Solenidade
IAB inaugura retrato do ex-presidente Paulo Eduardo de Araújo Saboya
Confira abaixo o discurso de Humberto Jansen Machado, orador oficial do IAB na gestão de Paulo.
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DISCURSO RETRATO PAULO SABOYA
Meu Presidente Paulo Saboya.
Meu colega Paulo Saboya.
Meu amigo Paulo Saboya.
Meu camarada Paulo Saboya.
Como diria aquele poeta da nossa lembrança quinhentista, “Se lá no assento etéreo onde subiste, memória dessa vida se consente”, não esqueça que aqui nesta terra a memória é permanente e a cada momento marcamos e assinalamos a sua presença, sua luta, seus amores e seu humor. E nossa memória fica agora gravada para sempre nessas paredes históricas.
Este é mais um encontro de nossas vidas.
Mais uma vez chega a primavera às paredes centenárias do Instituto dos Advogados Brasileiros. Da última vez veio com bogaris e resedás, rosas e lírios. Agora vem a primavera com a alegria de sua face, com a sua disposição valente de beber a tempestade.
Hoje trazemos sua imagem para marcar a galeria que se iniciou com Montezuma. E estar ao lado de Ruy, Teixeira de Freitas, Nabuco de Araújo, Clóvis Bevilácqua, Pedro Lessa, Pontes de Miranda, todos com olhos voltados para a figura mais jovem que chega ao assento etéreo, certamente com alguma interrogação. Até porque nós nunca acreditamos no assento etéreo.
Morto, está vivo em nossa memória carregando aquela bandeira no meio da tempestade, como fez a vida toda.
E nem conheceu a advertência do poeta Gullar, seu companheiro de longas conversas nas mesas de Ipanema, só agora publicada de que
“A morte não tem avenidas iluminadas não tem caixas de som atordoantes tráfego engarrafado não tem praias não tem bundas não tem telefonemas que não vêm nunca a morte não tem culpas nem remorsos nem perdas”
Mas não bebia só as tempestades. Bebia também todas as outras tempestades das noites longas do Veloso com as histórias do Tom Jobim e a companhia militante do nosso Marat. No dia seguinte, nosso escritório ficava iluminado com todos aqueles causos e casos. (Não é, Comba ?).
E você teve uma bela história de vida.
Nos idos de março de 64, o instrumentista Saboya era diretor do Sindicato dos trabalhadores da fábrica de borracha sintética da Petrobrás – FABOR e participava da direção do movimento de greve dos trabalhadores do petróleo, que acreditavam candidamente que iam impedir os militares golpistas de tomarem o combustível para seus tanques e caminhões.
Hora da mais plena tempestade. Íamos deter as tropas do IV Exército do General Mourão, aquele que se intitulou “Vaca Fardada”, na Baixada Fluminense. A assembléia acompanhava suas palavras de ordem. “Aqui, gorila nenhum vai entrar. Abaixo o golpe. Viva a classe operária.” Você comandava a resistência – sou testemunha.
Doce ilusão dos jovens combatentes da democracia e da liberdade, que ignoravam totalmente que o chefe civil do golpe, governador de Minas Gerais, já tinha estocado há meses em seu estado combustível suficiente para abastecer as tropas golpistas em uma longa luta.
Pior ainda, não sabiam também que naquele momento histórico já entrava no Atlântico Sul a VI Frota norte-americana como integrante da chamada Operação Brother Sam, que entre os navios de guerra trazia petroleiros suficientemente carregados para sustentar uma longa guerra, como foi confessado muitos anos depois pelo embaixador americano Lincoln Gordon.
Depois, a dura vida clandestina para fugir dos IPMs e de uma prisão no DOI-CODI. Os camaradas tinham que andar pelas sombras, escorregar por entre os pingos da chuva. E organizar a luta pela liberdade e democracia.
Por essa época, abril de 64, tivemos um ponto. Este era o nome de um encontro clandestino, marcado com alguma antecedência sem notas e registros.
Na esquina escolhida, na Praça Cardeal Arcoverde, chegou preocupado, porque estava numa casa próxima que lhe fora emprestada como esconderijo e para lá tinha que voltar logo porque estava sozinho cuidando da filha recém-nascida. Houve um ponto de três.
E assim tivemos um ponto com bebê para nenhum clandestino botar defeito. Ponto clandestino não posso dizer o nome do bebê.
