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Confira a íntegra do voto de desempate do ministro Celso de Mello sobre parcelamento de precatórios

Leia a íntegra do voto de desempate do ministro Celso de Mello na ADIn 2362, em que o plenário do STF suspendeu dispositivo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) que permitia o pagamento de precatórios pendentes na data da promulgação da EC 30/2000, de forma parcelada, em até dez anos.

13/12/2010

Precatórios

Confira a íntegra do voto de desempate do ministro Celso de Mello sobre parcelamento de precatórios

Leia a íntegra do voto de desempate do ministro Celso de Mello na ADIn 2362, em que o plenário do STF suspendeu dispositivo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que permitia o pagamento de precatórios pendentes na data da promulgação da EC 30/2000, de forma parcelada, em até dez anos.

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MED. CAUT. EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.362 DISTRITO FEDERAL

VOTO

(Desempate)

(s/ os precatórios pendentes na data de promulgação da EC 30/2000)

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Quero registrar, inicialmente, a excelência dos votos proferidos no julgamento da presente causa, com especial destaque para o voto proferido pelo eminente Senhor Ministro NÉRI DA SILVEIRA, então Relator.

Entendo que se impõe, ainda que sumariamente, um exame prévio em torno da significação constitucional da necessidade de expedição dos precatórios judiciários em nosso sistema jurídico.

Como se sabe, o regime constitucional de execução por quantia certa contra o Poder Público, qualquer que seja a natureza do crédito exeqüendo (RTJ 150/337) - ressalvadas as obrigações definidas em lei como de pequeno valor -, impõe a necessária extração de precatório, cujo pagamento deve observar, em obséquio aos princípios ético-jurídicos da moralidade, da impessoalidade e da igualdade, a regra fundamental que outorga preferência apenas a quem dispuser de precedência cronológica (“prior in tempore, potior in jure”).

A exigência constitucional pertinente à expedição de precatório - com a conseqüente obrigação imposta ao Estado de estrita observância da ordem cronológica de apresentação desse instrumento de requisição judicial de pagamento - tem por finalidade (a) assegurar a igualdade entre os credores e proclamar a inafastabilidade do dever estatal de solver os débitos judicialmente reconhecidos em decisão transitada em julgado (RTJ 108/463), (b) impedir favorecimentos pessoais indevidos e (c) frustrar tratamentos discriminatórios, evitando injustas perseguições ou preterições motivadas por razões destituídas de legitimidade jurídica.

É certo que a Constituição da República exige que a entidade estatal – respeitando, sempre, a ordem de precedência cronológica em que se situam os credores do Estado - pague os seus débitos judiciais, ainda mais porque se trata de débitos amparados pela autoridade da coisa julgada.

A Emenda Constitucional nº 30/2000, ao acrescentar, ao ADCT, o art. 78, veio a permitir, com essa nova regra, o parcelamento dos precatórios pendentes de pagamento na data de promulgação de referida Emenda, vale dizer, em 13/09/2000.

Com efeito, o art. 78 do ADCT, após definir algumas ressalvas à inovação normativa dele decorrente, estabeleceu que “os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda (...) serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos” (grifei). O eminente Ministro NÉRI DA SILVEIRA, Relator originário das presentes ações diretas, ao examinar a alegada inconstitucionalidade da expressão normativa que venho de referir (“... os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda ...”), entendeu relevantes os fundamentos que dão suporte à pretensão de inconstitucionalidade veiculada tanto na ADI 2.356-MC/DF quanto na ADI 2.362-MC/DF, fazendo-o em passagem que ora reproduzo: “Em realidade, o sistema de precatórios definido na Carta Magna é garantia constitucional do cumprimento de decisão judicial contra a Fazenda Pública, que se define em regras de natureza processual conducentes à efetividade da sentença condenatória trânsita em julgado por quantia certa contra entidades de direito público.

