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STF - Liminar impede a ampliação da reserva indígena Ribeirão dos Silveira

A ministra Ellen Gracie concedeu liminar em MS (29.293) para impedir a ampliação da reserva indígena Ribeirão dos Silveira, dos atuais 944 hectares para 8.500, sob o entendimento de que essas terras, localizadas entre os municípios paulistas de Bertioga, São Sebastião e Salesópolis, seriam tradicionalmente ocupadas pelos grupos indígenas Guarani Mbyá e Nhandeva.

29/11/2010


STF

Liminar impede a ampliação da reserva indígena Ribeirão dos Silveira

A ministra Ellen Gracie concedeu liminar em MS (29.293) para impedir a ampliação da reserva indígena Ribeirão dos Silveira, dos atuais 944 hectares para 8.500, sob o entendimento de que essas terras, localizadas entre os municípios paulistas de Bertioga, São Sebastião e Salesópolis, seriam tradicionalmente ocupadas pelos grupos indígenas Guarani Mbyá e Nhandeva.

A reserva foi demarcada pelo decreto presidencial 94.568, de 8 de julho de 1987 (clique aqui).

A ação é patrocinada pelo advogado Luis Antonio Nascimento Curi.

___________

MS 29293 - MANDADO DE SEGURANÇA

Origem: DF - DISTRITO FEDERAL

Relator: MIN. ELLEN GRACIE

IMPTE.(S) ESPÓLIOS DE DOMÊNICO E ISAURA MARICONDI

ADV.(A/S) LUIS ANTONIO NASCIMENTO CURI E OUTRO(A/S)

IMPDO.(A/S) PRESIDENTE DA REPÚBLICA

ADV.(A/S) ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

LIT.PAS.(A/S) UNIÃO

ADV.(A/S) ADVOGADO-GERAL DA UNIÃ

1. Trata-se de mandado de segurança preventivo, com pedido de medida liminar, impetrado pelos Espólios de Domênico Maricondi e de Isaura Maricondi, representados pelo inventariante Armando Jorge Peralta, com fundamento no art. 5º, XXI e LXIX, da Constituição Federal e na Lei 12.016/2009, contra possível ato do Excelentíssimo Senhor Presidente da República consubstanciado em decreto homologatório de ampliação da reserva indígena Ribeirão Silveira dos atuais novecentos e quarenta e quatro hectares para oito mil e quinhentos hectares e perímetro aproximado de quarenta e cinco quilômetros, sob o entendimento de que essas terras, localizadas entre os Municípios de Bertioga, São Sebastião e Salesópolis, no Estado de São Paulo, seriam tradicionalmente ocupadas pelos grupos indígenas Guarani Mbyá e Nhandeva.

Dizem os impetrantes que são legítimos proprietários e possuidores de glebas de terras localizadas entre os Municípios de Bertioga e São Sebastião, conforme títulos registrados em 1952, e que a posse de seus antecessores é imemorial.

Discorrem que em 1958 aprovaram loteamentos em suas áreas, que “ainda hoje buscam regularizar”, dada a sua vocação natural para empreendimentos habitacionais e núcleos de desenvolvimento urbano. Destacam que dois loteamentos já estão parcialmente implantados, mas correm o risco iminente de perecer.

Narram que o Decreto Presidencial 94.568, de 8 de julho de 1987, promoveu a demarcação da terra indígena Ribeirão Silveira, com área de novecentos e quarenta e quatro hectares, motivo por que ajuizaram ações judiciais, apensadas à ação anulatória do mencionado decreto (Processo 94.032.57436-4 do Tribunal Regional Federal da 3ª Região), ainda em tramitação. Sustentam naqueles autos a ilegalidade da demarcação, porquanto as terras não eram de tradicional ocupação pelos grupos indígenas Guarani Mbyá e Nhandeva.

Noticiam que a Fundação Nacional do Índio resolveu ampliar a reserva indígena para oito mil e quinhentos hectares, por intermédio do Processo FUNAI 08620.1219/2003, que culminou na edição da Portaria Declaratória MJ 1.236/2008, do Ministro de Estado da Justiça.

Aduzem que a ampliação em comento inviabilizará os loteamentos residenciais Parque Boracéia I e Parque Boracéia II, o que causará prejuízos aos impetrantes e a centenas de adquirentes dos lotes, “muitos dos quais proprietários e possuidores desde antes da CF/88”.

