Sorteio de obra
"Os anos 90, na maior parte dos países ocidentais, foram marcados pelo questionamento do modo pelo qual o Estado intervém na economia. As empresas públicas, anteriormente atores maiores do crescimento econômico, apresentavam déficits preocupantes para as finanças estatais, revelando os limites do Estado Empreendedor.
Nesse contexto, o problema da gestão, do tamanho e do papel do Estado voltou à pauta de discussões. As medidas de inspiração liberal adoradas nos anos 80 por R. Reagan, nos Estados Unidos, e M. Thatcher, na Inglaterra, passaram a ser vistas como alternativas credíveis aos déficits provocados pelo Estado Providência. Vários países ocidentais iniciaram reformas administrativas inspiradas no que se convencionou chamar de New Public Management (NPM).
Esse tipo de reforma ocorreu quase simultaneamente em países de contexto social e econômico extremamente diverso, como a França e o Brasil. Setores inteiros da atividade econômica, antes sob controle estatal, foram transferidos aos particulares por meio das privatizações. O Estado diminuiu sua ação como operador direto da economia e a concorrência transformou-se no novo paradigma — mesmo para os serviços públicos sacralizados.
Na Europa, a construção de um mercado único europeu contribuiu fortemente para o abandono do modelo intervencionista econômico direto. Um Estado operador econômico é visto com desconfiança pelos demais operadores que temem, legitimamente, que a concorrência seja falseada num contexto onde o Estado é, ao mesmo tempo, parte e juiz.
Não obstante, certas atividades, em razão da sua natureza ou interesse estratégico, não foram abandonadas ao livre jogo do mercado. O Estado impôs aos operadores privados ou públicos que as exercem a obrigação de executar missões de "serviço público" ou de "interesse geral", estranhas por natureza ao fim lucrativo das atividades econômicas.
Mesmo certas atividades não qualificadas de serviço público requerem uma intervenção estatal de natureza particular. É o caso, por exemplo, das atividades que ultrapassam os limites geográficos dos Estados. Estes são obrigados a concertarem-se com outros atores (estatais ou não), frequentemente reagrupados em associações internacionais, a fim de estabelecer as regras do jogo. Os exemplos são numerosos, como a internet, os mercados financeiros, os satélites, o trafego aéreo, etc.
Nesse contexto, o Brasil, dotado de um setor público vasto, modificou consideravelmente a maneira segundo a qual o mesmo era gerido. Dentre tais setores industriais impregnados de forte presença estatal, o setor elétrico chama particularmente a atenção.
Ora, a importância estratégica da eletricidade no mundo moderno é tal que alguns não hesitam em considerá-la como “indispensável à vida, como o ar ou a água” Toda a indústria de uma nação repousa sobre a eletricidade. Assim, um problema no sistema elétrico pode gerar perdas enormes na produção industrial. Neste quadro, o setor elétrico é seguramente "a mais pública das indústrias, a mais industrial das administrações".
Contudo, o setor elétrico foi recentemente aberto à concorrência no Brasil. Mas, pelas razões em parte já invocadas, ele resta estreitamente enquadrado pelo poder público. De fato, além da importância estratégica da energia para um país, o controle especial sobre esse setor exercido pela Administração justifica-se também pelo fato de que as infraestruturas de transmissão e de distribuição de eletricidade são "monopólios naturais".
Consequentemente, se um mercado aberto à concorrência é organizado sob a forma de um monopólio natural, deve-se evitar o abuso de posição dominante da parte do proprietário das infraestruturas (equipamentos essenciais) e obrigá-lo a disponibilizá-los aos seus concorrentes.
Resta que o acesso dos demais operadores econômicos às redes elétricas deve ser garantido e vigiado para que seja possível a instauração da concorrência no setor. Saliente-se que a União federal e os Estados Federados com suas empresas continuam presentes no setor elétrico brasileiro, o que requer uma vigilância intensa para não falsear as regras naturais do mercado.
Visando resolver esse problema de equilíbrio, o Brasil delegou o controle do setor elétrico, além de outros, a entidades de natureza especial, conhecidas sob o nome de "agências de regulação" (ou "Autoridades Administrativas Independentes" na Europa Continental), supostamente independentes do poder público e dos operad9res econômicos.
Nesse contexto, esta obra visa acrescentar uma pedra ao edifício do fenômeno da "regulação" estatal das atividades econômicas no Brasil. Foca-se no exemplo do setor elétrico e da sua agência reguladora, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), visando identificar a originalidade da noção de regulação — se originalidade existe — em relação aos modos clássicos de ação da Administração.
Não se trata, portanto, de elaborar uma definição nova e revolucionária da regulação, posto que o essencial sobre o tema já foi dito. Contudo, ao analisar a prática administrativa da regulação econômica setorial, pode-se dizer que a presente obra insere-se na "segunda geração" de reflexões sobre a matéria.
Nessa ordem de ideias, analisa-se inicialmente a noção de "regulação" e o campo de ação do regulador — o setor elétrico brasileiro atual (Primeira Parte). Em seguida, estuda-se os meios colocados à disposição da ANEEL pelo legislador para o exercício de sua missão e o modo como o regulador intervém no setor que lhe é submetido." O autor
Sobre o autor :
Fernando Antonio Santiago Junior é sócio do escritório Chenut Oliveira Santiago Sociedade de Advogados. Doutor e mestre em Direito Público pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Cursou Direito Internacional na Cornell Law school - EUA. É pós-graduado em Direito da Empresa pela Universidade Gama Filho/RJ. Bacharel em Direito pela UFMG.
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Plínio Roberto Barreto Sodré, de Salvador/BA
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