"Apologia ao crime ?"
OAB/SP quer obra do artista plástico Gil Vicente fora da Bienal
Quando na sexta-feira o Estadão estampou em sua capa quadros do pernambucano Gil Vicente, que serão expostos na Bienal, foi como um puxão no gatilho para uma saraivada de críticas e pedidos de censura.
Os quadros que causaram a polêmica são da série "Inimigos" e retratam personalidades sendo ameaçadas pelo próprio artista. FHC está com uma arma apontada na cabeça e Lula, por sua vez, tem uma faca no pescoço.
As reações contrárias às obras vieram da OAB/SP, em nota pública, e do IASP, em editorial em seu site.
Com efeito, o presidente da OAB/SP, Luiz Flávio Borges D'Urso, divulgou nota pública aos curadores da Bienal de São Paulo, Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias, expondo motivos pelos quais é contra a exposição da série "Inimigos", do artista plástico Gil Vicente, por fazer "apologia ao crime".
Pedindo vênias aos críticos, este rotativo quis dar sua modesta migalha de participação no imbróglio, o que se deu no informativo Migalhas 2.474, de 20/9/10 :
Arte- II
Com a devida vênia dos críticos, a arte não é apenas o retrato do belo, bonito e verdadeiro. Há algumas semanas, por exemplo, quem esteve no Pompidou e viu cenas de pessoas em auto-flagelação (vídeos, fotos e quadros) não recebeu aquilo como uma instigação. Viu como arte. Chocante, claro. Mas arte. Quando se diz, coloquialmente : "- quero matar esse cara !", não se está cometendo crime. Assim também nos parece ser o caso dos quadros do pernambucano. A arte, distorcendo imagens, força-nos a refletir sobre a realidade. E assim como foi o homônimo português, um satírico, o tupiniquim parece ter a mesma propensão. Deixemo-lo, pois, escarnecer em suas telas.
Muitos leitores migalheiros se manifestaram, favoráveis e contrários à proibição : clique aqui para conferir as opiniões e enviar a sua.
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"Uma obra de arte, embora livremente e sem limites expresse a criatividade do seu autor, deve ter determinados limites para sua exposição pública. Um deles é não fazer apologia ao crime como estabelece a vedação inscrita no Código Penal Brasileiro.
A série de quadros denominada 'Inimigos', do artista plástico Gil Vicente, é composta por obras as quais retratam, dentre outras, o autor atirando contra a cabeça do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, noutra mostra o mesmo autor, de posse de uma faca, degolando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Essas obras, mais do que revelar o desprezo do autor pelas figuras humanas que retrata como suas vítimas, demonstra um desrespeito pelas instituições que tais pessoas representam, como também o desprezo pelo poder instituído, incitando ao crime e à violência.
Certamente não se pode impedir que uma obra seja criada, mas se deve impedir que seja exposta à sociedade em espaço público se tal obra afronta a paz social, o estado de direito e a democracia, principalmente quando pela obra, em tese, se faz apologia de crime.
Por esse motivo é que a OAB/SP está oficiando os curadores da Bienal de São Paulo, para que essas obras de Gil Vicente, da série 'Inimigos' não sejam expostas naquela importante mostra."
São Paulo
Luiz Flávio Borges D'Urso
Presidente da OAB SP
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Diante da decisão de manter as obras do artista plástico Gil Vicente na Bienal de São Paulo, o presidente da OAB/SP, Luiz Flávio Borges D’Urso, oficou agora ao MP/SP, comunicando os fatos, uma vez que, em tese, a série "Inimigos", de Gil Vicente, faz apologia ao crime, previsto do art. 287, do CP (clique aqui) por fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime.
"A OAB vai continuar insistindo para que as obras de Gil Vicente não sejam expostas na Bienal de São Paulo. Acredito que o grande papel da OAB/SP foi ter trazido esse debate para a sociedade", diz o presidente.
"A OAB/SP sempre foi, é e será defensora da liberdade de expressão como estabelece a Constituição Federal e nisso não vamos recuar. Entendemos que as obras de Gil Vicente, na medida em que apresentam personalidades públicas, inclusive o presidente da República sendo executado, extrapola o limite da arte", afirmou D'Urso.
