamente, alienando gratuitamente bens que o reduziu à insolvência, com o propósito deliberado de frustrar o pagamento de crédito futuro a ser apurado em AÇÃO DE IMPROBIDADE em curso.

O Código Civil disciplinou o instituto da fraude contra credores:

“Art. 158- Os negócios jurídicos de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos.

Parágrafo 1º - Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.

Parágrafo 2º - Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles”.

A sanção à fraude contra credores tem fundamento “na ilicitude absoluta “latu sensu”, entendendo-se que violou dever jurídico - o dever de não dispor do patrimônio a ponto de prejudicar os credores já existentes, que contam com a estabilidade patrimonial.” (Pontes de Miranda – Tratado de Direito Privado – pag. 416 – tomo IV- Borsoi – terceira edição).

Supõe, pressupostos necessários, (a) a prática de ato que reduza o patrimônio do devedor ou o torne insolvente, (b) o prejuízo que o ato considerado fraudulento tenha causado ao credor - “ eventus damni”- e (c) o “consilium fraudis”, ou seja o concerto entre os que participaram do ato (“particeps fraudis”), cientes do estado de insolvência, com o propósito de fraudar , “circunstância ... dispensada se o ato fraudulento é gratuito, porque então traz em si a presunção de má-fé.” (Caio Mário- Instituições de Direito Civil – vol. I - pag. 345 – Forense- décima oitava edição).

Dúvida não há tenha a doação do imóvel constante do Registro nº R-15/63253 do Ofício de Registro de Imóveis de Tramandaí (fl. 39 v), reduzido D.J.S. à insolvência, basta ver o que lhe tocou na Separação Judicial Consensual (fl. 475), tendo em conta o valor do alcance aos cofres públicos – R$476.079,82 – confessado e comprovado. (Sentença Criminal no processo 009/2.06.0000798-9, Comarca de Carazinho (fls. 259/306) e Apelação-Crime nº 70018956466 – Quarta Câmara Criminal - (fls. 307/318).

Como gratuito e aos filhos, de presumir tivessem estes ciência do estado de insolvência, como também presumida a má-fé.

Resta saber da anterioridade do crédito, que enseja a preliminar de ilegitimidade suscitada.

O art. 158, parágrafo 2º, explicita que “só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles”. O Código Civil Revogado, com melhor redação, também assim dispunha no art. 106, parágrafo único.

É o “princípio da legitimação por anterioridade” a que se refere Pontes de Miranda, para quem “o crédito – não a pretensão, ou a ação – precisa ter nascido antes do ato de disposição.

(..............)

O crédito há de já existir quando ocorre o ato de disposição. Pode ser ilíquido; pode depender de liquidação judicial. Se o termo inicial é somente para a eficácia pretensional, ou acional, ou de exceção, já existindo crédito, não há dúvida quanto a estar satisfeito o pressuposto da anterioridade do crédito”. ( ob. e vol. citados - pag. 436).

Também assim a lição de Caio Mário: a ação pauliana “a) deve ser proposta pelo credor prejudicado, que já o fosse contemporaneamente ao ato incriminado, pois o posterior não tem de que se queixar, por encontrar desfalcado o patrimônio ao assumir a qualidade creditória”. (Ob. e vol. citados – pag. 345).

Orlando Gomes, todavia, já punha em xeque o dogma da anterioridade afirmando: “de regra, só é anulável a transmissão feita depois de ter sido contraída a dívida, mas não há razão para essa limitação porque o ato de alienação praticado anteriormente pode ser dolosamente preordenado para o fim de prejudicar a satisfação do futuro credor”. (Obrigações – Forense - Quarta edição – pag. 283).

No mesmo sentido a lição de Yussef Said Cahali, que lembra:

“a jurisprudência mais atualizada, contudo, em antecipação meritória, vem reconhecendo que, embora a anterioridade do crédito, relativamente ao ato impugnado como fraudulento, seja, via de regra, pressuposto de procedência da ação pauliana, esse pressuposto é afastável quando ocorre a fraude predeterminada para atingir credores futuros.” (Fraudes contra Credores – RT- 1989 – pag. 123).

Adiante, salienta o mesmo autor:

“De resto, a jurisprudência de nossos tribunais é tranqüila na esteira de tal entendimento, com a afirmação iterativa no sentido de que a anterioridade do crédito se determina pela causa que dá origem ao referido crédito, causa da qual surge a sua vida jurídica; para que um crédito seja considerado anterior ao ato fraudulento, basta que seu princípio exista antes da conclusão deste ato, não devendo confundir-se o crédito em si com o documento ou a sentença que apenas o reconhece e o declara”. ( pag. 127).