4. Assim entendendo o sistema de precatório judiciário, compreendo que a norma transitória do art. 78 do ADCT de 1988, neste introduzida pelo art. 2º da Emenda Constitucional nº 30/2000, há de merecer análise de sua validade, a partir da distinção entre ‘precatórios pendentes’ à data da promulgação da Emenda Constitucional, e precatórios que se extraírem, após a promulgação referida, nas ações iniciadas até 31 de dezembro de 1999. No primeiro caso, há uma inequívoca presunção de sentença judiciária trânsita em julgado, pois esse atributo é pressuposto à expedição de precatório. Mais. Se esse já se encontra ‘pendente de pagamento’, também não cabe dúvida quanto a se cuidar de sentença judiciária, não só trânsita em julgado, como de valor certo e líqüido a ser pago. Existe, ademais, em favor do credor, requisição de pagamento. Desse modo, havia um direito, à data da Emenda Constitucional nº 30, de 2000, constitucionalmente garantido, de o pagamento fazer-se até o final do exercício seguinte’, tal como estipulado no § 1º do art. 100 da Constituição, na redação original.

Penso que, em situação como essa, a alteração do sistema da Constituição, em ordem a que a Fazenda Pública devedora possa pagar esses ‘precatórios pendentes’, em ‘prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos’, fere não só o direito adquirido, resultante da norma constitucional do art. 100 e § 1º, na redação original, do beneficiário do precatório, como desrespeita, imediatamente, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Os precatórios em alusão extraíram-se no regime de pagamento procedente do art. 100 e § 1º, da Lei Maior, ou seja, com pagamento previsto para o exercício seguinte ao de sua apresentação até 1º de julho. Essa situação jurídica está definida, por força da Constituição, com inequívoco benefício ao titular do direito ao pagamento pela Fazenda Pública, por força de decisão judicial transitada em julgado.

No que concerne, pois, aos ‘precatórios pendentes’, a alteração pretendida encontra óbice no art. 60, § 4°, IV, da Constituição, porque afronta ‘direitos e garantias individuais’, assim como definidos nos arts. 100, § 1°, e 5°, XXXVI, e § 2°, da Constituição. Não cabia, em realidade, editar norma que beneficiará a Fazenda Pública devedora, alterando os sistemas em vigor à data do precatório, com iniludível grave prejuízo, ao credor, vitorioso na demanda judicial contra a Fazenda Pública.

É bem de ver que essa parte do dispositivo excede, inclusive no aspecto temporal, o que estipulou o art. 33 do ADCT, por decisão do constituinte originário, na implantação da nova ordem constitucional, em 1988, onde se previu a faculdade ao Poder Executivo, manifestada até cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, de satisfazer os ‘precatórios pendentes’ de pagamento na data da promulgação da Constituição, no prazo máximo de oito anos, dispositivo esse que mereceu duras críticas dos meios jurídicos do País, tido, no dizer de Ives Gandra Martins, no excerto transcrito, como ‘sério maculador da moralidade do Estado e autêntica homenagem ao calote oficial’. É exato, porém, que essa excepcionalidade temporal do art. 33 do ADCT não haveria de alcançar juízo de invalidade, porque emanada a norma da mesma fonte constituinte originária que estabelecera as regras do art. 100 e parágrafos, bem assim o sistema de direitos e garantias da nova Constituição, o que lhe assegurou ‘grau idêntico de eficácia e de autoridade jurídicas’, qual reconheceu esta Corte, dentre outros, no RE 161.343-2 – SP, rel. Min. Celso de Mello, em decisão de sua Primeira Turma, a 30.1.1993, DJU de 20.5.1994, p. 12256. De outra parte, é de ver a extensão que a norma do art. 78, ora introduzida no ADCT, teria, a partir da definição da abrangência de cláusula idêntica, ‘precatórios pendentes’, que esta Corte conferiu, na aplicação do art. 33 aludido. Assim, a Primeira Turma, no RE 159.174-1 – SP, rel Min. Moreira Alves, a 28.11.1995, DJU de 21.6.1996, p. 22294, decidiu, ‘verbis’: ‘Este dispositivo constitucional se aplica aos precatórios que, existentes quando da promulgação da atual Constituição, estavam pendentes de pagamento, ou por não terem sido cumpridos anteriormente, ou por estarem aguardando o momento em que deveriam ser cumpridos sem atraso’. Também no RE 161.103 – SP, a 19.10.1993, a Primeira Turma decidira (RTJ 151/309) em acórdão, relator Min. Ilmar Galvão, em cuja ementa se lê: ‘Ao permitir o pagamento parcelado dos precatórios pendentes à data da promulgação da Constituição, o art. 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias não autorizou qualquer distinção entre os expedidos antes ou no mesmo exercício em que promulgada a Carta’. No mesmo sentido, as decisões, dentre outras, no RE 148.445-4, rel. Min. Octávio Gallotti (RTJ 151/310) e no RE 161.343-2 – SP, rel. Min. Celso de Mello.