Segundo o presidente da OAB/SP, caberá ao MP tomar as providências devidas se entender que as obras suscitam apologia ao crime. "É bom lembrar que as obras de arte não podem sofrer qualquer limitação. Mas sim sua divulgação. Por exemplo, uma cena de sexo explícito no contexto de uma peça teatral é exibida de acordo com a faixa etária. A mesma cena na Praça da Sé não teria cabimento e extrapolaria os valores da liberdade de expressão", comenta D'Urso.
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Em matéria publicada no Estadão, Gil Vicente diz que "censura da OAB foi boa propaganda".
Censura da OAB foi boa propaganda, diz artista
ENTREVISTA
Artistas questiona se crime é produzir ficção ou roubar dinheiro público e avalia eleição como 'completamente pífia'
A 29.ª Bienal de São Paulo vai ser inaugurada hoje à noite para convidados - e apenas no sábado pela manhã para o público -, mas ontem, na apresentação da exposição para a imprensa, foi o artista Gil Vicente quem já surgiu como "popstar" do evento. Isso porque na sexta-feira o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo (OAB/SP), Luiz Flávio D"Urso, divulgou nota pública pedindo que desenhos do artista fossem retirados da mostra "por fazer apologia ao crime".
Em sua série, registrada na primeira página do Estado na sexta, o pernambucano se retrata matando o atual presidente da República e seu predecessor, além de outros oito líderes políticos, sociais e religiosos. Mas as obras não foram retiradas da mostra e a Fundação Bienal de São Paulo reitera que não vai exercer nenhuma censura.
Os desenhos de Gil Vicente estão expostos no terceiro piso do Pavilhão da Bienal, fazendo parte do coro da grande mostra, com participação de 159 artistas nacionais e estrangeiros, que ficará em cartaz, gratuitamente, até 12 de dezembro no Parque do Ibirapuera. "Parece que voltamos à ditadura", disse Gil ontem ao Estado, sobre a polêmica em torno de sua obra, já exposta no Recife (cidade do artista), em Natal, Campina Grande e Porto Alegre.
Como recebeu a nota da OAB?
Não tive tempo de ler a nota toda ainda, mas o Agnaldo (Farias, curador) me passou o teor. Fiquei surpreso. Parece que voltamos à ditadura. Ele (o presidente da OAB-SP) alega que minha série incita o crime e pergunto: Qual o crime maior: eu fazer essa ficção ou o roubo de nossos dirigentes, que a OAB sempre soube? Em vez de ficar pedindo que retirem minhas obras da exposição, deveriam trabalhar para colocar, pelo menos, em prisão perpétua esses dirigentes políticos que vivem roubando. Na menor prefeitura do País se rouba. Não voto há muito tempo, desde 2005.
Justamente quando fez Inimigos. Por que não vota e qual a relação dos desenhos com essa atitude?
Eleição é uma coisa completamente pífia. Não voto e faço campanha para as pessoas não votarem. A última esperança que tive foi o Lula, mas que idiotice a minha, eu era ingênuo. Votar para mim é ir a uma urna e, como num tribunal, autorizar que determinadas pessoas roubem por oito anos. A intenção, nos desenhos, era a de me retratar eliminando esses líderes. Estou matando-os - e só não quis representar a cena com sangue e cabeças explodindo porque não queria o registro de um espetáculo de filme americano. Logo após o registro, os mato (ele ri). Todas essas vítimas são fáceis de escolher, porque todos são escrotos.
Nos outros lugares em que exibiu esses desenhos ocorreu alguma polêmica como esta?
Nos outros lugares não houve nenhum problema. Apenas alguns leitores de jornal disseram que seus filhos não eram obrigados a ver aquelas coisas, mas eles veem mortes no noticiário todos os dias. A OAB só fez propaganda para mim.
Você fica chateado com isso?
Essa série contém um teor crítico o bastante para as pessoas entenderem. Foi uma bobeira da OAB fazer esse pedido, foi um desserviço a ela mesmo, como entidade. Lamento muito e lamentarei se minhas obras forem retiradas da mostra. Mas as pessoas vão lutar para que isso não aconteça.
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Os jornais Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo trazem hoje (21/9) análises da polêmica assinadas pelos escritores Affonso Romano de Sant'anna e Alexandre Vidal Porto, respectivamente.