Afirmam que a Fundação Nacional do Índio iniciou em 1º de junho de 2010 os trabalhos de demarcação física da área referente à ampliação em questão, nos termos da Ordem de Serviço 10/2010, que já esbulham a posse dos impetrantes e dos adquirentes, conforme boletins de ocorrência anexados aos presentes autos, daí o justo receio de que o Excelentíssimo Senhor Presidente da República, a qualquer momento, assine decreto homologando essa ampliação demarcatória.

Alegam que esta Corte entende que o marco temporal para a caracterização de área como tradicionalmente indígena é o dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição (Petição 3.388/RR, rel. Min. Ayres Britto, Plenário, DJe 1º.7.2010; Ação Cautelar 2.556-MC/MS, Min. Gilmar Mendes, DJe 05.02.2010; e Ação Cível Originária 1.383-TA/MS, rel. Min. Marco Aurélio, DJe 28.5.2010).

Sustentam que a ampliação da reserva indígena Ribeirão Silveira, já demarcada e registrada, somente seria possível por intermédio de desapropriação com pagamento prévio (Ação Cautelar 2.541-MC/RR, Min. Gilmar Mendes, DJe 05.02.2010).

Suscitam ainda a existência de grave irregularidade no processo administrativo de ampliação em questão, dada a ausência da participação do Estado de São Paulo.

Invocam a ocorrência no Processo FUNAI 08620.1219/2003 de ofensa aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, porquanto não foi dada ao Ministro de Estado da Justiça ciência da oposição pelos impetrantes de defesa contra o relatório de revisão, em que constavam argumentos fáticos graves no sentido da suspeição dos técnicos antropólogos, ligados à ONG CTI, bem como da existência de posse imemorial de não-índios sobre as áreas. Reportam que o Presidente da Fundação Nacional do Índio não considerou os seus argumentos de defesa, rejeitando-os em decisões padronizadas.

Frisam que, tendo em vista dúvidas suscitadas pelo Ministro de Estado da Justiça, os técnicos da Fundação Nacional do Índio criaram grupo de trabalho (GT), que foi a campo no período de 7 a 12 de novembro de 2007 com o objetivo de complementar o serviço. Todavia, dessa complementação os impetrantes não tomaram ciência, razão pela qual não a puderam acompanhar, sendo certo que esse trabalho gerou um relatório de quase quarenta laudas, totalmente parcial e irreal, porquanto amparado em estudo elaborado pela própria comunidade indígena interessada na ampliação da demarcação.

Salientam a existência do perigo na demora, consubstanciado no fato de que o processo de ampliação da demarcação, “com sobreposição de marcos e ameaça às porteiras das propriedades, está em curso célere, causando a movimentação de pessoas ligadas às ONGs e à FUNAI, e de índios, nos limites da reserva demarcada e das terras dos impetrantes”.

Requerem, ao final, a concessão de medida liminar para determinar ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República que se abstenha de homologar a demarcação da ampliação da reserva indígena Ribeirão Silveira, aprovada pela Portaria Declaratória MJ 1.236/2008, do Ministro de Estado da Justiça. No mérito, pedem a concessão da segurança, declarando-se a nulidade da pretendida ampliação ou, alternativamente, que se condicione essa ampliação ao procedimento legal de desapropriação, precedida de justa indenização.

2. O Excelentíssimo Senhor Presidente da República, por intermédio de informações elaboradas pela Advocacia-Geral da União, manifestou-se pelo indeferimento do pedido de medida liminar e, no mérito, pela denegação da segurança.

Suscita Sua Excelência, preliminarmente, a inexistência de direito líquido e certo a amparar a presente pretensão, porquanto os impetrantes, há mais de quarenta anos, lutam para regularizar suas terras, tendo sido vencidos em todas as ações que ajuizaram com o objetivo de impedir a demarcação da reserva indígena Ribeirão Silveira, motivo por que recorreram ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Além disso, haveria necessidade de dilação probatória no presente writ, dado que os impetrantes somente apresentaram os títulos de propriedade referentes a parte das terras localizadas no Município de São Sebastião – SP, “deixando de fazê-lo no tocante à maior parte (três quartos), que se situa no Município de Santos – SP”. Dessa forma, não há nos autos a necessária prova pré-constituída, o que inviabilizaria a utilização do mandado de segurança, pois, sem a prova de posse das terras em comento, que exclua a posse dos índios, não haveria como contestá-la, sendo certo que a propriedade em si “não constitui prova da ausência dos índios”.