Cumpre, entretanto, desde logo, excluir da compreensão de ‘precatórios pendentes’, a que se refere o discutido art. 78 do ADCT, introduzido pela Emenda Constitucional nº 30/2000, art. 2º, os denominados ‘precatórios preteridos’, objeto do seqüestro previsto no art. 100, § 2º, da Constituição. De fato, na vigência do art. 33 do ADCT de 1988, esta Corte decidiu nesse sentido, no julgamento do RE 132.031-SP, que cuidava de parcelamento dos ‘precatórios pendentes’, à data da promulgação da Constituição de 1988. O relator, ilustre Ministro Celso de Mello, registrou em seu douto voto:

‘O acórdão objeto desta impugnação recursal corretamente enfatizou que a previsão constitucional de seqüestro - instrumento de utilização excepcional, somente justificável quando constatada a ofensa ao direito de precedência de credor mais antigo (CF, art. 100, § 2º) - tem a força de neutralizar a aplicação da norma de direito singular inscrita no art. 33 do ADCT/88, desde que ocorrente, como já enfatizado, a hipótese de desrespeito à ordem cronológica de apresentação dos precatórios.’

A seguir, acentuou o Ministro Celso de Mello:

‘Tenho por incensurável o pronunciamento jurisdicional emanado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que, - tendo presente a gravíssima circunstância de o Município ora recorrente haver burlado a ordem de apresentação cronológica dos precatórios, favorecendo, injustamente, com esse comportamento indevido, credores mais recentes, em detrimento da parte ora recorrida - proclamou a absoluta ineficácia da opção estatal pelo pagamento parcelado de que trata a norma consubstanciada no art. 33 do ADCT/88, aduzindo, ‘verbis’:

‘O preceito do art. 33 do ADCT não interfere na configuração da medida extrema do seqüestro. Para caracterização deste, suficiente a preterição do credor mais antigo, a benefício de credor mais recente. E após deferimento do seqüestro, o precatório que o ensejou não mais pode ser pendente de pagamento, para efeito de aplicação do art. 33 daquele ADCT. Cuida-se, agora, de crédito qualificado pela superveniência de ordem do Tribunal competente e sobre o qual a entidade devedora já não pode exercer sua discricionariedade de pagamento parcelado’.’

Ora, é bem de entender, assim, que a aplicação do art. 33 do ADCT de 1988 não é fato que implique conferir o reconhecimento, também, de validade ao ora discutido art. 78 do ADCT de 1988, neste introduzido não mais com a autoridade do poder constituinte originário, mas nos limites do poder constituinte derivado, que detém o Congresso Nacional, para alterar a Constituição, observados, a tanto, os parâmetros que o constituinte originário lhe traçou, vedando-lhe, de explícito, no art. 60, § 4º, deliberar sobre proposta de emenda tendente a abolir, dentre outros, ‘os direitos e garantias individuais’ (art. 60, § 4º, IV).