Nessa linha seguiu a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no RESP 1092134, relatora a Em. Min. Nancy Andrighi:

“PROCESSO CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FRAUDE PREORDENADA PARA PREJUDICAR FUTUROS CREDORES. ANTERIORIDADE DO CRÉDITO. ART. 106, PARÁGRAFO ÚNICO, CC/16 (ART. 158, § 2º, CC/02). TEMPERAMENTO.

1. Da literalidade do art. 106, parágrafo único, do CC/16 extrai-se que a afirmação da ocorrência de fraude contra credores depende, para além da prova de consilium fraudis e de eventus damni, da anterioridade do crédito em relação ao ato impugnado.

2. Contudo, a interpretação literal do referido dispositivo de lei não se mostra suficiente à frustração da fraude à execução. Não há como negar que a dinâmica da sociedade hodierna, em constante transformação, repercute diretamente no Direito e, por consequência, na vida de todos nós. O intelecto ardiloso, buscando adequar-se a uma sociedade em ebulição, também intenta - criativo como é – inovar nas práticas ilegais e manobras utilizados com o intuito de escusar-se do pagamento ao credor. Um desses expedientes é o desfazimento antecipado de bens, já antevendo, num futuro próximo, o surgimento de dívidas, com vistas a afastar o requisito da anterioridade do crédito, como condição da ação pauliana.

3. Nesse contexto, deve-se aplicar com temperamento a regra do art. 106, parágrafo único, do CC/16. Embora a anterioridade do crédito seja, via de regra, pressuposto de procedência da ação pauliana, ela pode ser excepcionada quando for verificada a fraude predeterminada em detrimento de credores futuros.

4. Dessa forma, tendo restado caracterizado nas instâncias ordinárias o conluio fraudatório e o prejuízo com a prática do ato – ao contrário do que querem fazer crer os recorrentes – e mais, tendo sido comprovado que os atos fraudulentos foram predeterminados para lesarem futuros credores, tenho que se deve reconhecer a fraude contra credores e declarar a ineficácia dos negócios jurídicos (transferências de bens imóveis para as empresas Vespa e Avejota).

5. Recurso especial não provido.”

Do corpo do v. acórdão colho a passagem seguinte:

“A ordem jurídica, como fenômeno cultural, deve sofrer constantemente uma releitura, na busca pela eficácia social do Direito positivado. Assim, aplicando-se com temperamento a regra contida no referido preceito legal, entendo que, embora a anterioridade do crédito- relativamente ao ato impugnado- seja, via de regra, pressuposto de procedência da ação pauliana, ela pode ser relativizada quando for verificada a fraude predeterminada para atingir credores futuros, ou seja, o comportamento malicioso dos recorrentes, no sentido de dilapidarem o seu patrimônio na iminência de contraírem débito frente à requerida”.

No mesmo sentido e bem antes já decidira aquela Corte, no julgamento do RESP 10.096/RJ:

“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO PAULIANA. CREDITO. ANTERIORIDADE. NÃO PROVIMENTO. O PARAGRAFO UNICO DO ART. 106 DO CODIGO CIVIL, EM INTERPRETAÇÃO ATUALIZADA DO VELHO ESTATUTO, NÃO REQUER O CREDITO LIQUIDO E DOCUMENTADO, SENDO BASTANTE A CAUSA GERADORA DO DIREITO.” (Rel. Min. Cláudio Santos).

Alinho-me a esse entendimento.

É que as circunstâncias, no caso, revelam fraude preordenada, predeterminada, para atingir credor futuro – o erário público. São elas: a) doação feita aos filhos; (b) notícia dos atos de improbidade cometidos por D.J.S. veiculada pela imprensa local (fl. 22); c) instauração de Comissão de Sindicância para apurar os atos ilícitos cometidos por D.J.S. na área contábil e financeira da Câmara Municipal de Carazinho (fl. 23); d) ciência de seu afastamento do quadro de funcionários da Câmara (fl. 26) – tudo a ocorrer antes da liberalidade; depois, (aa) condenação criminal de D.J.S. por peculato, oportunidade em que apurado o valor do alcance (fls. 176/284); (ab) ajuizamento da ação de improbidade.

Afinal, não pode o Poder Judiciário ressalvar condutas que, prenhes de má-fé, tentem “burlar o sistema legal vigente”, como assentou a Min. Nancy Andrighi.

Por todo o exposto, rejeito a preliminar e nego provimento à apelação.

É o voto.

DES. FRANCISCO JOSÉ MOESCH (PRESIDENTE E REVISOR) - De acordo com o(a) Relator(a).

DES. MARCO AURÉLIO HEINZ - De acordo com o(a) Relator(a).

DES. FRANCISCO JOSÉ MOESCH - Presidente - Apelação Cível nº 70036795342, Comarca de Carazinho: "REJEITARAM A PRELIMINAR E NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO, UNÂNIME."

Julgador(a) de 1º Grau: TAIS CULAU DE BARROS

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