Diz o Excelentíssimo Senhor Presidente da República que houve apenas e tão-somente a revisão da área da terra indígena Ribeirão Silveira, com o objetivo de definir os seus verdadeiros limites.

Narra que o Ministro de Estado da Justiça, conforme se verifica da simples leitura do preâmbulo da Portaria Declaratória MJ 1.236/2008, julgou improcedentes as contestações opostas à identificação e delimitação da terra indígena Ribeirão Silveira, com fundamento nos Pareceres da Fundação Nacional do Índio exarados nos Processos FUNAI 1.054/2003 e 1.219/2003, razão pela qual não houve ofensa aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

Alega que há necessidade de conformação da delimitação promovida pelo Decreto Presidencial 94.568, de 8 de julho de 1987, com a nova ordem constitucional estabelecida em 5 de outubro de 1988, dado o rompimento com a tradição de cunho integracionista para os indígenas até então em vigor no direito brasileiro.

Sustenta o caráter eminentemente declaratório do decreto de demarcação das terras indígenas, nos termos do art. 231 da Constituição Federal e do acórdão proferido no julgamento do caso Raposa Serra do Sol (Petição 3.388/RR, rel. Min. Ayres Britto, Plenário, DJe 1º.7.2010).

Argumenta que a teoria do fato indígena, a qual defende que somente seria tradicionalmente indígena a terra efetivamente habitada por grupo de índios por ocasião da promulgação da Constituição de 1988, não prevalece sobre a teoria do indigenato (concepção de que a relação estabelecida entre a terra e o indígena é congênita e originária, independente de título ou de reconhecimento formal), conforme relevante exceção prevista pelo Plenário desta Corte na oportunidade do julgamento do caso Raposa Serra do Sol (Petição 3.388/RR, rel. Min. Ayres Britto, Plenário, DJe 1º.7.2010) no sentido de que a tradicionalidade da posse indígena não se perde onde, ao tempo da promulgação da Constituição de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho ou de violência por parte de não-índios. Assim, na aplicação do marco temporal da ocupação indígena, não se deve somente levar em consideração a verificação da cadeia dominial das terras, mas também estudos técnicos sobre a história e a natureza dessa ocupação, já que, se a área for considerada de ocupação indígena tradicional, os títulos de terras eventualmente existentes, mesmo que justos, são nulos de acordo com o que dispõe o art. 231, § 6º, da Constituição Federal, devendo os possuidores de boa-fé ser indenizados apenas pelas benfeitorias, nos termos do mencionado dispositivo constitucional e do art. 1.219 do Código Civil, o que inviabilizaria a pretensão alternativa dos impetrantes de abertura de processo expropriatório e de pagamento prévio.

Aponta que, conforme a Informação 154/PGF/PFE/CAC-FUNAI-2010, elaborada pelos Procuradores Federais Lívio Coêlho Cavalcanti e Christine Phillip Steiner, os estudos técnicos demonstraram que, depois de várias migrações, os índios Guarani Nhandeva chegaram em 1830 a Itariri, litoral do Estado de São Paulo, e lá se estabeleceram até 1912, quando foram conduzidos à área indígena Araribá, e que um grupo de índios Guarani Mbyá migrou em 1860, e desde então vivem eles na aldeia Bananal (terra indígena Peruíbe), sendo certo que desde 1940 os índios Guarani reivindicam a identificação da terra indígena Ribeirão Silveira e lutam contra grandes grupos econômicos que insistem em tirá-los de suas terras, que sempre foram utilizadas como área de coleta, caça e pesca e de acampamentos temporários nas perambulações indígenas pelo litoral.

Menciona que o Ministro Ricardo Lewandowski, ao apreciar o Mandado de Segurança 27.939/DF (DJe 17.6.2010), relativo às terras da reserva indígena Porto Lindo – MS, negou seguimento a pretensão semelhante à presente, sob o entendimento de que haveria necessidade de produção de provas.

Entende que a décima sétima condição imposta por ocasião do julgamento do caso Raposa Serra do Sol (alínea r do inciso II do acórdão) não seria cabível em hipóteses em que houve vícios ou erros prejudiciais aos indígenas na demarcação originária.