De outra parte, se é exato que o dispositivo não chega a anular a decisão judicial trânsita em julgado, de que resultou o precatório pendente, nem este, não menos certo é que, se houvesse de incidir a regra impugnada, lhes retiraria a possibilidade de imediata eficácia garantida pelo art. 100, § 1º, da Constituição, na redação original, com o pagamento do precatório pendente, no máximo, até o final do exercício seguinte, com evidente desprestígio à autoridade da sentença judiciária trânsita em julgado, ao determinar à Fazenda Pública o pagamento de quantia certa ao credor, assim prejudicado, e cujo precatório já se expedira, com a garantia constitucional de pagamento até o final do exercício seguinte. Essa circunstância autoriza invocar-se, aqui, também, a norma do art. 60, § 4º, III, da Lei Maior, pois, quanto aos ‘precatórios pendentes’, a deliberação do Congresso Nacional veio a privar da imediata eficácia a decisão judicial, com o cumprimento do precatório já pendente de pagamento, atentando contra a independência do Poder Judiciário, cuja autoridade é insuscetível de ser coarctada, máxime, no que concerne ao exercício do poder de julgar os litígios que lhe são submetidos e fazer cumpridas as suas decisões, inclusive contra a Fazenda Pública, na forma prevista na Constituição e na lei, sendo correto, no ponto, que essa como parte sucumbente não possui, no ordenamento jurídico instituído originariamente na Constituição de 1988, o privilégio de poder satisfazer suas obrigações de pagar decorrentes de sentenças judiciárias em prazos dilatados e prestações anuais. A regra excepcional que se pretende, destarte, introduzir, no art. 78 do ADCT, para perdurar por dez anos, abrangente também de ‘precatórios já pendentes de pagamento’ à data da promulgação da Emenda Constitucional nº 30, não há, no particular, de ser acolhida.

Tenho, pois, como relevantes os fundamentos das ADINs nº 2356 e 2362, no que respeita à autorização de serem liquidados os ‘precatórios pendentes’, à data da promulgação da Emenda Constitucional nº 30/2000, com as ressalvas previstas no ‘caput’ do citado art. 78, ‘em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos’.” (grifei)

Essa, também, Senhor Presidente, é a minha compreensão em torno do tema ora em exame, pois entendo que o Congresso Nacional, ao impor o parcelamento ora questionado aos precatórios pendentes de liquidação na data de promulgação da referida EC 30/2000, incidiu em múltiplas transgressões à Constituição da República, eis que desrespeitou a integridade de situações jurídicas definitivamente consolidadas, prejudicando, assim, o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, além de haver violado o princípio da separação de poderes e ofendido o postulado da segurança jurídica.

Se é certo que o Congresso Nacional pode muito, não é menos exato que, em tema de reforma constitucional, ele não pode tudo, notadamente porque o poder de reforma constitucional, considerado o caráter juridicamente limitado que o qualifica, sofre as restrições impostas pela Assembléia Nacional Constituinte, como aquelas que tipificam as limitações materiais explícitas ao exercício da extraordinária prerrogativa institucional de emendar o texto de nossa Lei Fundamental.

Todos sabemos que, no plano de nosso sistema jurídico, o Congresso Nacional, ao lado de suas funções legislativas ordinárias, está igualmente investido de atribuições extraordinárias destinadas a viabilizar, a partir do seu concreto exercício, o processo de reforma constitucional. Esse poder de reforma constitucional, no entanto, cujo desempenho foi deferido ao Legislativo, não se reveste de força primária ou originária. Pelo contrário, revela-se - enquanto poder constituinte meramente derivado, ou de segundo grau - como uma prerrogativa estatal necessariamente sujeita a condicionamentos normativos que lhe restringem, de maneira significativa, o exercício, quer no que concerne ao seu alcance, quer no que se refere ao seu conteúdo, quer no que diz respeito à forma de sua manifestação.