É o artista um cidadão acima de qualquer suspeita?A arte oficial não consegue resolver seu paradoxo fundamental: diz que não há fronteiras, que tudo é lícito, desde, é claro, que sejam suas as fronteiras
Affonso Romano de Sant'anna
A 29.ª Bienal está propiciando uma discussão que não pode ficar na superfície dos fatos. Há aí três mal-entendidos: a OAB prometendo processar o artista e/ou a Bienal por incitação ao crime e à violência, os curadores alegando que isto é "censura" e o artista acima do bem e do mal. Este episódio remete para algo conhecido no mundo antigo como "morte em efígie". Não se podendo destruir o réu, destruía-se sua imagem, arrasando sua memória. Mas não é a primeira vez que dentro da modernidade ocorre um crime semelhante. Em 1965, três pintores mataram Marcel Duchamp. Gilles Aillaud, Antonio Recalcati e Eduardo Arroyo pintaram oito quadros realistas nos quais surpreendiam Duchamp subindo uma escada, esmurravam-no, torturavam-no e jogavam-no escada abaixo nu. Duchamp, que propunha a morte da arte, não gostou de se ver morto ali. E analisando esse quadro/episódio em O Enigma Vazio (Ed.Rocco), eu dizia que não é matando, mesmo em efígie, o ícone da arte de nosso tempo que o entenderemos. O desafio é ir a fundo na sua vida&obra. A censurável violência dos três pintores insere-se no quadro violento dos anos 60/70, quando o pensamento totalitário à esquerda e à direita achava que pela força resolveriam problemas sociais e políticos.
Portanto, preservando-se o direito do artista se expressar, mas alertando para as consequências disto, não se pode deixar de ver na obra daquele artista pernambucano um paradoxal exercício da violência. A meu ver, deveríamos ter aprendido com a Revolução Francesa, com a russa, a chinesa e cubana, que cortar a cabeça dos líderes é inócuo. Por outro lado, ressurge aí a síndrome voluntarista, perversa e autoritária do "justiceiro" - figura que a sociologia estuda pertinentemente.
Isto posto é crucial trazer à discussão uma pergunta: É o artista um cidadão acima de qualquer suspeita, acima de todas as leis sociais? Lembre-se que a ditadura recente nos deixou uma marca deletéria: depois de tanta repressão, caímos na ânsia de repressão nenhuma. Mergulhamos no oposto. Por isto, o mote: "é proibido proibir", que tem o seu charme juvenil, é um paradoxo, pois proibir a proibição é exercitar a proibição e a censura, só que do outro lado.
Esta Bienal tem como tema "arte e política". Ora, falar da política convencional é fácil. Acusar políticos, verberar contra os militares, é banalidade. Eles são os "outros". No entanto, há um enfrentamento político, igualmente urgente, dentro das artes. É necessário questionar o sistema em que se baseiam. Isso consiste em rever o poder dos curadores, o sistema das galerias, as premiações, a crítica universitária e jornalística, a publicidade, a bolsa de valores, enfim, o "deus ex machina" que hoje, mais do que nunca, controla as artes - o mercado. A arte oficial não consegue resolver seu paradoxo fundamental: diz que não há fronteiras, que tudo é lícito, desde, é claro, que sejam suas as fronteiras e desde que sejam "eles" a decidirem o sistema que tutelam.
Pedido da OAB-SP é ato assustador de censuraNota autoritária fere integridade da curadoria e subestima o público
Alexandre Vidal Porto
Tem notícia que assusta. A seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil pedir por nota pública a exclusão de obras da próxima Bienal de São Paulo é uma delas.
O ato é assustador por várias razões. Primeiro, pelo caráter autoritário que revela.
Segundo, pelo entendimento equivocado que o motiva.
Por fim, porque, supostamente, é cometido em nome da defesa do Estado de Direito e das instituições democráticas. O presidente da seccional de São Paulo, Luiz Flávio Borges D'Urso, que assina a nota, perdeu uma boa oportunidade de omitir-se.
As obras que a OAB-SP sugere ocultar fazem parte da série "Inimigos", de Gil Vicente. São desenhos grandes (2 m por 1,5 m) feitos com carvão, nos quais o artista se retrata assassinando autoridades e figuras públicas. Entre as "vítimas", estão o presidente Lula, dois governadores de Pernambuco, a rainha da Inglaterra e o papa.
Segundo a OAB-SP, as obras demonstram "desprezo pelo poder instituído, incitando ao crime e à violência".