Ressalta que as questões relativas às condições impostas pelo acórdão proferido no julgamento da Petição 3.388/RR não suplantam a vontade constitucional constante dos preceitos insertos no art. 231 da Lei Maior, porque tais condições constituem mera expectativa de direito.

Assevera que a décima sétima condição imposta por ocasião do julgamento do caso Raposa Serra do Sol (alínea r do inciso II do acórdão) inovou o sistema normativo, ao dispor que “é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada”, por estabelecer vedação absoluta ao dever-poder de revisão pela Administração dos seus atos (caso de não-inclusão de área que deveria constar na demarcação originária).

Destaca que o processo de regularização fundiária da terra indígena Ribeirão Silveira, que culminou com a edição do Decreto Presidencial 94.568, de 8 de julho de 1987, apresenta graves vícios e irregularidades, porquanto desprovido de estudos históricos e antropológicos, o que causou a fixação de limites artificiais e convenientes aos interesses econômicos regionais, ao excluir áreas imprescindíveis à sobrevivência física e cultural dos índios. Esclarece que, antes da promulgação da Constituição de 1988, a orientação que prevalecia, nos termos dos Decretos 94.945/1987 e 94.946/1987, era a busca da integração do índio na identidade nacional e na cultura majoritária do Brasil, motivo pelo qual as terras indígenas eram demarcadas com área muito inferior àquela correspondente à ocupação tradicional verdadeira. Dessa forma, muitas terras indígenas já demarcadas demandam revisão dos estudos de identificação e delimitação, com vistas à sua adequação aos critérios estabelecidos na Constituição de 1988, e essa revisão, segundo os ditames atuais, não representa ampliação da terra indígena, mas sim efetivação do direito dos índios sobre as terras que lhes pertencem originariamente.

Chama a atenção para o fato de que o processo de regularização fundiária da terra indígena Ribeirão Silveira corrige o erro da identificação da terra declarada em 1987 com a extensão de apenas novecentos e quarenta e quatro hectares, que apresenta uma série de vícios e ilegalidades. Afirma que essas lacunas resultaram de pressões sofridas pelos índios Guarani Mbyá e Nhandeva por parte de ocupantes não-índios que até hoje questionam a demarcação da terra indígena Ribeirão Silveira, baseados em títulos de propriedade que ignoram a ocupação tradicional indígena da área.

Frisa que, conforme explicitou o antropólogo Carlos Alexandre B. P. Santos, a terra indígena Ribeirão Silveira, identificada com oito mil e quinhentos hectares e perímetro de quarenta e cinco quilômetros, localiza-se no espaço que os índios Guarani Mbyá e Nhandeva reconhecem como seu território ancestral, no qual habitam e o qual usam produtivamente de forma permanente – mesmo território que contém áreas imprescindíveis à preservação dos recursos naturais necessários ao bem-estar e à produção física e cultural dessa população indígena, segundo seus usos, costumes e tradições.

Relata, por fim, que o Estado de São Paulo participou desse processo de identificação da terra indígena Ribeirão Silveira, sendo certo que o técnico agrimensor do órgão fundiário estadual (ITESP), Izair Mendes, integrou o grupo técnico designado para realizar os estudos e o levantamento para sua identificação e delimitação, consoante Portaria FUNAI 867/Pres, de 28 de agosto de 2000.

3. A União, representada por sua Advocacia-Geral, requer o ingresso no presente feito, nos termos do art. 7º, II, da Lei 12.016/2009, e reitera os argumentos expendidos nas informações prestadas pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República.

4. Defiro o pedido formulado pela União de ingresso no feito.

5. Entendo, em juízo de delibação, que se encontra devidamente evidenciada a fumaça do bom direito no presente caso.

O Supremo Tribunal Federal julgou o paradigmático caso Raposa Serra do Sol, em acórdão de cuja ementa extraio os seguintes excertos:

“(...)

11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa – a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) – como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das ‘fazendas’ situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da ‘Raposa Serra do Sol’. 11.3. O marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional. Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as ‘imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar’ e ainda aquelas que se revelarem ‘necessárias à reprodução física e cultural’ de cada qual das comunidades étnico-indígenas, ‘segundo seus usos, costumes e tradições’ (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras ‘são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis’ (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção de que os artigos 231 e 232 da Constituição Federal constituem um completo estatuto jurídico da causa indígena. 11.4. O marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado ‘princípio da proporcionalidade’. A Constituição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições indígenas o engate lógico para a compreensão, entre outras, das semânticas da posse, da permanência, da habitação, da produção econômica e da reprodução física e cultural das etnias nativas. O próprio conceito do chamado ‘princípio da proporcionalidade’, quando aplicado ao tema da demarcação das terras indígenas, ganha um conteúdo peculiarmente extensivo.