O Congresso Nacional, desse modo, exerce, também no que concerne ao procedimento de reforma, atividade constituinte secundária, essencialmente limitada e juridicamente subordinada a padrões normativos, que, ostentando grau de irrecusável supremacia no contexto da Carta Federal, visam a tornar intangíveis determinadas decisões políticas fundamentais consagradas pelo legislador constituinte primário.

Não se pode perder de perspectiva - consoante ressalta JORGE MIRANDA (“Manual de Direito Constitucional”, tomo II/165, 2ª ed., 1988, Coimbra Editora) - o fato de que o poder de reforma constitucional, “porque criado pela Constituição e regulado por ela quanto ao modo de se exercer (...), tem necessariamente de se compreender dentro dos seus parâmetros; não lhe compete dispor contra as opções fundamentais do poder constituinte originário” (grifei).

Essa percepção do tema é claramente realçada no magistério de J. J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA (“Fundamentos da Constituição”, p. 289, 1991, Coimbra Editora), para quem “A questão da revisão constitucional envolve necessariamente o problema dos limites à mudança constitucional”, eis que - e esse é um aspecto essencial do tema em análise - “A revisão constitucional, embora se possa traduzir na alteração de muitas disposições da Constituição, conserva um valor integrativo, no sentido de que deve deixar substancialmente idêntico o sistema constitucional. A revisão serve para alterar a Constituição mas não para mudar de Constituição” (grifei).

O poder de reformar a Constituição, portanto, não confere, ao Congresso Nacional, atribuições ilimitadas e, muito menos, não lhe outorga o poder de destruir a ordem normativa positivada no texto da Lei Fundamental do Estado. A competência reformadora outorgada ao Poder Legislativo da União não defere à instituição parlamentar o inaceitável poder de violar “o sistema essencial de valores da Constituição, tal como foi explicitado pelo poder constituinte originário”, como adverte VITAL MOREIRA (“Constituição e Revisão Constitucional”, p. 107, 1990, Editorial Caminho, Lisboa). Afinal, sustenta esse eminente publicista português (“op. cit.”, p. 108), “A revisão constitucional não é propriamente o meio propício para fazer revoluções constitucionais. A substituição de uma Constituição por outra exige uma renovação do poder constituinte e esta não pode ter lugar, naturalmente, sem uma ruptura constitucional” (grifei).

Essa mesma percepção do tema é revelada por MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (“Poder Constituinte e Direito Adquirido”, “in” RDA n. 210, p. 1/9, 8), cujo magistério, ao versar o tema concernente ao “Poder de Reforma ou Poder de Revisão”, enfatiza que “a mudança da Constituição deve ser efetuada ‘de acordo’ com a Constituição, já que a mudança da Constituição ‘contra’ a Constituição é ‘revolução’, que somente o Poder originário pode efetuar”.

As produções normativas decorrentes do processo de reforma constitucional configuram emanações concretizadoras do exercício da função constituinte secundária, que, por qualificar-se como atividade meramente instituída, participa da mesma natureza jurídica que tipifica o poder constituinte de reforma ou poder constituinte de segundo grau.

Nesse contexto, e tendo presentes, ainda, as regras inscritas no art. 60, §§ 1º, 2º e 4º, da Constituição da República, a reforma constitucional acha-se juridicamente subordinada, em seu processo de positivação, a múltiplas limitações: (a) limitações de ordem formal (restrições que incidem na esfera procedimental:

(1) exigência de discussão e votação, em cada Casa Legislativa, em dois turnos e (2) aprovação, em cada turno, por 3/5 dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal; (b) limitações de ordem circunstancial (impossibilidade de emenda na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio) e (c) limitações de ordem material (intangibilidade das matérias que se acham pré- -excluídas do poder geral de reforma, porque protegidas, em função de sua natureza mesma, pelas denominadas cláusulas pétreas).