D'Urso argumenta que "uma obra de arte, embora livremente e sem limites expresse a criatividade do seu autor, deve ter determinados limites para sua exposição pública. Um deles é não fazer apologia ao crime, como estabelece a vedação inscrita no Código Penal Brasileiro".
Pela lógica de seu argumento, o presidente da OAB-SP considera que representar artisticamente um crime equivale a recomendar sua execução. No entanto, retratar um assassinato não significa fazer apologia ao crime.
É o espectador quem dará significado aos desenhos de Vicente. A obra de arte é apenas uma representação que adquire valor subjetivo para quem a observa.
DIREITO DE DESPREZAR
A despeito do que critica a nota, é legítimo e legal que uma obra de arte represente o desprezo do autor pelo poder instituído. Em um Estado democrático, todos têm o direito de sentir desprezo por qualquer pessoa ou instituição. Desprezar não é crime e, mais importante, todos temos o direito de expressar o desprezo artisticamente.
A prevalecer a linha de raciocínio da nota, talvez se devesse proximamente proibir a exibição de artistas como Hélio Oiticica, que recomendava ao público: "Seja marginal, seja herói".
Mais valioso para o Estado de Direito do que uma cláusula do Código Penal -no meu entender, mal interpretada pelo presidente da OAB-SP- é o espírito da Constituição Federal. Mais importantes são as liberdades e os direitos individuais, que servem de base e fundamento para o Estado de Direito e as instituições democráticas que a OAB-SP pretende defender. A tentativa de controle social por meio da supressão de obras artísticas chama censura. Simples assim.
Caso os organizadores não desistam de exibir os trabalhos, a OAB-SP promete recorrer ao Ministério Público Estadual para pedir a retirada das obras e o indiciamento dos responsáveis por apologia ao crime. A pena prevista é de três a seis meses de detenção ou o pagamento de multa. É ao que se arriscarão os curadores e o presidente da Bienal se quiserem resguardar a integridade do trabalho de concepção e organização da mostra. A nota é autoritária e condescendente. Subestima a capacidade de discernimento do brasileiro. É legítimo perguntar até que ponto representa o entendimento jurídico e a sensibilidade política dos advogados paulistas.
Em qualquer hipótese, até o momento, o que parece atentar contra o Estado de Direito e as instituições democráticas não é a exibição das obras de Gil Vicente na Bienal, mas, sim, o teor da nota pública assinada por D'Urso. A OAB-SP errou e precisa admitir seu equívoco.
O Estadão de hoje (22/9) publica matéria relatando a polêmica instalada no meio jurídico devido ao pedido da OAB/SP de retirar as obras do artista Gil Vicente da 29ª Bienal.
______________OAB-RJ critica OAB-SP por vetar obra da Bienal
O pedido do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo, Luiz Flávio Borges D"Urso, de retirar as obras do artista pernambucano Gil Vicente da 29.ª Bienal ainda cria polêmica no meio jurídico. Ontem, o presidente da OAB do Rio, Wadih Damous, declarou-se contra a posição da entidade paulista. "Não acho que a pessoa vá sair matando depois de ver o quadro", disse Damous.
Perguntado, D"Urso devolveu o questionamento. "Gostaria de ver a reação daqueles que defendem a ausência de limites para a expressão artística se suas mães fossem retratadas nuas em um prostíbulo. Continuariam com a mesma opinião?"
Manifesto. A inauguração para convidados da 29.ª Bienal de São Paulo, no Parque do Ibirapuera, estava marcada para ocorrer ontem, às 19h, mas desde as 16h um grupo de artistas começou a colocar quadros, fotos, esculturas e objetos criados por eles na calçada na frente do prédio. Tratava-se da manifestação "Mitos Vadios II", liderada pelo artista Ivald Granato. A manifestação reuniu cem participantes.
O manifesto, segundo Granato, tinha como objetivo fazer uma crítica à Bienal, que será aberta para o público no sábado e ficará em cartaz até dezembro. "Acho que está tudo bem com a Bienal, mas os artistas são representados por galerias e, então, a mostra não deixa de ser uma feira de arte", disse. "Não acho correto ter R$ 30 milhões para fazer uma mostra com os mesmos nomes e com obras que você pode ver num cemitério ou numa boate e que só um grupo de elite acha engraçado."