Hoje, a lembrança na parede e nos nossos corações.
Algum tempo depois, a advocacia e suas grandes aventuras. As lutas da OAB pela volta da democracia, pela liberdade dos presos políticos, pela anistia.
E mais tarde na luta política da democracia, com candidaturas e cargos de administração como na Secretaria Estadual de Justiça.
Uma longa e trabalhosa passagem pela OAB nos tempos da reconstrução do estado de direito.
Mas nas lutas e no trabalho sempre presente a alegria e o bom humor. A todo momento explodiam as frases ouvidas da boca do povo ou tiradas dos tratados mais sérios.
A uma jovem nunca faltava a saudação de “princesa do agreste” e nunca faltava na sua fala o “aí ela pegou e disse”.
E como houve princesas do agreste.
E sempre lembrava que “pois sim” quer dizer não e “pois não” quer dizer sim.
Algumas vezes e sempre, no meio das expressões mais populares, vinha uma solene advertência: Sanctus Ivo, advocatus et non latro, res miranda populo. (Santo Ivo, advogado não ladrão, veneração do povo.)
Logo depois, com perdão de Santo Ivo, uma exclamação de permanente advertência: aquela do que acontece com a Creuza ! É, aquilo mesmo.
E também “nóis é nóis, o resto é ...”
A todo momento vinha também a lembrança de Vinicius: “a hora do sim é o descuido do não.”
Chegou ao IAB já no fim de seu tempo.
Aí ele pegou e disse:
Assumir a presidência do Instituto dos Advogados Brasileiros é, simultaneamente, uma honra, uma responsabilidade e um desafio.
A mais evidente responsabilidade que recebo é a de respeitar a longa e rica tradição desta Casa. Não por temor reverencial aos tempos idos e vividos, senão por ser impossível construir o futuro sem as lições do passado. Como já assinalado por outros, anteriormente, a história não se repete e se o faz, da segunda vez é como farsa.
Evidente ser de todo audaciosa a meta de iniciar nesta Casa e nesta gestão, a discussão sobre a Reforma do Estado; mas nós o faremos. Sem tibiezas mas, no entanto, com cautela e modéstia, sem pretender substituir as competências do Parlamento e da sociedade, mas contribuindo para os debates com as luzes de seus especialistas e o IAB os tem excelentes e à mãos cheias.”
E foi assim que tomou posse.
E disse ainda:
“O Brasil e o IAB são de tal forma... que é impossível distinguir os limites divisórios entre as histórias de um e de outro. Isso... só faz alargar a honra em ocupar a cadeira de Montezuma.
Felizmente esse mandato é de dois anos !”
Quiseram os avessos que o mandato fosse bem menor.
Mas foi muito grande na obra e nas lembranças que ficaram para nós.
Agora você voltou. Já temos registros.
Nas noites e madrugadas desta sala, quando os calendários deixam de existir e o tempo não corre mais, estas figuras centenárias, usando negras vestes talares, conversam numa linguagem própria de advogados de outros tempos, como se estivessem numa antiga sala dos passos perdidos, num tribunal nas nuvens do tempo passado.
Quem sabe dessas tertúlias é a figura mágica da Dama de Preto que nessas horas perdidas se insinua por este teto, por estas paredes, pelas mesas e cadeiras desta sala e consegue ouvir pequenas palavras, algumas perguntas e exclamações. Por momentos, fica sentada em uma dessas cadeiras e ouve comentários sobre a nova figura que vai chegar para compor esse plenário presente nas paredes e perdido no tempo.
A Dama de Preto ouviu muitas outras conversas e perguntas sobre os presidentes, se perdeu no tempo e sumiu nas madrugadas. Mas me contou o que ouviu.
Por certo, a partir de hoje, muitas outras histórias serão ouvidas. Ela vai me contar.
Com você os caminhos ficaram demarcados para a luta que se renova e continua.
E hoje é dia de lembranças. Lembranças que sentimos e vivemos com o mesmo gosto daqueles versos do poeta Bandeira:
“Eu faço versos como quem chora...
Meu verso é sangue...
Cai, gota a gota, do coração.”
Aqui estamos então para a festa e para o pranto.
Por isso, aqui estamos, para louvar e chorar a figura e a imagem de Paulo Saboya.
“Nóis é nóis, o resto...”
Humberto Jansen Machado
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