Daí a clara advertência de GILMAR FERREIRA MENDES (“Controle de Constitucionalidade - Aspectos jurídicos e políticos”, p. 95/98, 1990, Saraiva), cujo magistério, ao versar o tema em questão, destaca, com irrecusável lucidez, o que se segue: “O controle de constitucionalidade contempla o próprio direito de revisão reconhecido ao poder constituinte derivado. Parece axiomático que as Constituições rígidas somente podem ser revistas com a observância dos ritos nelas prescritos. São exigências quanto ao quorum, à forma de votação, à imposição de referendum popular, ou de ratificação. Alguns textos consagram, igualmente, vedações circunstanciais à reforma da ordem constitucional.

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Não raras vezes, impõe o constituinte limites materiais expressos à eventual reforma da Lei Maior.

Cuida-se das chamadas cláusulas pétreas ou da garantia de eternidade (Ewigkeitsgarantie), que limitam o poder de reforma sobre determinados objetos.

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Tais cláusulas de garantia traduzem, em verdade, um esforço do constituinte para assegurar a integridade da Constituição, obstando a que eventuais reformas provoquem a destruição, o enfraquecimento ou impliquem profunda mudança de identidade. É que, como ensina Hesse, a Constituição contribui para a continuidade da ordem jurídica fundamental, na medida em que impede a efetivação de um suicídio do Estado de Direito democrático sob a forma da legalidade. Nesse sentido, pronunciou-se o Tribunal Constitucional alemão, asseverando que o constituinte não dispõe de poderes para suspender ou suprimir a Constituição.

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Tais cláusulas devem impedir, todavia, não só a supressão da ordem constitucional, mas também qualquer reforma que altere os elementos fundamentais de sua identidade histórica.” (grifei)

É preciso não perder de perspectiva, pois, que as reformas constitucionais podem revelar-se incompatíveis com o texto da Constituição a que aderem ou a que se referem, quer assumam, no plano instrumental ou na esfera procedimental, o caráter de emenda ou a natureza de revisão da Carta Política. Daí a plena sindicabilidade jurisdicional dos processos de mutação formal da Constituição, especialmente em face do núcleo temático protegido pela cláusula de imutabilidade inscrita no art. 60, § 4º, da Carta Política.

Emendas à Constituição, por isso mesmo, podem, também elas, incidir no vício de inconstitucionalidade, quando desrespeitadas, pelo Congresso Nacional, as limitações jurídicas superiormente estabelecidas, no texto da Carta Política, por deliberação do órgão exercente das funções constituintes primárias ou originárias (OTTO BACHOF, “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, p. 52/54, 1977, Atlântida Editora, Coimbra; JORGE MIRANDA, “Manual de Direito Constitucional”, tomo 11/287-294, item n. 72, 2ª ed., 1988, Coimbra Editora; MARIA HELENA DINIZ, “Norma Constitucional e seus efeitos”, p. 97, 1989, Saraiva; J. J. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional”, p. 756/758, 4ª ed., 1987, Almedina; JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 58/60, 5ª ed., 1989, RT, entre outros).

Cumpre enfatizar, neste ponto, uma vez configurada a hipótese de transgressão às restrições que delimitam a atividade reformadora do Congresso Nacional, que as emendas à Constituição podem qualificar-se, elas próprias, como objeto de controle de constitucionalidade, tanto que o Supremo Tribunal Federal, por mais de uma vez (RTJ 151/755, Rel. Min. SYDNEY SANCHES – RTJ 156/451, Rel. Min. MOREIRA ALVES), já proclamou a plena sindicabilidade dos atos materializadores de reforma constitucional.

Insista-se, pois, na asserção - porque inquestionável - de que o Congresso Nacional, no exercício de sua função reformadora, está juridicamente subordinado à decisão do poder constituinte originário, que, a par de restrições de ordem circunstancial, inibitórias do poder reformador (CF, art. 60, § 1º), identificou, em nosso sistema constitucional, um núcleo temático intangível e imune à ação revisora da instituição parlamentar.