12. DIREITOS ‘ORIGINÁRIOS’. Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente ‘reconhecidos’, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de ‘originários’, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como ‘nulos e extintos’ (§ 6º do art. 231 da CF).

(...)

18. FUNDAMENTOS JURÍDICOS E SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS QUE SE COMPLEMENTAM. Voto do relator que faz agregar aos respectivos fundamentos salvaguardas institucionais ditadas pela superlativa importância histórico-cultural da causa. Salvaguardas ampliadas a partir de voto-vista do Ministro Menezes Direito e deslocadas, por iniciativa deste, para a parte dispositiva da decisão. Técnica de decidibilidade que se adota para conferir maior teor de operacionalidade ao acórdão. (...)” (Petição 3.388/RR, rel. Min. Ayres Britto, Plenário, DJe 1º.7.2010).

A Fundação Nacional do Índio objetiva a retificação da área da reserva indígena Ribeirão Silveira, de novecentos e quarenta e quatro hectares para oito mil e quinhentos hectares, sob o entendimento de que houve a revisão dos estudos de identificação e de delimitação da mencionada reserva, com vistas à sua adequação aos critérios estabelecidos na Constituição Federal, que teria superado a visão integracionista do indígena na identidade nacional e na cultura majoritária do Brasil até então dominante.

Todavia, esta Suprema Corte também no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, a partir do voto-vista do Ministro Menezes Direito, ampliou as salvaguardas institucionais a serem obedecidas em demarcações de terras indígenas, entre as quais consta a vedação à ampliação da terra indígena já demarcada (alínea r do inciso II do acórdão proferido no julgamento da Petição 3.388/RR, rel. Min. Ayres Britto, Plenário, DJe 1º.7.2010), tendo ficado vencidos quanto a esse ponto específico a Ministra Cármen Lúcia e os Ministros Eros Grau e Ayres Britto, relator.

Subscrevi, em meu voto, as preocupações externadas nos itens colocados no dispositivo daquele acórdão pelo Ministro Menezes Direito, que deram efetivamente a esses tópicos o valor de um norte, de uma definição de como proceder e de como encarar a questão de demarcações de terras indígenas, daquele julgamento para diante.

Assevere-se que o fato de terem sido opostos embargos de declaração ao acórdão proferido no julgamento da Petição 3.388/RR não tem o condão de retirar a força das diretrizes e balizas ali fixadas, que permanecem inabaláveis até que o Plenário desta Corte se convença a modificá-las.

Assim, encontra-se devidamente demonstrada a plausibilidade jurídica da presente impetração.

6. Verifico ainda a existência do perigo na demora no presente caso, dado que a edição de decreto com o objetivo de ampliar a reserva indígena Ribeirão Silveira poderá causar prejuízos irreparáveis aos impetrantes e aos adquirentes de lotes residenciais nos empreendimentos Parque Boracéia I e Parque Boracéia II. Além disso, poderá ocorrer o acirramento dos ânimos na região, com o surgimento de conflitos e distúrbios a envolver índios, pessoas ligadas a organizações não-governamentais e os proprietários e possuidores atuais das terras, o que recomenda a máxima prudência nesse tipo de caso.

7. Ante o exposto, defiro o pedido de medida liminar para determinar que o Excelentíssimo Senhor Presidente da República não expeça decreto com o objetivo de ampliar a área da reserva indígena Ribeirão Silveira já demarcada pelo Decreto Presidencial 94.568, de 8 de julho de 1987, até o julgamento final do presente mandado de segurança.

Comunique-se, com urgência, esta decisão ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República, ao Ministro de Estado da Justiça e à Presidência da Fundação Nacional do Índio.

Providencie a Secretaria desta Corte a inclusão da União no pólo passivo do presente writ.

Publique-se.

Após, abra-se vista à Procuradoria-Geral da República (arts. 103, § 1º, da Constituição Federal; e 52, IX, do RISTF), para elaboração de parecer quanto ao mérito deste mandamus.

Brasília, 18 de novembro de 2010.

Ministra Ellen Gracie

Relatora

___________

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