As limitações materiais explícitas definidas no § 4º do art. 60 da Constituição da República – além daquelas que configuram restrições de caráter implícito ou imanente (JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 68, item n. 23, 22ª ed., 2003, Malheiros; NELSON DE SOUSA SAMPAIO, “O Processo Legislativo”, p. 68/71, 1968, Saraiva, v.g.) - incidem, diretamente, sobre o poder de reforma conferido ao Legislativo, inibindo-lhe o exercício dessa competência extraordinária, sempre que se tratar, como sucede na espécie, de matérias protegidas pelo círculo de incidência das cláusulas pétreas.

A irreformabilidade desse núcleo temático, caso desrespeitada, legitimará, como já enfatizado, o controle normativo abstrato - e mesmo a fiscalização incidental – de constitucionalidade dos atos resultantes do processo de alteração do texto constitucional.

É de assinalar, aqui, até mesmo como mero registro histórico, que o Supremo Tribunal Federal, já sob a égide de nossa primeira Constituição republicana (a de 1891) – que só contemplava o controle incidental ou concreto de constitucionalidade dos atos estatais –, ao julgar o HC 18.178, de que foi Relator o saudoso Ministro HERMENEGILDO DE BARROS, nas sessões plenárias de 27 e 29 de setembro e de 1º de outubro de 1926, discutiu a validade da própria Reforma Constitucional de 1926, decidindo, então, que, “Na tramitação parlamentar de Reforma Constitucional, não foi violada cláusula alguma da Constituição da República...” (RF 47/748 - grifei).

Nem se diga que a formulação constante do art. 33 do ADCT/88, que também autorizou o parcelamento, em até 8 (oito) anos, do valor dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da vigente Constituição, poderia ser invocada, pelo Congresso Nacional, como paradigma legitimador da cláusula ora em exame.

É que a norma inscrita no art. 33 do ADCT resultou de deliberação soberana emanada de órgão investido de funções constituintes primárias ou originárias, absolutamente insuscetíveis de qualquer limitação de ordem jurídica, tal como já o reconhecera, em sucessivos pronunciamentos sobre a inteira validade do mencionado art. 33 do ADCT, a própria jurisprudência constitucional desta Suprema Corte (RTJ 145/330, Rel. Min. MOREIRA ALVES - RTJ 147/699, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI - RTJ 148/568, Rel. Min. ILMAR GALVÃO - RTJ 148/909, Rel. Min. ILMAR GALVÃO - RTJ 149/986, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – RTJ 160/992-993, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RE 148.266/SP, Rel. Min. MOREIRA ALVES – RE 148.569/SP, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI – RE 161.170/SP, Rel. Min. ILMAR GALVÃO).

Cabe relembrar, no ponto, passagem expressiva do voto, anteriormente reproduzido, da lavra do eminente Ministro NÉRI DA SILVEIRA, em que Sua Excelência assinalou que o art. 33 do ADCT “(...) não haveria de alcançar juízo de invalidade, porque emanada a norma da mesma fonte constituinte originária que estabelecera as regras do art. 100 e parágrafos, bem assim o sistema de direitos e garantias da nova Constituição, o que lhe assegurou ‘grau idêntico de eficácia e de autoridade jurídicas’, qual reconheceu esta Corte, dentre outros, no RE 161.343-2 – SP, rel. Min. Celso de Mello (...)” (grifei).

É de ter presente, na espécie, a clara advertência do eminente Relator originário destes processos de controle abstrato, no ponto em que observa, com absoluta propriedade, que a procrastinação, no tempo, do pagamento dos precatórios judiciários pendentes na data de promulgação da EC 30/2000, com os respectivos valores parcelados em até 10 (dez) anos, culmina por privar de eficácia imediata a sentença judicial com trânsito em julgado, o que configura inadmissível atentado “contra a independência do Poder Judiciário, cuja autoridade é insuscetível de ser coarctada, máxime, no que concerne ao exercício do poder de julgar os litígios que lhe são submetidos e fazer cumpridas as suas decisões, inclusive contra a Fazenda Pública, na forma prevista na Constituição e na lei (...)” (grifei).

Se é verdade que a regra em questão, relativa aos precatórios pendentes, não invalida a “res judicata”, não é menos exato, porém, que a cláusula ora questionada compromete a própria decisão que, subjacente à expedição do precatório pendente, acha-se amparada, quanto à qualidade de seus efeitos, pela autoridade da coisa julgada, o que vulneraria o postulado da separação de poderes, além de afetar um valor essencial ao Estado democrático de direito, que é a exigência de segurança jurídica.

Não constitui demasia assinalar, neste ponto, que a coisa julgada representa, na constelação axiológica que se encerra em nosso sistema constitucional, valor de essencial importância na preservação da segurança jurídica.

Mostra-se relevante acentuar o alto significado que assume, em nosso ordenamento normativo, a coisa julgada, pois, ao propiciar a estabilidade das relações sociais e a superação dos conflitos, culmina por consagrar a segurança jurídica, que traduz, na concreção de seu alcance, valor de transcendente importância política, jurídica e social, a representar um dos fundamentos estruturantes do próprio Estado democrático de direito.

Daí a correta observação de NELSON NERY JUNIOR e de ROSA MARIA DE ANDRADE NERY (“Código de Processo Civil Comentado”, p. 680, item n. 1, p. 685, item n. 23, e p. 687, itens ns. 27 e 29, 10ª ed., 2007, RT):

“A segurança jurídica, trazida pela coisa julgada material, é manifestação do Estado Democrático de Direito (CF 1º ‘caput’). Entre o ‘justo absoluto’, utópico, e o ‘justo possível’, realizável, o sistema constitucional brasileiro, a exemplo do que ocorre na maioria dos sistemas democráticos ocidentais, optou pelo segundo (‘justo possível’), que também se consubstancia na segurança jurídica da coisa julgada material. Descumprir-se a coisa julgada é negar o próprio Estado Democrático de Direito, fundamento da República brasileira.

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A doutrina mundial reconhece o instituto da coisa julgada material como ‘elemento de existência’ do Estado Democrático de Direito (...). A ‘supremacia da Constituição’ está na própria coisa julgada, enquanto manifestação do Estado Democrático de Direito, fundamento da República (CF 1º ‘caput’), não sendo princípio que possa opor-se à coisa julgada como se esta estivesse abaixo de qualquer outro instituto constitucional. Quando se fala na intangibilidade da coisa julgada, não se deve dar ao instituto tratamento jurídico inferior, de mera figura do processo civil, regulada por lei ordinária, mas, ao contrário, impõe-se o reconhecimento da coisa julgada com a magnitude constitucional que lhe é própria, ou seja, de elemento formador do Estado Democrático de Direito (...).

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‘Desconsiderar’ a coisa julgada é ofender a Carta Magna, deixando de dar aplicação ao princípio fundamental do Estado Democrático de Direito (CF 1º ‘caput’).

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Consoante o direito constitucional de ação (CF 5º XXXV), busca-se pelo processo a tutela jurisdicional adequada e justa. A sentença ‘justa’ é o ideal – ‘utópico’ - maior do processo. Outro valor não menos importante para essa busca é a ‘segurança’ das relações sociais e jurídicas. Havendo choque entre esses dois valores (justiça da sentença e segurança das relações sociais e jurídicas), o sistema constitucional brasileiro resolve o choque, optando pelo valor segurança (coisa julgada).” (grifei)

Concluo o meu voto, Senhor Presidente. Tendo em vista as considerações que venho de fazer e acolhendo, em especial, as doutas razões expostas pelo eminente Ministro NÉRI DA SILVEIRA, peço vênia para suspender, cautelarmente, no “caput” do art. 78 do ADCT,introduzido pela EC nº 30/2000, a expressão “os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda”.

É o meu voto.

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